versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.2 São Paulo ago. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180149
A microcirculação humana apresenta aspectos que a tornam única em relação à sua capacidade de ajustar a oferta de oxigênio e nutrientes às demandas metabólicas de todas as células do organismo, promovendo ajustes no tônus vascular e a liberação de diferentes substâncias vasoativas.1 A resposta vasodilatadora dependente do endotélio de seres humanos varia de acordo com a idade, gênero, leito vascular envolvido, e presença de doença aterosclerótica. As células musculares lisas vasculares sofrem hiperpolarização e relaxamento diferenciados quando expostas ao óxido nítrico (ON), prostaciclina e fatores hiperpolarizantes derivados do endotélio (FHDE), entre outros, sob influência dos fatores descritos acima.2
Na última década, a importância da avaliação da função microvascular tornou-se evidente na investigação da fisiopatologia das doenças cardiovasculares e na estratificação do risco cardiovascular.3 Neste contexto, a microcirculação cutânea tem sido considerada como um leito vascular acessível e representativo na avaliação da reatividade microvascular sistêmica.4 De fato, existem evidências demonstrando a existência de uma associação entre a reatividade microvascular cutânea e a função microcirculatória em diferentes leitos vasculares, tanto com relação aos mecanismos subjacentes quanto na intensidade da resposta vasodilatadora dependente de endotélio.4 Portanto, a avaliação da reatividade microvascular cutânea tem sido proposta como um marcador de prognóstico em doenças crônicas, assim como da ação de medicamentos na função endotelial microvascular.5
A avaliação da microcirculação em humanos foi inicialmente realizada com técnicas invasivas como a angiocoronariografia; porém, com a evolução das técnicas de imagens, tornou-se possível o diagnóstico não-invasivo das anormalidades microcirculatórias nas doenças cardiovasculares. Nesse sentido, têm-se empregado desde técnicas de ultrassonografia, como o ecocardiograma de estresse, passando pela cintilografia miocárdica de perfusão (sendo, ambos, métodos que não avaliam diretamente o fluxo sanguíneo miocárdico, mas que são empregados para detectar isquemia, considerada, na ausência de doença coronariana obstrutiva epicárdica, uma evidência de doença microvascular), até técnicas mais dispendiosas como a tomografia por emissão de pósitrons (PET). O reconhecimento da importância prognóstica da disfunção microvascular coronariana impulsionou os estudos a ela relacionados, embora não seja possível, até o presente momento, a visualização direta de suas anormalidades estruturais; estas são passíveis de avaliação somente através do fluxo miocárdico ou da reserva de fluxo coronariano (RFC).6
A RFC, ou a relação entre o fluxo sanguíneo miocárdico em hiperemia, no pico do estresse, e o fluxo sanguíneo miocárdico em repouso,7 avalia toda a hemodinâmica da circulação coronariana, desde as artérias epicárdicas até a microcirculação, integrando função endotelial e do músculo liso vascular.7 Uma RFC reduzida já demonstrou ser preditora independente de mortalidade, inclusive em pacientes com coronárias epicárdicas normais.8 A RFC pode ser avaliada por PET,9 mas, devido à disponibilidade limitada do método, sua avaliação tornou-se possível, recentemente, através da cintilografia miocárdica (SPECT) em gama-câmaras de estado sólido, como as de telureto-cádmio-zinco (CZT), de maior sensibilidade e melhores resoluções temporal e espacial.10
Conforme mencionado anteriormente, a avaliação da função microcirculatória sistêmica pode ser realizada através de técnicas que medem o fluxo microvascular na pele, de maneira não invasiva. Na clínica médica, as principais metodologias utilizadas atualmente são baseadas na utilização de luz laser, incluindo as técnicas de laser Doppler e o laser speckle com contraste de imagens (LSCI).11 Essas técnicas são usualmente associadas com estímulos fisiológicos ou farmacológicos que permitem a avaliação da reatividade microvascular dependente ou independente do endotélio.12 O estímulo fisiológico costuma ser a hiperemia reativa pós-oclusiva do antebraço, induzindo uma resposta vasodilatadora dependente do endotélio. Os estímulos farmacológicos mais utilizados são a infusão cutânea, através de micro-iontoforese, de acetilcolina (vasodilatação dependente de endotélio) ou de nitroprussiato de sódio (vasodilatação independente de endotélio).12
Neste contexto, realizamos recentemente um estudo com a técnica de LSCI, no qual demonstramos que a resposta vasodilatadora dependente de endotélio da microcirculação cutânea está reduzida em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce, em comparação com indivíduos saudáveis.12 Além disso, a resposta microvascular relacionada com a dilatação do músculo liso vascular também se encontrava reduzida nesses pacientes, em paralelo a aumentos significativos da espessura médio-intimal das artérias carótidas.12 Em outro estudo, demonstramos que a função endotelial microvascular sistêmica está comprometida de maneira semelhante em pacientes com cardiopatia isquêmica ou com a cardiopatia crônica da doença de Chagas.13
Recentemente, adaptamos a técnica de LSCI para a avaliação não invasiva da reatividade da microcirculação peniana.14 Nesse estudo, demonstramos que a LSCI pode ser utilizada na avaliação dos efeitos de medicamentos inibidores da fosfodiesterase tipo 5 na microcirculação peniana de pacientes com hipertensão arterial e disfunção erétil.14
A rarefação da microcirculação tem sido associada a doenças cardiovasculares e metabólicas, incluindo hipertensão arterial, diabetes, obesidade e síndrome metabólica.15 Também já foi demonstrado que as alterações da função microvascular na pele estão correlacionadas ao aumento do risco da doença arterial coronariana.16 Além disso, a rarefação da microcirculação ao nível dos leitos capilares está relacionada a lesões de órgãos-alvo, o que foi sugerido pela existência de uma associação entre doença miocárdica e redução da densidade capilar, assim como de outra associação entre hipertrofia do ventrículo esquerdo e disfunção microvascular cutânea, independentemente dos níveis de pressão arterial sistêmica.17,18 Em estudo recente, demonstramos que a densidade capilar cutânea, assim como o recrutamento capilar dependente de endotélio, estão reduzidos em pacientes com doença arterial coronariana de início precoce.19
Portanto, a detecção precoce de doença cardiovascular subclínica, através da avaliação da densidade e da reatividade microcirculatória por meio de técnicas não invasivas, poderia representar uma oportunidade de intervenção precoce e, em consequência, de prevenção de eventos cardiovasculares.20 Ainda, a avaliação microcirculatória poderia ser útil na avaliação dos efeitos crônicos de medicamentos de ação cardiovascular, tornando-se atraente não apenas em contextos de pesquisa, mas também na prática clínica.
Desse modo, acreditamos que a avaliação da microcirculação será cada vez mais empregada na prática cardiovascular, tanto para fins de diagnóstico e de prognóstico, como para testar novas intervenções terapêuticas.