versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.32 no.4 Rio de Janeiro 2016 Epub 29-Abr-2016
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00017216
O rápido aumento do número de casos suspeitos de microcefalia em recém-nascidos vivos, a partir de agosto de 2015, em Pernambuco, Nordeste do Brasil, chamou atenção dos médicos dos sistemas público e privado de saúde do estado 1.
Alertada, a Secretaria Executiva de Vigilância em Saúde (SEVS) da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco (SES-PE) detectou uma mudança no padrão de ocorrência dessa alteração congênita, com elevação do número de casos em comparação aos anos anteriores, caracterizando a existência de uma epidemia 2.
A possível associação do aumento de casos de microcefalia com surtos de infecção pelo vírus Zika, ocorridos no Brasil a partir do final de 2014, principalmente no Nordeste, passou a ser objeto de investigações 3.
Outros estados do Nordeste relataram aumento de casos de microcefalia, o que levou o Ministério da Saúde a decretar estado de emergência de saúde pública nacional em 11 de novembro de 2015 4.
Para fins de notificação, inicialmente, definiu-se, como caso suspeito de microcefalia, os nascidos vivos com 37 semanas ou mais de idade gestacional (IG) e perímetro cefálico (PC) ≤ 33cm 5. No entanto, esse ponto de corte de alta sensibilidade, sem respaldo integral na literatura científica existente 6,7, gerou um número excessivo de notificações. Assim, a partir de dezembro de 2015, o Ministério da Saúde estabeleceu o PC ≤ 32cm para a definição de caso suspeito de microcefalia 8.
Visando contribuir para a discussão a respeito do ponto de corte para notificação dos casos suspeitos, o presente estudo objetivou estimar a acurácia, a sensibilidade e a especificidade de diferentes pontos de corte, utilizando a curva de Fenton 6 e a curva proposta pelo projeto Intergrowth 7 como padrão-ouro. A inclusão da curva Intergrowth, nas análises, deveu-se ao fato dessa curva ter sido desenvolvida recentemente, considerando crianças de países com diferentes características étnicas e econômicas.
Analisaram-se 696 casos suspeitos de microcefalia em recém-nascidos, notificados à SES-PE, entre 2 agosto de 2015 e 28 de novembro de 2015 (semanas epidemiológicas de 31 a 47).
Foram excluídos aqueles sem informação sobre perímetro cefálico e/ou idade gestacional e outros dois casos caracterizados como erro de registro (35cm e 45cm), permanecendo dois casos com PC = 33,5cm, identificados na base analisada como suspeitos de microcefalia, perfazendo um total de 684 casos suspeitos.
Inicialmente, procedeu-se à descrição dos casos notificados por meio das distribuições segundo sexo e categorias de idade gestacional.
As categorias de idade gestacional foram assim definidas: recém-nascidos pré-termo - até 36 semanas e 6 dias de IG; recém-nascidos a termo e pós-termo - 37 semanas ou mais de IG, sendo considerados a termo aqueles com IG até 41 semanas e 6 dias.
Para classificação dos casos suspeitos de microcefalia como positivos ou negativos, formam empregados, primeiramente, as tabelas de Fenton e, posteriormente, o método Intergrowth (2014), que fornecem distribuições das curvas de crescimento para o perímetro cefálico de acordo com a IG e o sexo, considerando positivos (confirmados) aqueles recém-nascidos com PC abaixo do percentil 3 daquelas distribuições. Apresentou-se também a evolução temporal dos casos suspeitos e confirmados segundo semana epidemiológica.
Para avaliação dos pontos de corte para o PC, foram utilizadas as curvas ROC (Receiver Operating Characteristic), tendo, como padrão-ouro, primeiramente, as curvas de Fenton e, posteriormente, as tabelas do método Intergrowth.
Analisou-se ainda a diferença de proporção de casos confirmados pela curva de Fenton, segundo sexo.
O critério para eleição do ponto de corte "ideal" foi o de maximização da área sob a curva ROC, respeitando-se a necessidade de sensibilidade maior que especificidade, dada a natureza da questão (triagem). Essas análises foram realizadas segundo sexo e categorias de IG separadamente.
O método Intergrowth, à época do início da epidemia, estabelecia padrões para os recém-nascido a termo e para os pré-termos com IG igual ou superior a 33 semanas. Assim, para fins de compatibilização, somente os recém-nascidos com 37 semanas ou mais de IG foram incluídos nas análises com esse método.
Por fim, verificou-se a concordância entre as classificações obtidas pelos dois métodos, utilizando-se o índice kappa. As análises forma feitas com o software Stata v. 12 (StataCorp LP, College Station, Estados Unidos).
Dentre os 684 casos notificados, 599 foram recém-nascidos a termo/pós-termo e 85 (12,4%) pré-termo, percentual similar ao da população geral, conforme o Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) para Pernambuco em 2013. Dentre os recém-nascidos pré-termo, sete tinham entre 22 e 31 semanas de gestação. Predominaram notificações de casos do sexo feminino (423 casos), que representaram 62% do total.
Ao classificar os casos notificados segundo padrões de Fenton por sexo e IG, obteve-se uma positividade de 39% (267 casos), implicando um total de 417 falsos positivos (61%). Para os 599 recém-nascidos com IG ≥ 37 semanas, a positividade, pelo critério de Fenton, foi de 41% (243 casos), enquanto que, pelo método Intergrowth, foram encontrados 188 positivos (31%).
As porcentagens de positivos segundo sexo não apresentaram diferença significativa, sendo de 41% para o sexo masculino e de 38% para o feminino (χ2(1 g.l.) = 0,44; p = 0,506).
Não obstante o elevado número de falsos positivos, os 267 casos confirmados segundo Fenton, registrados em 17 semanas epidemiológicas, representaram uma frequência relativa de 58 casos por 10 mil nascidos vivos.
A Figura 1 apresenta a distribuição de casos suspeitos e confirmados segundo método de Fenton, por semanas epidemiológicas.
Figura 1: Distribuição dos casos de microcefalia notificados e confirmados pela curva de Fenton por semana epidemiológica. Pernambuco, Brasil, 2015.
A Tabela 1 apresenta as análises de sensibilidade, especificidade e acurácia com emprego de curvas ROC pelos dois métodos adotados. Verificou-se, segundo Fenton, que o ponto de corte com maior área sob a curva ROC, respeitando o critério de sensibilidade maior que especificidade, foi de 32cm, para ambos os sexos. Não obstante, tal ponto de corte apresenta, para o sexo feminino, especificidade de 70%, enquanto que, para o masculino, esse valor é de 80%, aproximadamente.
Pelo método Intergrowth, os pontos de corte identificados, respeitando os mesmos critérios, são 32cm e 31,5cm, para os sexos masculino e feminino, respectivamente.
Tabela 1: Acurácia, sensibilidade e especificidade para definição de ponto de corte do perímetro cefálico, tomando-se, como padrão-ouro, a curva de Fenton e o método de Intergrowth.
A análise de concordância entre os métodos para ambos os sexos apontou coeficiente de concordância de 90,8% (kappa = 0,802; p < 0,001). Para o sexo masculino, o coeficiente foi de 90,3% (kappa = 0,792; p < 0,001), e, para o feminino, de 91,2% (kappa = 0,809; p < 0,001).
A Tabela 2 apresenta a classificação dos recém-nascidos, segundo pontos de corte para o PC identificados na análise de acurácia, de acordo com categorias de IG, pelos dois métodos utilizados. Para os recém-nascidos com IG ≥ 37 semanas, o método Intergrowth apresenta um percentual 11,4% de falsos positivos (68 casos), enquanto que, pelo critério de Fenton, esse percentual seria de 15,7%. Observa-se, ainda, nesse quadro, um total de 108 falsos positivos (15,8%) gerados pelo método de Fenton, quando foram considerados os recém-nascidos de todas as IG.
Tabela 2: Classificação dos recém-nascido, segundo pontos de corte adotados para o perímetro cefálico (PC): método de Fenton, de acordo com categorias de idade gestacional e sexo; método Intergrowth, segundo sexo.
Por fim, ao considerar os recém-nascidos com IG ≥ 37 semanas (599), a adoção do ponto de corte em 32cm levaria a uma proporção de 54% de positivos (324 casos), enquanto pontos de corte de maior especificidade como 31cm e 30,5cm levariam a proporções de 29% e 20%, respectivamente.
A classificação pelas curvas de Fenton dos 684 recém-nascidos notificados como casos suspeitos de microcefalia, sob o critério do Ministério da Saúde (PC ≤ 33cm), identificou 417 falsos positivos (61%).
Por outro lado, a análise com curvas ROC, tendo Fenton como padrão-ouro, apontou um ponto de corte para o PC de 32cm, para ambos os sexos, coincidindo com a recomendação do Ministério da Saúde 8.
Essa redução do ponto de corte para o PC de 33cm para 32cm aumentou a acurácia da definição de caso de microcefalia, por sexo e IG, segundo padrões de Fenton. Entre os recém-nascidos a termo/pós-termo de ambos os sexos, o número de falsos positivos caiu de 275 (45,9%) para 94 (15,7%).
Contudo, a adoção de um ponto de corte único (32cm), para ambos os sexos, parece não ser adequada 9, visto que resultou em uma redução de 10% na especificidade para o sexo feminino entre os recém-nascido a termo e pós-termo, produzindo um maior número de falsos positivos nesse último grupo. Esse achado explica o maior volume de notificação de suspeitos de microcefalia nesse sexo, apesar da não existência de diferença significativa da proporção de positivos entre os sexos, na população estudada.
Considerando os recém-nascidos pré-termo, a escolha do ponto de corte em 30cm acarretou 14 falsos positivos entre os 85 casos suspeitos.
Por apresentar maior especificidade, o método Intergrowth apontou o PC = 31,5cm como aquele que produziu maior área sob a curva ROC para homens e 31cm para mulheres. No entanto, considerando-se a necessidade de se ter, em situações de triagem, maior sensibilidade que especificidade, a escolha seria de 32cm, para o sexo masculino, e 31,5cm, para o sexo feminino. Vale ressaltar a possibilidade de variação em medidas de PC nessa epidemia, devido a características fenotípicas como o excesso de pele do couro cabeludo em virtude do não crescimento cerebral 10. O ponto de corte do PC em recém-nascidos deve ter boa sensibilidade sem gerar um número excessivo de notificações. A adoção do percentil três das curvas disponíveis pelos dois métodos analisados como critério de classificação implicaria em notificar 3% da coorte de nascimentos a termo como casos suspeitos de microcefalia 11. Em contrapartida, a recomendação de pontos de corte mais baixos, isto é, mais específicos que incluíssem porcentagens menores de nascimentos para serem investigados, poderia excluir casos que necessitassem de investigação para identificar possíveis anormalidades.
Em conclusão, faz-se necessária a análise crítica e continuada de um parâmetro para a vigilância de casos de microcefalia em recém-nascidos, no contexto da atual epidemia. É fundamental explorar outros critérios clínicos e/ou fenotípicos, bem como achados em exames por imagem, na definição de um padrão-ouro mais acurado, orientando, de forma mais efetiva, a notificação, a investigação e a assistência dos casos. Esses aspectos são essenciais para o conhecimento dessa nova síndrome, associada provavelmente à infecção pelo vírus Zika.