Compartilhar

Microcirculação e Doença Cardiovascular

Microcirculação e Doença Cardiovascular

Autores:

Eduardo Tibiriçá,
Andrea De Lorenzo,
Gláucia Maria Moraes de Oliveira

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170

Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.2 São Paulo ago. 2018

https://doi.org/10.5935/abc.20180149

A microcirculação humana apresenta aspectos que a tornam única em relação à sua capacidade de ajustar a oferta de oxigênio e nutrientes às demandas metabólicas de todas as células do organismo, promovendo ajustes no tônus vascular e a liberação de diferentes substâncias vasoativas.1 A resposta vasodilatadora dependente do endotélio de seres humanos varia de acordo com a idade, gênero, leito vascular envolvido, e presença de doença aterosclerótica. As células musculares lisas vasculares sofrem hiperpolarização e relaxamento diferenciados quando expostas ao óxido nítrico (ON), prostaciclina e fatores hiperpolarizantes derivados do endotélio (FHDE), entre outros, sob influência dos fatores descritos acima.2

Na última década, a importância da avaliação da função microvascular tornou-se evidente na investigação da fisiopatologia das doenças cardiovasculares e na estratificação do risco cardiovascular.3 Neste contexto, a microcirculação cutânea tem sido considerada como um leito vascular acessível e representativo na avaliação da reatividade microvascular sistêmica.4 De fato, existem evidências demonstrando a existência de uma associação entre a reatividade microvascular cutânea e a função microcirculatória em diferentes leitos vasculares, tanto com relação aos mecanismos subjacentes quanto na intensidade da resposta vasodilatadora dependente de endotélio.4 Portanto, a avaliação da reatividade microvascular cutânea tem sido proposta como um marcador de prognóstico em doenças crônicas, assim como da ação de medicamentos na função endotelial microvascular.5

A avaliação da microcirculação em humanos foi inicialmente realizada com técnicas invasivas como a angiocoronariografia; porém, com a evolução das técnicas de imagens, tornou-se possível o diagnóstico não-invasivo das anormalidades microcirculatórias nas doenças cardiovasculares. Nesse sentido, têm-se empregado desde técnicas de ultrassonografia, como o ecocardiograma de estresse, passando pela cintilografia miocárdica de perfusão (sendo, ambos, métodos que não avaliam diretamente o fluxo sanguíneo miocárdico, mas que são empregados para detectar isquemia, considerada, na ausência de doença coronariana obstrutiva epicárdica, uma evidência de doença microvascular), até técnicas mais dispendiosas como a tomografia por emissão de pósitrons (PET). O reconhecimento da importância prognóstica da disfunção microvascular coronariana impulsionou os estudos a ela relacionados, embora não seja possível, até o presente momento, a visualização direta de suas anormalidades estruturais; estas são passíveis de avaliação somente através do fluxo miocárdico ou da reserva de fluxo coronariano (RFC).6

A RFC, ou a relação entre o fluxo sanguíneo miocárdico em hiperemia, no pico do estresse, e o fluxo sanguíneo miocárdico em repouso,7 avalia toda a hemodinâmica da circulação coronariana, desde as artérias epicárdicas até a microcirculação, integrando função endotelial e do músculo liso vascular.7 Uma RFC reduzida já demonstrou ser preditora independente de mortalidade, inclusive em pacientes com coronárias epicárdicas normais.8 A RFC pode ser avaliada por PET,9 mas, devido à disponibilidade limitada do método, sua avaliação tornou-se possível, recentemente, através da cintilografia miocárdica (SPECT) em gama-câmaras de estado sólido, como as de telureto-cádmio-zinco (CZT), de maior sensibilidade e melhores resoluções temporal e espacial.10

Conforme mencionado anteriormente, a avaliação da função microcirculatória sistêmica pode ser realizada através de técnicas que medem o fluxo microvascular na pele, de maneira não invasiva. Na clínica médica, as principais metodologias utilizadas atualmente são baseadas na utilização de luz laser, incluindo as técnicas de laser Doppler e o laser speckle com contraste de imagens (LSCI).11 Essas técnicas são usualmente associadas com estímulos fisiológicos ou farmacológicos que permitem a avaliação da reatividade microvascular dependente ou independente do endotélio.12 O estímulo fisiológico costuma ser a hiperemia reativa pós-oclusiva do antebraço, induzindo uma resposta vasodilatadora dependente do endotélio. Os estímulos farmacológicos mais utilizados são a infusão cutânea, através de micro-iontoforese, de acetilcolina (vasodilatação dependente de endotélio) ou de nitroprussiato de sódio (vasodilatação independente de endotélio).12

Neste contexto, realizamos recentemente um estudo com a técnica de LSCI, no qual demonstramos que a resposta vasodilatadora dependente de endotélio da microcirculação cutânea está reduzida em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce, em comparação com indivíduos saudáveis.12 Além disso, a resposta microvascular relacionada com a dilatação do músculo liso vascular também se encontrava reduzida nesses pacientes, em paralelo a aumentos significativos da espessura médio-intimal das artérias carótidas.12 Em outro estudo, demonstramos que a função endotelial microvascular sistêmica está comprometida de maneira semelhante em pacientes com cardiopatia isquêmica ou com a cardiopatia crônica da doença de Chagas.13

Recentemente, adaptamos a técnica de LSCI para a avaliação não invasiva da reatividade da microcirculação peniana.14 Nesse estudo, demonstramos que a LSCI pode ser utilizada na avaliação dos efeitos de medicamentos inibidores da fosfodiesterase tipo 5 na microcirculação peniana de pacientes com hipertensão arterial e disfunção erétil.14

A rarefação da microcirculação tem sido associada a doenças cardiovasculares e metabólicas, incluindo hipertensão arterial, diabetes, obesidade e síndrome metabólica.15 Também já foi demonstrado que as alterações da função microvascular na pele estão correlacionadas ao aumento do risco da doença arterial coronariana.16 Além disso, a rarefação da microcirculação ao nível dos leitos capilares está relacionada a lesões de órgãos-alvo, o que foi sugerido pela existência de uma associação entre doença miocárdica e redução da densidade capilar, assim como de outra associação entre hipertrofia do ventrículo esquerdo e disfunção microvascular cutânea, independentemente dos níveis de pressão arterial sistêmica.17,18 Em estudo recente, demonstramos que a densidade capilar cutânea, assim como o recrutamento capilar dependente de endotélio, estão reduzidos em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce.19

Portanto, a detecção precoce de doença cardiovascular subclínica, através da avaliação da densidade e da reatividade microcirculatória por meio de técnicas não invasivas, poderia representar uma oportunidade de intervenção precoce e, em consequência, de prevenção de eventos cardiovasculares.20 Ainda, a avaliação microcirculatória poderia ser útil na avaliação dos efeitos crônicos de medicamentos de ação cardiovascular, tornando-se atraente não apenas em contextos de pesquisa, mas também na prática clínica.

Desse modo, acreditamos que a avaliação da microcirculação será cada vez mais empregada na prática cardiovascular, tanto para fins de diagnóstico e de prognóstico, como para testar novas intervenções terapêuticas.

REFERÊNCIAS

1 Gutterman DD, Chabowski DS, Kadlec AO, Durand MJ, Freed JK, Ait-Aissa K, et al. The human microcirculation: regulation of flow and beyond. Circ Res. 2016; 118(1)157-72.
2 Durand MJ, Gutterman DD. Diversity in mechanisms of endothelium-dependent vasodilation in health and disease. Microcirculation. 2013; 20(3)239-47.
3 Virdis A, Savoia C, Grassi G, Lembo G, Vecchione C, Seravalle G, et al. Evaluation of microvascular structure in humans: a 'state-of-the-art' document of the Working Group on Macrovascular and Microvascular Alterations of the Italian Society of Arterial Hypertension. J Hypertens. 2014; 32(11)2120-9.
4 Holowatz LA, Thompson-Torgerson CS, Kenney WL. The human cutaneous circulation as a model of generalized microvascular function. J Appl Physiol (1985). 2008; 105(1)370-2.
5 Roustit M, Cracowski JL. Assessment of endothelial and neurovascular function in human skin microcirculation. Trends Pharmacol Sci. 2013; 34(7)373-84.
6 Camici PG, d'Amati G, Rimoldi O. Coronary microvascular dysfunction: mechanisms and functional assessment. Nat Rev Cardiol. 2015; 12(1)48-62.
7 Gould KL, Kirkeeide RL, Buchi M. Coronary flow reserve as a physiologic measure of stenosis severity. J Am Coll Cardiol. 1990; 15(2)459-74.
8 Zeiher AM, Drexler H, Wollschlager H, Just H. Endothelial dysfunction of the coronary microvasculature is associated with coronary blood flow regulation in patients with early atherosclerosis. Circulation. 1991; 84(5)1984-92.
9 Herzog BA, Husmann L, Valenta I, Gaemperli O, Siegrist PT, Tay FM, et al. Long-term prognostic value of 13N-ammonia myocardial perfusion positron emission tomography added value of coronary flow reserve. J Am Coll Cardiol. 2009; 54(2)150-6.
10 Ben-Haim S, Murthy VL, Breault C, Allie R, Sitek A, Roth N, et al. Quantification of Myocardial Perfusion Reserve Using Dynamic SPECT Imaging in Humans: A Feasibility Study. J Nucl Med. 2013; 54(6)873-9.
11 Cracowski JL, Roustit M. Current methods to assess human cutaneous blood flow: an updated focus on laser-based-techniques. Microcirculation. 2016; 23(5)337-44.
12 Souza EG, De Lorenzo A, Huguenin G, Oliveira GM, Tibirica E. Impairment of systemic microvascular endothelial and smooth muscle function in individuals with early-onset coronary artery disease: studies with laser speckle contrast imaging. Coron Artery Dis. 2014; 25(1)23-8.
13 Borges JP, Mendes F, Lopes GO, Sousa AS, Mediano MFF, Tibirica E. Is endothelial microvascular function equally impaired among patients with chronic Chagas and ischemic cardiomyopathy? Int J Cardiol. 2018; 265:35-37.
14 Verri V, Brandao AA, Tibirica E. Penile microvascular endothelial function in hypertensive patients: effects of acute type 5 phosphodiesterase inhibition. Braz J Med Biol Res. 2018; 51(3)e6601.
15 Karaca U, Schram MT, Houben AJ, Muris DM, Stehouwer CD. Microvascular dysfunction as a link between obesity, insulin resistance and hypertension. Diabetes Res Clin Pract. 2014; 103(3)382-7.
16 IJzerman RG, de Jongh RT, Beijk MA, van Weissenbruch MM, Delemarre-van de Waal HA, Serne EH, et al. Individuals at increased coronary heart disease risk are characterized by an impaired microvascular function in skin. Eur J Clin Invest. 2003; 33(7)536-42.
17 Strauer BE. Significance of coronary circulation in hypertensive heart disease for development and prevention of heart failure. Am J Cardiol. 1990; 65(14)34G-41G.
18 Strain WD, Chaturvedi N, Hughes A, Nihoyannopoulos P, Bulpitt CJ, Rajkumar C, et al. Associations between cardiac target organ damage and microvascular dysfunction: the role of blood pressure. J Hypertens. 2010; 28(5)952-8.
19 Tibirica E, Souza EG, De Lorenzo A, Oliveira GM. Reduced systemic microvascular density and reactivity in individuals with early onset coronary artery disease. Microvasc Res. 2015; 97:105-8.
20 Arcêncio L & Evora, PRB. The Lack of clinical applications would be the cause of low interest in an endothelial dysfunction classification. Arq Bras Cardiol. 2017; 108(2):97-99