versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
Braz. J. Nephrol. vol.42 no.1 São Paulo jan./mar. 2020 Epub 21-Out-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0133
A lesão renal aguda (LRA) é uma síndrome frequente, principalmente em pacientes hospitalizados. A LRA associa-se a maior morbidade e mortalidade a curto e longo prazo. A enfermidade é atualmente definida como declínio abrupto na taxa de filtração glomerular (TFG) resultante de lesão que causa alteração funcional ou estrutural nos rins. Os fatores levados em conta em seu reconhecimento são elevação dos níveis de creatinina sérica e diurese inferior a 0,5 mL/kg/h1. A LRA ocorre em diversos contextos e pode variar de elevações mínimas na creatinina sérica à insuficiência renal anúrica e, consequentemente, à necessidade de terapia renal substitutiva (TRS). A LRA é uma das possíveis complicações da cirurgia cardíaca. Pickering et al. relataram frequência de LRA de 18,2% e necessidade de TRS de 2,1% em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea. Foi também identificada associação entre LRA e morbimortalidade significativa, independentemente de todos os outros fatores2. Outra metanálise que incluiu pacientes adultos relatou incidência de LRA em 22,3% do grupo analisado, sendo 13,6% com doença estágio I, 3,8% estágio II e 2,7% estágio III. TRS foi administrada para 2,3% dos pacientes3.
Contudo, os critérios atuais de LRA têm sido criticados em função de suas limitações, insensibilidade para detecção precoce de lesão renal e falta de especificidade. De modo a superar tais limitações, vários biomarcadores foram avaliados para o diagnóstico precoce e a estratificação do risco de LRA, como o método que combina interleucina-18 (IL-18) e molécula-1 de lesão renal (KIM-1)4.
Recentemente, uma combinação de dois biomarcadores, o inibidor tecidual de metaloproteinases-2 (TIMP-2)2 e a proteína de ligação a fator de crescimento semelhante à insulina 7 (IGFBP7)5, foi aprovada como teste para determinar o risco de desenvolvimento de LRA de moderada a grave em pacientes críticos6. Os dois biomarcadores são marcadores de parada do ciclo celular e foram escolhidos entre mais de 300 candidatos.
O sedimento urinário é um indicador biológico objetivo para processos renais normais ou patogênicos que pode ser utilizado como biomarcador de LRA7. A descrição clássica da microscopia urinária de pacientes com necrose tubular aguda (NTA) inclui a presença de células epiteliais tubulares renais (CETR), cilindros de células epiteliais renais, cilindros granulares (CG) ou mistos. Por outro lado, os sedimentos de pacientes com LRA pré-renal apenas ocasionalmente apresentam cilindros hialinos5,8,9,10.
Perazella et al. avaliaram sedimentos urinários para diferenciar NTA de LRA pré-renal e mostraram que a presença de CETR e CG foram preditores de NTA11,12,13. Os autores também avaliaram 249 pacientes com LRA e propuseram um sistema de pontuação baseado nos números de CG e CETR associados aos estágios de LRA no momento da consulta e do seguimento5.
O presente trabalho avalia a urinálise microscópica como critério diagnóstico para LRA nas primeiras 24 horas de pós-operatório em pacientes submetidos a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea.
O presente estudo observacional prospectivo foi realizado na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Tomando por base uma frequência de LRA de 30%, foi necessária uma amostra de 110 pacientes para proporcionar ao estudo o poder estatístico de 80% para detectar uma razão de chances de 3 com alfa bicaudal de 0,05. Os dados foram colhidos de julho de 2015 a março de 2016.
Foram incluídos participantes com idade acima de 18 anos submetidos a cirurgia cardíaca eletiva com circulação extracorpórea. O critério de exclusão foi presença de doença renal crônica definida como taxa de filtração glomerular estimada inferior a 60 mL ou presença de proteinúria ou hematúria na urinálise pré-operatória.
A creatinina sérica foi medida pelo método cinético automático. Para a urinálise, amostras de urina frescas foram obtidas nas primeiras 24 horas após a cirurgia e examinadas em menos de uma hora. Todas as amostras foram colhidas de cateteres urinários. As amostras (10 mL) foram centrifugadas a 1500 rpm por cinco minutos numa centrífuga padrão. O sobrenadante (9,5 mL) foi decantado e o resíduo (0,5 mL) ressuspendido por agitação manual suave de tubos de ensaio. Uma única gota de sedimento urinário foi pipetada em uma lâmina de vidro e uma lamínula foi aplicada. Não houve variação no tipo de lâminas e lamínulas utilizadas no estudo. O sedimento urinário foi analisado para ausência ou presença de CETR e CG. Quando presente, a quantificação foi realizada por microscopia de campo claro e de contraste de fase com lentes de baixa (x10) e alta potência (x40).
Outros elementos como células epiteliais, eritrócitos, leucócitos, outros tipos de cilindros urinários e cristais também foram registrados. As leituras da urinálise foram cegadas para o diagnóstico de LRA. O equipamento analítico utilizado foi o Clinitek Advantus da Siemens. Tiras de reagentes Multistix 10SG da Siemens (Siemens Healthneers, Alemanha) foram utilizadas.
Foi utilizado um sistema de pontuação baseado na soma dos escores atribuídos ao número de CETR e/ou CG presentes no sedimento. Zero CG em ampliação de baixa potência ou zero CETR em ampliação de alta potência = 0 pontos; 1 a 5 CG em ampliação de baixa potência ou 1 a 5 CETR em ampliação de alta potência = 1 ponto; mais de 6 CG em ampliação de baixa potência ou mais de 6 CETR em ampliação de alta potência = 2 pontos. A pontuação final variou de 0 a 45.
Dados sobre creatinina, diurese, tempo de internação em unidade de terapia intensiva e duração da internação hospitalar foram extraídos dos prontuários dos pacientes. Variáveis perioperatórias (idade, sexo, peso, altura e comorbidades) e duração da cirurgia, tempo de pinçamento aórtico e tempo de perfusão também foram registrados.
O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos.
Os dados categóricos foram apresentados como percentuais. As variáveis contínuas foram descritas na forma de médias ou medianas, conforme o caso. Sensibilidade, especificidade, valor preditivo positivo, valor preditivo negativo, razão de verossimilhança positiva, razão de verossimilhança negativa, razão de chances diagnóstica, índice de Youden, acurácia e ASC-COR foram calculados de modo a avaliar as propriedades diagnósticas do sedimento urinário como biomarcador de LRA14. A análise estatística foi realizada no SPSS versão 22 com o auxílio da calculadora de avaliação do teste MedCal Diagnostic (versão gratuita online).
Um total de 114pacientes submetidos a cirurgia cardíaca com circulação extracorpórea foram avaliados. Os pacientes tinham idade média de 62,3 anos (DP 11,2) e 67,5% eram do sexo masculino. A creatinina sérica (CrS) média no pré-operatório foi 0,91 mg/dL (DP 0,22). A Tabela 1 descreve os pacientes e as características da cirurgia.
Tabela 1 Pacientes e características cirúrgicas
Idade média, anos (DP) | 62,3 (11,2) |
Sexo masculino | 67,5 % |
Índice de massa corporal (kg/m2) | 27,99(4,82) |
Hipertensão | 81,58 % |
Diabetes | 30,70 % |
DPOC | 7,89 % |
Doença vascular periférica | 8,77 % |
Histórico de infarto do miocárdio | 20,07 % |
Outras comorbidades | 6,14 % |
Tipo de cirurgia | |
Revascularização coronariana válvula | 67,55 % |
Revascularização coronariana e válvula aórtica | 13,16 % |
Aórtica e válvula | 9,65 % |
Aórtica e revascularização coronariana | 4,39 % |
Mixoma atrial | 1,75 % |
CrS pré-operatória (mg/dL), média (DP) | 0,91 (0,22) |
Tempo de perfusão (min), média (DP) | 88,29 (36,06) |
Tempo pinçamento aórtico (min), média (DP) | 68,22 (23,67) |
Duração cirurgia (min), média (DP) | 314,31 (76,52) |
DP: desvio padrão; DPOC: doença pulmonar obstrutiva crônica.
Segundo o critério da KDIGO para CrS, 23 pacientes (20,17%) apresentavam LRA, sendo 16 com doença estágio I, três com LRA estágio II e quatro com LRA estágio III. Setenta e seis pacientes (66,67%) tinham LRA pelo critério de diurese, 20 dos quais também satisfaziam o critério de CrS. Considerando CrS e/ou diurese, 79 (69,3%) indivíduos apresentavam LRA. Quatro pacientes (3,51%) necessitaram de TRS, três foram a óbito e um recuperou a função renal. Um paciente classificado como estágio II foi a óbito. A taxa de mortalidade foi de 3,51% entre todos os pacientes com LRA.
Escores de sedimento urinário de 0, 1 e 2 foram identificados em 94, 13 e seis pacientes, respectivamente. Um paciente tinha escore de sedimento urinário de 4. Os escores de sedimento para cada estágio de LRA encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 Escore de microscopia urinária em cada estágio de LRA
Microscopia urinária |
Sem LRA N (%) | LRA Estágio | Total Total (%) | ||
---|---|---|---|---|---|
Estágio I N (%) | Estágio II N (%) | Estágio III N (%) | |||
Escore 0 | 78 (85,7) | 12 (75) | 3 (100) | 1 (25) | 94 (82,5) |
Escore 1 | 9 (9,9) | 2 (12,5) | 0 | 2 (50) | 13 (11,4) |
Escore 2 | 4 (4,4) | 1 (6,3) | 0 | 1 (25) | 6 (5,3) |
Escore 4 | 0 (0) | 1 (6,3) | 0 | 0 (0) | 1 (0,9) |
Total (%) | 91 (79,8) | 16 (14) | 3 (2,6) | 4 (3,5) | 114 (100) |
Uma vez que o número de pacientes com escores 2 e 4 foi baixo, tivemos que analisar a capacidade preditiva do sedimento urinário para LRA através de qualquer escore maior que um, como mostrado na Tabela 3. Os cálculos fundamentados nos critérios de CrS, diurese e ambos foram realizados separadamente.
Tabela 3 Escore de sedimento urinário 1 ou maior e desenvolvimento de LRA
Critério LRA creatinina(IC 95%) |
Critério LRA diurese (IC 95%) |
Critério LRA creatinina e/ ou diurese (95%CI) |
|
---|---|---|---|
Sensibilidade | 34,78 % (16,38 - 57,27) | 23,68 % (14,68 - 34,82) | 22,78% (14,10 - 33,60) |
Especificidade | 86,81 % (78,10 - 93,00) | 92,11 % (78,62 - 98,34) | 94,29% (80,84 - 99,30) |
Valor preditivo positivo | 40,00 % (19,12 - 63,95) | 85,71 % (63,66 - 96,95) | 90,00% (68,82 - 97,35) |
Valor preditivo negativo | 84,04 % (75,05 - 90,78) | 37,63 % (27,79 - 48,28) | 35,11% (31,88 - 38,47) |
Razão de verossimilhança positiva | 2,64 (1,22 - 5,69) | 3,00 (0,94 - 9,56) | 3,99 (0,98 - 16,26) |
Razão de verossimilhança negativa | 0,75 (0,55 - 1,02) | 0,83 (0,71 - 0,97) | 0,82 (0,71 - 0,95) |
Acurácia | 74,56% (65,55 - 82,25) | 45,61% (36,26 - 55,21) | 44,74% (35,74 - 54,34) |
Razão de chance diagnóstica | 2,62 ( 0,90 - 7,61) | 3,36 (0,92 - 12,29) | 4,86 (1,06 - 22,28) |
Índice de Youden | 0,2159 | 0,1579 | 0,1707 |
ASC-COR | 0,584 (0,445 - 0,723) | 0,573 (0,465 - 0,680) | 0,583 (0,477 - 0,693) |
A área sob a curva COR é mostrada na Figura 1. A média do pico de creatinina sérica entre pacientes com LRA foi 1,71 mg/dL (DP 0,57). A mesma média para pacientes sem LRA foi 0,92 mg/dL (DP 0,23). Os valores para indivíduos com LRA estágios I, II e III foram 1,52 mg/dL (SD 0,37), 1,41 mg/dL (0,24) e 2,68 mg/dL (0,33), respectivamente. O tempo médio até o pico de creatinina sérica foi 27,5 h (DP 18,31) com mediana de 19 h. A CrS dos pacientes com LRA estágio I retornou a níveis basais após 24 h.
A incidência de LRA e a necessidade de TRS foram semelhantes aos percentuais relatados na literatura2,3,15. A diferença na incidência demonstrada pelos critérios de CrS e diurese foi semelhante à descrita por McIlroy et al.16. Tal diferença é problemática para a atual definição do KDIGO, particularmente no tocante a oligúria17.
Em nosso estudo, o sedimento urinário mostrou baixa sensibilidade e alta especificidade. Schinstock et al. consideraram a identificação de cilindros positiva e relataram sensibilidade de 29,6% (IC 95%: 15,9 - 48,5) e especificidade de 89,9% (IC 95%: 86,2 - 92,7). Os autores concluíram que mesmo a presença de um CETR ou CG por campo de alta potência resulta em mais de 90% de especificidade para o diagnóstico de LRA, apesar de não apresentar sensibilidade para tal fim18.
Uma revisão sistemática identificou cinco estudos a respeito do papel da microscopia urinária no diagnóstico diferencial de LRA e na predição de desfechos em pacientes internados. Todos os estudos confirmaram que a microscopia urinária é um subsídio valioso no diagnóstico diferencial de LRA9. Contudo, sete artigos sobre LRA relacionada a sepse que conjuntamente incluíram 174 pacientes não chegaram a uma conclusão10.
Hall et al. estudaram 249 pacientes com LRA e compararam biomarcadores tradicionais e novos. Os autores concluíram que os biomarcadores de proteinúria e microscopia aprimoraram significativamente a determinação clínica do prognóstico. O sedimento urinário apresentou uma ASC-COR de 0,66 (IC 95%: 0,57-0,75) semelhante a NGAL, KIM-1 e IL-1819. Outra metanálise que incluiu 28 estudos de biomarcadores de LRA em cirurgia cardíaca concluiu que tais marcadores apresentavam uma discreta discriminação e relatou valores compostos de ASC-COR entre 0,63 e 0,7220.
Chawla et al. desenvolveram e avaliaram a precisão de um índice de escore para presença de cilindros. A concordância interobservador foi de 99,8% (DP 0,29) com coeficiente de variação de 1,24%. O índice considerou CG e cilindros de células epiteliais por percentual de campos de baixa potência com pelo menos um cilindro21. Ainda não há definição sobre se o primeiro critério ou o número de CG por campo de baixa potência e células epiteliais renais por campo de alta potência, como proposto, devem ser utilizados22.
O delineamento prospectivo, a homogeneidade da coorte e LRA definida pelos critérios do KDIGO são fortes vantagens deste estudo. Além disso, os examinadores de urina foram cegados para o diagnóstico. O pequeno número de casos, o fato de ter sido realizado em um único centro, bem como a inexistência de comparação com outros índices urinários ou biomarcadores são as limitações do presente estudo.
A microscopia urinária é um exame facilmente disponível, não invasivo, acessível e que requer equipamentos simples. Em nosso estudo, a presença de células epiteliais tubulares renais e cilindros granulares resultou em elevada especificidade para o diagnóstico precoce de LRA. A microscopia urinária pode ser usada em conjunto com outros biomarcadores de LRA precoce de forma a aprimorar o poder discriminatório do método.