versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.21 no.10 Rio de Janeiro out. 2016
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320152110.16832016
Os estudos sobre o vírus Zika (ZIKV) têm se concentrado nos processos biológicos de ação sobre a contaminação e transmissão, com indicação de possibilidades de alterações no desenvolvimento neurológico da criança que apresenta a microcefalia relacionada ao vírus. De fato, o minucioso e longo documento produzido pelo Ministério de Saúde do Brasil (MS), chamado Protocolo de Vigilância e Resposta à Ocorrência de Microcefalia Relacionada à Infecção pelo Vírus Zika1, apresenta a epidemiologia da infecção desta virose em humanos, define a microcefalia e os métodos diagnósticos bem como as manifestações neonatais. Além disso, uma série de publicações recentes de investigações clínicas realizadas por autores brasileiros em revistas científicas do Brasil e do Exterior tem mostrado a identificação pré-natal da microcefalia2, a descrição das anomalias oculares3 e as malformações congênitas detectadas4.
Estas e outras informações têm levantado também a sugestão de que o critério utilizado pelo MS para considerar a presença de microcefalia em recém-nascidos é bastante sensível, mas pouco específico e assim a maioria das crianças suspeitas terão o diagnóstico descartado5. Da recente casuística de 5909 casos suspeitos (registrados de novembro de 2015 a fevereiro de 2016), 1687 realizaram investigação clínica completa sendo apurados 641 casos com confirmação da microcefalia e/ou alteração do Sistema nervoso central sugestivos de infecção congênita. Dos casos confirmados, foi identificado laboratorialmente o ZIKV em 82 crianças vivas e 31 perdas fetais. Esta observação clínica é sustentada pela demonstração de que o ZIKV pode alojar-se no córtex cerebral e tronco encefálico de fetos com diagnóstico de microcefalia, entre outras anormalidades6,7, tais como calcificações intracranianas, dilatação dos ventrículos cerebrais ou alterações de fossa posterior. Os restantes 1046 casos foram descartados e a enorme cifra de 4222 casos permanece em investigação8. Como estes são os menos acometidos, considera-se que a sobrecarga na avaliação, tanto para as crianças e famílias, como para o sistema de saúde, possa não se justificar8.
Por outro lado, alguns pesquisadores argumentam que o aumento de casos suspeitos de microcefalia deriva de vários fatores: a) resgate do subregistro dos casos anteriores: estima-se que 2/3 dos casos de anomalias congênitas não são registradas e assim a busca ativa compensa os casos não registrados; b) adoção sistemática da observação do perímetro cefálico (PC) comparando com a idade gestacional, o que não é feito de rotina em todas as unidades neonatais; c) curvas de referência do perímetro cefálico não são as da população estudada; d) presunção de distribuição normal do PC por idade gestacional, o que pode não ser verdadeiro; e) definição de microcefalia por medida do PC no -2DP ou percentil 3: a maioria das crianças com PC entre o -2DP/-3DP não apresenta evidências de malformações5,9.
Outra questão crucial levantada por pesquisadores com experiência na investigação epidemiológica de malformações congênitas, tanto no Brasil como em outros países da América Latina, foi a de que a sustentação da evidência de que a Embriopatia pelo ZIKV vírus seja a responsável pelos casos de microcefalia é fraca. Por este motivo o prestigioso Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas publicou em seu site uma série de notas técnicas nas quais mostra a dificuldade em estabelecer definitivamente esta associação. Propõe como método ideal o estudo caso-coorte com fluxograma, que inclua a investigação das infecções STORCH e outros possíveis teratógenos como a Síndrome Fetal pelo Álcool e as dezenas de síndromes genéticas, desde as cromossomopatias identificas pelo cariótipo, como as microdeleções e microduplicações identificadas pelas técnicas de array genômico até as síndromes monogênicas identificadas pelas técnicas chamadas de next generation sequencing9,10.
A literatura citada tem repercutido amplamente na mídia brasileira, mas nem a primeira e nem a segunda têm refletido com a mesma intensidade sobre o seguimento das crianças, o impacto social e o emocional e a carga financeira das famílias e tampouco do preparo das equipes de saúde para encarar o desafio de avaliar e instituir métodos de intervenção ao longo do tempo. Como diz o editorial do Lancet de 3 de fevereiro, com o instigante título Offline: Brazil-the unexpected opportunity that Zika presents11, uma epidemia tem o poder de profundas mudanças nas políticas públicas de saúde de um país. Cabe a todos nós tentar promovê-las.
Nossa opinião é que devemos implantar sistemas de seguimento para conhecer, descrever e caracterizar aspectos que devem estar relacionados à exposição pré-natal ao ZIKV.Vemos 3 eixos de atuação: 1 – avaliação diagnóstica, etiológica e rastreamento de problemas de desenvolvimento nas crianças incluídas como casos confirmados ou suspeitos; 2 – investigação do impacto emocional, na qualidade de vida, nas estratégias de enfrentamento e rede de apoio às famílias das crianças incluídas; 3 – capacitação de equipes multiprofissionais para avaliar e elaborar programas de intervenção ao longo do desenvolvimento das crianças, principalmente nos 3 primeiros anos de vida.
Contemplando estes eixos de atuação dois documentos do Centers for Disease Control and Prevention (CDC/ EUA)12,13 foram publicados em 2016 contendo recomendações para avaliação de gestantes, recém-nascidos e crianças com possível infecção congênita pelo ZIKV. As ações principais são: notificação de qualquer caso às autoridades responsáveis; avaliação auditiva aos 6 meses de vida, com acompanhamento das alterações encontradas e avaliação do perímetro cefálico e dos marcos de desenvolvimento durante o primeiro ano de vida. O seguimento deve ser realizado por equipe especializada multiprofissional composta por neuropediatra e terapeutas da área motora e de linguagem, entre outros. Vale ressaltar que o documento propõe o acompanhamento específico das crianças somente quando a mãe e o filho apresentam o resultado positivo para a testagem viral. Quando a mãe apresenta resultado positivo e a criança negativo para o ZIKV, o CDC recomenda apenas o acompanhamento de rotina para esta última. Entretanto, a ausência de conhecimento e informações sobre os efeitos da infecção materna no feto em médio e longo prazo sugere o acompanhamento próximo e sistemático para todos os filhos de mães infectadas. Esta iniciativa pode contribuir fortemente para a melhor compreensão da ação deste vírus e suas consequências. No momento não se dispõe no Sistema Único de Saúde do Brasil (SUS) de testes sorológicos específicos para o diagnóstico do ZIKV. Isso torna obrigatório o desenvolvimento de um sistema de seguimento dos recém-nascidos notificados com a diminuição do perímetro cefálico, pelo menos naqueles com a medida abaixo do terceiro desvio-padrão mesmo sem evidência de real dano neurológico. Esta providência poderá contribuir para a identificação das formas sem alterações anatômicas, mas com comprometimento em diferentes áreas do desenvolvimento em longo prazo. O modelo dos efeitos fetais pelo álcool evidencia claramente esta modalidade de manifestação14. Em outras palavras, espera-se que as crianças expostas intraútero ao ZKV possam manifestar desde complexas síndromes com deficiências múltiplas até dificuldades na aprendizagem escolar ou problemas de adaptação social sem necessariamente fenótipo morfológico alterado.
As alterações mais comumente associadas à microcefalia estão relacionadas ao déficit intelectual e a outras condições que incluem epilepsia, paralisia cerebral, atraso no desenvolvimento de linguagem e/ou motor, estrabismo, desordens oftalmológicas, cardíacas, renais, do trato urinário, entre outras. O estabelecimento do diagnóstico diferencial com causas genéticas e outros teratógenos ambientais, como as infecções pré-natais, o álcool, a exposição pré-natal ao RX e alguns medicamentos, deve ser feito, já que em todas estas condições a microcefalia pode ser observada15. Achados oftalmológicos também foram relatados. Um estudo brasileiro descreveu o caso de três mães que não apresentavam lesão ocular, entretanto foram observadas nas três crianças, lesões unilaterais em região macular3. Posteriormente, o mesmo grupo descreveu o mesmo achado em um grupo de 10 crianças com microcefalia associada ao ZIKV16, o que fortalece a necessidade de acompanhamento visual para este grupo.
Ainda não foram estabelecidos indicadores específicos relativos ao comprometimento cognitivo e comportamental dessas crianças infectadas pelo ZIKV. Contudo, a partir dos relatos de casos clínicos descritos na literatura, infere-se que se trata de um grupo que demandará a necessidade de ações precoces de intervenção, caso se considere os múltiplos riscos para alterações globais do neurodesenvolvimento que eles apresentam com elevado impacto no funcionamento adaptativo destes. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, nº 13.146 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), foi instituída em 06 de julho de 2015 destinada a assegurar e promover, em condições de igualdade, os direitos e as liberdades fundamentais da pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. Cabe ao Estado, à sociedade e à família garantir à pessoa com deficiência, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à educação, à previdência social e à reabilitação, entre outros, de modo a garantir seu bem-estar pessoal, social e econômico17.
Por estas razões, estudos de seguimento são fundamentais para a identificação de prejuízos de diversas naturezas em crianças que tenham suspeita de exposição a agentes potencialmente prejudiciais ao desenvolvimento do sistema nervoso. Para tanto, é importante que sejam utilizados protocolos estruturados de avaliação, validados e normatizados para a população brasileira. No primeiro semestre de vida, características fundamentais que devem ser observadas são aspectos de desenvolvimento físico (tais como peso, estatura, crescimento de perímetro cefálico), habilidades motoras (presença e desaparecimento de reflexos primitivos em época esperadas e condições favoráveis para sustentar a cabeça, pegar objetos, levar objetos à boca, ganhar controle de tronco), habilidades de linguagem expressiva e receptiva (balbuciar, olhar em direção aos sons, reconhecer seu nome) e habilidades cognitivas e sociais (emitir sorriso social, reconhecer pessoas familiares, olhar objetos em movimento, reagir a interações e expressões dos cuidadores).
Até o final do segundo semestre de vida, outras características frequentemente presentes são: virar-se e ficar sentado, engatinhar ou ficar em pé com apoio (área motora); início da pronúncia de sílabas do seu idioma, compreensão de sim e não, uso da vocalização para chamar intencionalmente a atenção dos adultos e resposta a comandos verbais simples (área da linguagem); início do reconhecimento de objetos, início da busca por objetos escondidos, desenvolvimento da atenção compartilhada ao olhar para alvos apontados pelo cuidador, uso de objetos com função social (área cognitiva e social).
Até a criança completar dois anos de idade, as seguintes características já estão frequentemente presentes no desenvolvimento típico: habilidades para andar sem auxílio, empilhar blocos; na área da linguagem, pronunciar palavras e juntá-las em frases curtas, reconhecer nomes de terceiros; na área cognitiva e social, começa a interagir com outras crianças durante a brincadeira, começa a brincar com objetos de forma adequada (como bonecas ou carrinhos), começa a conhecer cores. Já aos três anos, espera-se que a criança consiga correr, segurar giz ou lápis (habilidades motoras); pronuncie frases com 3 ou 4 palavras, saiba dizer seu nome (habilidades linguísticas); consiga brincar com jogos de regas simples, comece a conseguir alternar turnos em brincadeiras, tenha interações positivas espontâneas com amigos ou familiares (habilidades sociais e cognitivas)18.
O reconhecimento destas e outras alterações ao longo do crescimento das crianças impõe ações de intervenção. Estas devem ser de caráter prospectivo e devem envolver também a avaliação de padrões de funcionamento comportamental e indicadores de adaptação social e familiar. O acompanhamento familiar para se verificar indicadores de saúde mental, além de suporte social e qualidade de vida, são fundamentais no atendimento a crianças com transtornos do desenvolvimento, especialmente quando associada ao déficit intelectual. De fato, a convivência diária com uma criança com um quadro crônico altera o funcionamento familiar, repercutindo de forma direta na qualidade de vida. Por outro lado, o apoio social é um importante fator de proteção e promoção de saúde mental nos pais dessas crianças. O suporte socioemocional auxilia no desenvolvimento de estratégias de enfrentamento para as dificuldades de manejo da vida diária em pais de crianças com déficit intelectual. Desse modo, além do acompanhamento da criança, faz-se necessária a atenção aos grupos de pais para verificar indicadores de problemas emocionais e de qualidade de vida, estruturando-se uma rede de suporte social para promover saúde mental nessas famílias19-22.
É preciso haver um esforço da comunidade científica e dos serviços de saúde para que as avaliações e o acompanhamento desse grupo específico sejam feitos com o uso de instrumentos validados para o Brasil e que possam ser incorporados na linha de cuidados às crianças e famílias. Capacitação e treinamento devem ser oferecidos e facilitados para os profissionais, a partir da definição de prioridades estabelecidas para um programa de seguimento. Dessa forma, seguindo a mesma linha do CDC/EUA12,13, um protocolo de atendimento em curto, médio e longo prazo poderá nortear a ação de todos os envolvidos na avaliação e intervenção especializada às crianças e famílias afetadas pelo ZIKV. Cuidados especiais devem ser direcionados às mães e demais familiares responsáveis pela condução da criança aos serviços especializados. É preciso considerar a necessidade de suporte e apoio médico, educacional e psicológico que essas famílias devem ter assegurados diante dos prejuízos do desenvolvimento que possivelmente acometerão as crianças afetadas pelo ZIKV.
Concluindo podemos dizer que a população brasileira, como o sistema de assistência à saúde de uma maneira geral, encontra-se diante de um grande desafio, qual seja o de entender o real significado de um potencial novo teratógeno. Desvendar os mecanismos patogênicos do ZIKV é essencial para o enfrentamento preventivo. Reconhecer o amplo espectro de manifestações clínicas, principalmente o impacto no desenvolvimento cognitivo-comportamental, é fundamental para elaborar programas de intervenção visando o melhor cuidado das crianças e das famílias envolvidas.