versão impressa ISSN 1806-3713versão On-line ISSN 1806-3756
J. bras. pneumol. vol.44 no.5 São Paulo set./out. 2018 Epub 30-Jul-2018
http://dx.doi.org/10.1590/s1806-37562017000000209
“Os pulmões de seres humanos saudáveis são locais estéreis, ao contrário das vias aéreas superiores onde existem microrganismos comensais - vivem em homeostase com o organismo humano”.1 Apesar de o sistema respiratório ter uma superfície maior que 70 m2 - o tamanho de uma quadra de tênis - e estar em contato direto com o meio ambiente, o conceito acima permeou o conhecimento sobre o sistema respiratório até o início do século XXI, quando os primeiros estudos baseados em técnicas de identificação molecular de DNA bacteriano revelaram a presença de material genético de microrganismos no trato respiratório inferior.1,2 Muito desse atraso no conhecimento da microbiota pulmonar se deve à dificuldade de se representar o habitat do pulmão humano através de técnicas de cultura convencional, baseadas no crescimento bacteriano de material colhido através do lavado broncoalveolar.2,3 Isso ocorre devido à menor carga bacteriana presente no pulmão quando comparada à em outros locais do corpo humano, como trato gastrintestinal e geniturinário. Além disso, sempre houve intenso debate sobre uma possível contaminação do material colhido das vias aéreas inferiores com microrganismos das vias aéreas superiores, o que excluiu o pulmão dos estudos iniciais que mapearam o microbioma humano.2,4-7
Passados esses obstáculos iniciais no estudo do microbioma pulmonar, a ciência avança para o entendimento da interação que essa microbiota possui com o sistema imune local e sistêmico, modulando a resposta imunológica no contexto de saúde e também nas diferentes patologias respiratórias. A caracterização do microbioma pulmonar, assim, tem o potencial de prover novos conceitos sobre aspectos fisiopatogênicos da homeostase do sistema respiratório e a perda desse equilíbrio, conhecida por disbiose, em condições como fibrose cística (FC), DPOC, asma e doenças intersticiais.8-11
Assim, é altamente provável que o microbioma e suas modificações tenham influência direta na história natural das doenças respiratórias, assim como certamente existe uma modificação na microbiota com o uso de antibióticos no tratamento de patologias infecciosas do trato respiratório. O aumento do conhecimento sobre o microbioma do pulmão colocou em pauta, ainda, uma discussão sobre uma possível distinção entre as espécies de bactérias que são patogênicas e outras que se comportam como comensais na composição do nosso microbioma fisiológico.12-15
Para melhor percorrer esse novo caminho que se abre à pneumologia, alguns conceitos são importantes. Microbiota, microbioma, metagenoma e RNAr 16S são termos que permeiam os estudos nessa área, e seu domínio facilita o entendimento dessa nova dimensão do conhecimento (Quadro 1). Em relação à técnica, a análise do microbioma bacteriano baseia-se na identificação e no sequenciamento de regiões variáveis do gene 16S que codifica o RNAr bacteriano. Visto que esse gene não está presente nos mamíferos, o viés de confusão com o DNA humano é inexistente.1,4,8 Finalmente, a sequência do DNA 16S contem nove regiões variáveis que podem ser identificadas por diferentes técnicas, sendo que o pirosequenciamento, o micro-ordenamento filogenético e o polimorfismo de comprimento de fragmento de restrição terminal são as mais comumente utilizadas.1,3,4 A Figura 1 resume a sequência de eventos que levam ao reconhecimento do microbioma de um determinado sítio.
Figura 1 Sequência de eventos que levam ao reconhecimento do microbioma de um determinado sítio. UTO: unidade taxonômica operacional.
Quadro 1 Glossário de nomenclaturas e definições usadas na rotina de avaliação do microbioma humano.
Microbiota | Todos os microorganismos que se encontram numa determinada região ou habitat |
Microbioma | O conjunto composto pelos microrganismos, seus genes e o ambiente/meio com o qual eles interagem |
Metagenoma | A informação genética da microbiota, obtida através do sequenciamento genético que é analisado, organizado e identificado através de ferramentas computacionais, usando bases de dados de sequências previamente conhecidas |
RNAr 16S | O componente da subunidade 30S dos procariontes. Codifica os genes DNA 16S, usados para obter dados filogenéticos |
Unidade taxonômica operacional | A definição operacional de uma espécie ou grupo de espécies, usado quando apenas os dados de sequência de DNA estão disponíveis |
Disbiose | O desequilíbrio na composição da microbiota de um determinado nicho relacionado a perturbações nas condições locais |
Focando nas populações bacterianas presentes em indivíduos normais, embora os resultados de estudos publicados difiram um pouco entre si, Proteobacteria, Firmicutes, e Bacteroidetes são os filos genéticos bacterianos mais comumente identificados. Em relação ao gênero, predominam Streptococcus, Prevotella, Fusobacteria e Veillonella, e uma menor contribuição de potenciais patógenos, como Haemophilus e Neisseria. Entretanto, os estudos se baseiam em séries de casos com pequeno número de sujeitos saudáveis e de pouco centros ao redor do globo.2,3,16
Tão importante quanto o conhecimento qualitativo das bactérias presentes no pulmão, a descrição da riqueza de organismos e a coexistência entre diferentes espécies é fundamental. Assim, o microbioma pulmonar saudável apresenta uma densidade baixa de colônias, porém uma elevada diversidade; por outro lado, alguns estados patológicos levam a uma perda dessa diversidade, com o aumento da concentração de alguns gêneros bacterianos em detrimento de outros.15,17,18 Isso poderia implicar o desenvolvimento de terapias específicas em detrimento de antibióticos de amplo espectro e com grande potencial de causar mais desequilíbrio em um microbioma já disbiótico.19 Ainda nessa linha de raciocínio, os macrolídeos, medicamentos tidos como imunomoduladores e utilizados por períodos prolongados em doenças tais como bronquiectasias, bronquiolite obliterante e DPOC, têm seus efeitos anti-inflamatórios revisitados, pois essas propriedades parecem estar relacionadas a alterações da microbiota pulmonar e dos metabólitos microbianos, com subsequente modulação negativa da função macrofágica alveolar.13
Finalmente, ainda em relação à população microbiana residente no sistema respiratório, os estudos iniciais ainda têm negligenciado dois importantes componentes do ecossistema pulmonar: os vírus e os fungos. Assim, o micobioma e o viroma pulmonares, especialmente em algumas condições, como a FC e transplante de pulmão, parecem ter uma importância particular.20 A identificação segue a mesma técnica da análise da microbiota bacteriana; porém, com reconhecimento do RNAr 18S, no caso dos fungos, e sequenciamento de ácidos nucleicos e PCR no caso dos vírus.21
Por muito tempo, perdurou a teoria de que os seios da face eram os maiores determinantes das alterações microbiológicas encontradas no trato respiratório inferior. A glote, desta forma, era então considerada uma estrutura eficaz em proteger o pulmão do compartimento orointestinal. Todavia, atualmente se reconhece que o microbioma do trato respiratório inferior assemelha-se ao da orofaringe, levando ao conceito de que a migração microbiana dessa região constitui-se no maior determinante do microbioma pulmonar em indivíduos sadios.22 Dessa forma, a microaspiração parece desempenhar um papel fundamental na formação do microbioma pulmonar, apesar de outras bactérias presentes no trato respiratório inferior, como as dos gêneros Prevotella, Veillonella e Streptococcus, apresentarem sua origem influenciadas pela sua inalação através das vias aéreas superiores.23,24 A inter-relação desses sistemas, bem como os determinantes locais do microbioma pulmonar, são apresentados nas Figuras 2 e 3.
Figura 2 Fatores determinantes do microbioma pulmonar e eixo intestino-pulmão. A composição da microbiota humana é determinada pela associação de fatores ambientais, resposta imune do hospedeiro e características genéticas. A microbiota intestinal, de tamanho incomparavelmente maior que a pulmonar, pode influenciar o trato respiratório inferior tanto de forma direta, como através de microaspirações, como de forma indireta, através da modulação da resposta imune com a produção de metabólitos bacterianos e sua interação com as células inflamatórias do hospedeiro. A inalação de agentes externos também é uma via de colonização pulmonar e dependerá, assim como o trato intestinal, de fatores locais, como tensão de oxigênio, pH tecidual, perfusão sanguínea, concentração de nutrientes, adequado funcionamento do transporte mucociliar e desestruturação da arquitetura anatômica pulmonar.
Figura 3 Fatores determinantes do microbioma do sistema respiratório: influxo, eliminação e proliferação microbianas. Em indivíduos saudáveis, o microbioma é determinado principalmente por entrada e eliminação. Em doenças pulmonares graves, as condições locais de crescimento são determinantes da sua composição.
As interações comensais entre os micro-organismos e o homem ao longo da evolução, além da relevância do ecossistema luminal (trato geniturinário e trato gastrointestinal) na modulação imune, já se impõem como um novo paradigma. Esse ecossistema é separado do interior do hospedeiro por uma fina camada de células epiteliais que atua como interface entre hospedeiro e meio ambiente, e esse epitélio é equipado com cílios, microvilosidades, células produtoras de muco e junções intercelulares que permitem funções fisiológicas enquanto em contato com a microbiota.25 Dessa forma, estudos com camundongos estéreis (germ-free) mostram que bactérias residentes influenciam diretamente o metabolismo epitelial, sua proliferação, turnover e função de barreira.25 No sistema respiratório, os membros da microbiota, em associação com antígenos ambientais particulados não viáveis, são continuamente apresentados à mucosa e processados por células dendríticas e macrófagos, com subsequente formação de memória ou ativação de células efetoras T e B.25 Além disso, estudos do trato gastrointestinal mostraram a capacidade do sistema imune de discriminar bactérias patogênicas daquelas comensais, através de receptores Toll-like presentes em linfócitos T, em um processo que permitiria a colonização simbiótica, ou seja, uma espécie de “acordo de paz” entre a microbiota residente e a mucosa respiratória,25,26 como exemplificado na Figura 4.
Figura 4 Interface da microbiota e interação com imunidade local. Membros da microbiota, em associação com antígenos ambientais particulados não viáveis, são continuamente amostrados pela mucosa e processados por células dendríticas e macrófagos, com subsequente formação de memória ou ativação de células efetoras T e B. Assim, diferentes microrganismos comensais influenciam a imunidade inata e adaptativa.
As evidências mostram, por outro lado, que uma regulação anormal dessa relação hospedeiro/microbiota desempenha um importante papel na fisiopatologia de diversos distúrbios inflamatórios pulmonares. Assim, a caracterização da composição do microbioma das vias aéreas como marcador prognóstico ou como elemento orientador de terapêutica medicamentosa ganha interesse em diversas patologias pulmonares crônicas,27 como descrito a seguir.
A asma é uma doença complexa, heterogênea e relacionada a fenômenos alérgicos que vem apresentando um aumento de sua prevalência nas últimas décadas. A teoria da higiene é uma das principais hipóteses que justificam esse achado.28 A baixa exposição a infecções bacterianas durante a infância pode ser responsável pela modulação da resposta imune com maior ênfase da via alérgica Th2. Diante disso, um maior interesse em relação ao papel do microbioma pulmonar e gastrointestinal vem surgindo. Estudos experimentais com camundongos livres de bactérias demonstraram uma resposta Th2 exagerada quando estimulados com ovalbumina, evoluindo com maior eosinofilia nas vias aéreas, hiper-responsividade e hipersecreção mucoide. Quando aqueles animais foram postos para crescerem ao lado de camundongos com microbiota bacteriana habitual, ambos os grupos apresentaram a mesma intensidade de resposta Th2, indicando que o microbioma habitual funciona como um fator protetor para doenças alérgicas.29
Uma vez que a colonização bacteriana de mucosas está relacionada ao desenvolvimento e à orquestração da resposta imunológica de indivíduos saudáveis, alterações em fases iniciais de vida dessa inter-relação podem contribuir para o desenvolvimento de doenças alérgicas na vida adulta.30 Em um estudo comparando duas comunidades agrícolas com hábitos semelhantes, porém com prevalência distinta de asma e sensibilização alérgica, a presença de uma composição microbiana com maior produção de endotoxinas se relacionou com uma menor prevalência dos distúrbios alérgicos.31 Além disso, uma microbiota nasal com menor diversidade de espécies, sobretudo quando associada à presença de Moraxella spp., também esteve associada a uma maior prevalência de asma.32
Em adultos, pacientes asmáticos apresentaram uma prevalência maior de organismos do filo Proteobacteria, como Haemophilus influenzae, quando comparados a controles saudáveis.33,34 Os estudos nessa área ainda são escassos e com um número pequeno de pacientes, gerando uma heterogeneidade de achados. Todavia, todos apontam para a presença de uma disbiose relacionada à microbiota pulmonar nos pacientes asmáticos, que pode ser influenciada tanto pela gravidade da doença como pelo uso de corticoide inalatório ou sistêmico.35,36
Os estudos comparando o microbioma de fumantes, ex-fumantes e indivíduos saudáveis ainda são escassos e com alguns resultados conflitantes em relação aos efeitos de longo prazo da exposição ao tabaco.37,38 Todavia, existem indícios de que ocorra disbiose em indivíduos tabagistas, com o aumento na prevalência do filo Firmicutes e de Neisseria spp. associado a uma redução relativa da abundância de Proteobacteria.37 Por outro lado, diversos estudos com pacientes portadores de DPOC já revelaram um microbioma pulmonar claramente distinto em relação a controles saudáveis.39-42 Além disso, dentre os próprios pacientes com DPOC, a depender do local em que o material for coletado, também são encontradas diferenças na composição do microbioma, como quando comparados, por exemplo, escarro vs. lavado broncoalveolar.42
Referente às exacerbações de DPOC, inúmeros estudos também já comprovaram que ocorre o aumento relativo na abundância de um determinado gênero em detrimento de outros.43-45 Essa alteração está relacionada a um estado pró-inflamatório e pode ser desencadeada, dentre outros motivos, por infecções virais43 e interação na via aérea com fungos.46 Esses achados reforçam o questionamento do papel dos antibióticos na exacerbação de DPOC, que podem ter um papel deletério no microbioma pulmonar pela redução da abundância bacteriana. Contudo, o uso de corticoide sistêmico não altera a diversidade microbiológica de forma significativa e, paralelamente, pode aumentar a abundância de determinados gêneros considerados como flora normal.44
A colonização das vias aéreas nas doenças pulmonares supurativas - FC e bronquiectasias não FC - exerce um papel fundamental na evolução das suas manifestações clínico-radiológicas, e a compreensão do papel da microbiota é fundamental para o entendimento fisiopatológico dessas manifestações. Enquanto o conhecimento tradicional baseado em culturas mostra a importância de patógenos bem conhecidos, como Haemophilus influenzae, Pseudomonas aeruginosa e Moraxella catarrhalis em bronquiectasias não FC, além de Staphylococcus aureus e do complexo Burkholderia cepacia em FC, estudos moleculares mostram que organismos não reconhecidos previamente estão presentes em abundância em alguns pacientes com doença supurativa.27 São exemplos dessa colonização a presença de Stenotrophomonas maltophilia e Achromobacter spp., além de descrições de Mycobacterium abscessus e Aspergillus fumigatus.10
Estudos sobre microbioma em pacientes com FC demonstraram que amostras de pacientes mais jovens e saudáveis geralmente mostram comunidades bacterianas mais diversas, enquanto os explantes pulmonares de pacientes com doença pulmonar em estágio final revelam uma diversidade extremamente baixa, com apenas uma ou duas bactérias patogênicas detectáveis, como P. aeruginosa e S. maltophilia.47 Assim, essa evolução microbiológica, no decorrer da vida de um paciente com FC, também vem acompanhada de uma redução na diversidade, maior abundância e maior similaridade filogenética entre as colônias de cada espécie.48,49
Para as bronquiectasias não FC, a competição simultânea entre bactérias patogênicas e comensais por sobrevida gera uma resposta imune inata do hospedeiro com a polarização da resposta de subtipos de células T, ativando ou perpetuando o processo inflamatório em vias aéreas terminais à semelhança do que ocorre no intestino em doenças inflamatórias crônicas, como a retocolite ulcerativa. Em relação às doenças inflamatórias intestinais, é interessante lembrar que há uma associação entre o surgimento de bronquiectasias após colectomia em casos de colite ulcerativa avançada, levantando a possibilidade de influência da microbiota intestinal sobre a pulmonar por imunorregulação sistêmica após a exclusão da barreira intestinal.12
Finalmente, nas doenças supurativas, é crucial a compreensão da microbiota patogênica e comensal para a diferenciação entre infecção e colonização, ou seja, equilíbrio/saúde vs. disbiose/doença. Vale lembrar também que, para esse grupo de pacientes, o estudo do microbioma fúngico e viral (micobioma e viroma) é fundamental, e foram poucos os estudos que abordaram esses temas até o momento. A literatura ainda é carente de estudos clínicos controlados; em sua maioria, os trabalhos são descritivos ou de revisão.
O microbioma no contexto da tuberculose continua a ser uma área pouco estudada, apesar da pesada carga da doença em todo o mundo.50 Muitos estudos existentes têm focado na microbiota fora do sistema respiratório, incluindo relatos de um aumento da presença de Candida spp. e uma perda de diversidade na microbiota intestinal como resultado do tratamento da tuberculose.51,52 Além disso, há pouca concordância entre esses inquéritos e análises do microbioma pulmonar na tuberculose. Cui et al.53 relataram que os pulmões saudáveis e os infectados com Mycobacterium tuberculosis compartilhavam muitos microrganismos, incluindo aqueles pertencentes aos filos Bacteroidetes, Proteobacteria e Actinobacteria, com o predomínio de Firmicutes e Bacteroidetes. Por outro lado, Wu et al.54 encontraram uma lista bem diferente de microrganismos associados à tuberculose, incluindo os dos gêneros Streptococcus, Granulicatella e Pseudomonas. Um aspecto interessante daquele estudo é a comparação entre a microbiota de pacientes com diagnóstico recente de tuberculose, de casos de recidiva e de casos de falha de tratamento. A proporção de Pseudomonas/Mycobacterium nos casos de recidiva foi maior do que nos de tuberculose recente, enquanto a proporção de Treponema/Mycobacterium nos casos de recidiva foi menor do que nos casos novos, indicando que a interrupção dessas bactérias pode ser um fator de risco de recorrência da tuberculose.54 Esses dados sugerem que a presença de certas bactérias e a disbiose do pulmão podem estar associadas não apenas ao aparecimento da tuberculose, mas também a sua recorrência e falha do tratamento, indicando um possível papel da microbiota na patogênese e nos desfechos do tratamento da tuberculose.
Ainda em 2008, Varney et al.55 publicaram um ensaio clínico avaliando o impacto do uso de sulfametoxazol/trimetoprima em pacientes portadores de fibrose pulmonar idiopática (FPI). Demonstrou-se que o grupo que recebeu a antibioticoterapia apresentou melhora clínica e funcional,55 e já se aventava a hipótese de um potencial efeito sobre a microbiota pulmonar. Mais recentemente, dados da coorte de um estudo que analisou 55 pacientes com FPI demonstraram haver uma relação entre o predomínio de bactérias específicas do gênero Staphylococcus e Streptococcus e exacerbação da pneumopatia intersticial.56 Naquele mesmo ano, Molyneaux et al.57 observaram um aumento na quantidade de bactérias no lavado broncoalveolar de portadores de FPI quando comparados a controles saudáveis, além de diferenças na composição e diversidade dessa microbiota, associando essa disbiose à progressão da doença parenquimatosa. Uma posterior análise genética desses pacientes revelou o aumento e a manutenção na expressão de genes relacionados à resposta imune do hospedeiro, atuando como um estímulo agressor contínuo ao epitélio alveolar, além de se relacionar com ativação fibroblástica local,58,59 ulteriormente sugerindo uma relação entre microbioma e progressão da fibrose. A tentativa de reversão do processo de disbiose e, em última instância, a interrupção da agressão tecidual, é palco de intensa investigação no cenário das doenças intersticiais fibrosantes; porém, ainda é cedo para afirmar que a microbiota está diretamente relacionada à progressão da doença.27
Após os avanços iniciais no entendimento do microbioma do sistema respiratório em relação às patologias mais prevalentes, espera-se que tal entendimento revolucione os conceitos da patogênese em diversas situações clinicas. Em relação a ventilação mecânica e pneumonia associada à ventilação mecânica (PAVM), isso não é diferente. Um estudo recente com 35 pacientes sugeriu que a ventilação mecânica por si só está mais associada a uma mudança na microbiota pulmonar que o uso de antibióticos sistêmicos e que a disbiose do sistema respiratório é mais intensa nos pacientes que desenvolveram PAVM do que naqueles que não a desenvolveram.60 Ainda em relação à PAVM, a análise do microbioma pode também auxiliar no diagnóstico etiológico e na diferenciação entre pneumonia e colonização por um patógeno potencial.61
O transplante pulmonar é outra área em ebulição. O sistema respiratório dos pacientes transplantados é um nicho de especial interesse, haja vista o amplo uso de antibióticos profiláticos e de drogas imunossupressoras utilizados nessa população. A microbiota do pulmão transplantado parece ser diferente dos pulmões saudáveis, principalmente devido à presença da família Burkholderiaceae.62 Além disso, a mudança da microbiota parece influenciar no desenvolvimento de disfunção crônica do enxerto.63 Um estudo com 203 lavados broncoalveolares de 112 pacientes transplantados revelou que algumas bactérias exerciam um papel pró-inflamatório (gêneros Staphylococcus e Pseudomonas) e que outras exerciam um papel de menor estimulação do sistema imune (gêneros Prevotella e Streptococcus).64 Uma disbiose nesses indivíduos parece ter relação com perfis diferentes de inflamação e orquestração dos macrófagos pulmonares, contribuindo na gênese da disfunção crônica. Essa interação entre comunidades bacterianas e a resposta imune inata oferece novas vias de intervenção na prevenção da disfunção crônica do enxerto.
A oncologia clínica também avança no conhecimento das correlações entre microrganismos e neoplasias de pulmão. Após a descrição de marcadores moleculares, como EGFR, proteína de morte celular programada 1 e quinase do linfoma anaplásico, que customizaram a abordagem terapêutica, é a vez de o microbioma apresentar-se como um possível marcador de doença e, quiçá, um alvo terapêutico. Alguns microrganismos já apresentam uma relação direta com neoplasias em outros órgãos, como Helicobacter pylori no câncer de estômago e HPV no câncer de colo de útero. Doenças periodontais podem se associar a câncer de pulmão, sugerindo uma associação do microbioma oral com o risco de carcinoma pulmonar.65 Corroborando essas hipóteses, Vogtmann et al. descreveram, em mulheres não tabagistas, que casos de câncer de pulmão tiveram uma diminuição da abundância relativa de organismos dos filos Spirochaetae e Bacteroidetes e uma maior abundância relativa dos de Firmicutes em análises da microbiota oral.66 Finalmente, um estudo comparando o lavado broncoalveolar de pacientes com neoplasias e tumores benignos encontrou como preditores de câncer de pulmão os gêneros Veillonella e Megasphaera, sugerindo uma associação entre microbiota pulmonar alterada e presença de neoplasia.67
Apesar de excitante, o estudo do microbioma deve ser visto com alguma cautela, e já se afirmou que o seu maior risco é se afogar no próprio tsunami de informações.68 Existe um risco de ser feita uma série de associações especulativas entre a microbiota e estados de saúde e doença, e essas conexões se mostrarem espúrias ou muito mais complexas do que mostram as avaliações iniciais.
Estariam as comunidades microbianas alteradas nos pulmões por causa das doenças respiratórias, ou os pulmões estão doentes por causa da disbiose entre esses microrganismos? O sistema imune e o microbioma estão tão intimamente interligados que essa diferenciação é extremamente difícil. A maioria dos estudos nesse tema ainda são descritivos e, apesar de repletos de correlações provocativas, ainda não elucidam a causalidade entre a modulação das patologias do sistema respiratório e a microbiota residente, nem determinam temporalmente o que se inicia primeiro: a disbiose ou a doença pulmonar.69 Essas são algumas das questões que se colocam prementes ao se delinearem novos estudos.
Estamos entrando em uma nova era no entendimento das doenças pulmonares do ponto de vista da interação das comunidades bacterianas e seus metabólitos com os mecanismos imunológicos e funcionais das diferentes patologias do sistema respiratório. Nesse contexto, frente à quebra do paradigma do conhecimento da microbiota presente nos pulmões, faz-se premente entender melhor sua interação com o indivíduo para que, dessa forma, sejamos capazes de avançar no entendimento dos processos fisiopatológicos das doenças respiratórias, assim como identificar possíveis alvos terapêuticos e abordagens clínicas inovadoras nessas patologias. A translação dessas informações para a prática assistencial, sem dúvida, será o maior desafio no estudo do microbioma e de suas potencialidades.