versão On-line ISSN 2526-8910
Cad. Bras. Ter. Ocup. vol.28 no.1 São Carlos jan./mar. 2020 Epub 14-Fev-2020
http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoar1920
A época em que vivemos se distingue de todas as precedentes. Nomeada como pós-modernidade por muitos intelectuais, ela é marcada pela globalização e pela revolução tecnológica que reduziram fronteiras entre países, povos e costumes. A comunicação imediata gera influências recíprocas em todas as partes do mundo. Para definir o tempo presente, o sociólogo Zygmunt Bauman (2001) criou o conceito de modernidade líquida. Em várias de suas obras, como em Intimations of postmodernity, ele empregou o termo “líquido”, que se contrapõe a “sólido”, para interpretar a principal característica de nossa época: a fluidez. Segundo Bauman (1999), a partir da revolução tecnológica, as formas de vida contemporânea se assemelham à fluidez, não mantendo a mesma identidade por muito tempo, pois as relações sociais e os laços humanos são marcados pela fragilidade e vulnerabilidade. Essas mudanças vêm ocorrendo desde a segunda metade do século XX e, nesse novo cenário, conforme o autor, o tempo se sobrepõe ao espaço; as pessoas se movimentam, isto é, comunicam-se, sem sair do lugar. O tempo líquido, fluido, permite o instantâneo e o temporário. Ainda de acordo com Bauman (1992), diferentemente das épocas anteriores que conservavam sua forma e seus valores por muito tempo, a nossa produz menos certezas. Por um lado, nessa sociedade, cresceu a sensação de liberdade individual; por outro, isso não garante necessariamente um estado de satisfação, pois, ao mesmo tempo em que ela proporciona mais liberdade, transfere para os próprios indivíduos a responsabilidade pelos seus atos. Diante de um futuro incerto, o sentimento dominante é o de viver o presente apenas para si e essa instabilidade e ausência de perspectiva geram angústia e sentimento de solidão. Para o sociólogo polonês, o fato de as pessoas estarem conectadas pela rede mundial de computadores não lhes proporciona a criação de laços estáveis e nem a experiência de real compartilhamento.
Essa compreensão sobre a sociedade contemporânea embasa a análise aqui realizada a respeito do comportamento alimentar dos adolescentes. Isso porque a fluidez das mudanças gera também o entrelaçamento entre valores externos e internos a uma determinada cultura. Como se lê em Culture as práxis, hoje podemos nos indagar sobre em que extensão os fatores geo-físicos, tanto naturais quanto fronteiras artificiais, separam as identidades de povos e culturas já que em qualquer formação sociocultural contemporânea são tênues as distinções entre “dentro” e “fora” (Bauman, 1999, p. 72).
Sendo assim, considerando os adolescentes como um grupo etário em transição, vivendo sob a plena revolução tecnológica e os efeitos da mídia, depreende-se o quanto esse grupo está sujeito às vulnerabilidades próprias dessa condição. Isso porque, no aspecto específico que motivou a pesquisa aqui apresentada, é preciso considerar que as mudanças sociais anteriormente referidas se aplicam a todos os aspectos da vida e muito intensamente à própria forma de se alimentar. No Brasil, por exemplo, até a década de 1980, diferentemente de países altamente industrializados, era incomum se alimentar em ambientes públicos. Essa mudança cultural, decorrente das transformações econômicas, afetou principalmente o padrão de alimentação das crianças, jovens e adolescentes das gerações atuais, pois elas nasceram em uma sociedade industrializada e globalizada. Isso significa que essa população está mais suscetível aos valores de mercado do que as gerações antecedentes, inclusive na incorporação de padrões estéticos típicos dessa lógica; por isso, o desejo de aderir a modelos lhes traz angústia e frustração.
Foi realizada uma revisão de literatura que utilizou as bases de dados Medline, PubMed e a biblioteca eletrônica SciELO a fim de identificar artigos científicos publicados de 1992 a 2016. Esse período foi demarcado tendo em vista o objetivo da pesquisa, que consistiu em verificar o comportamento alimentar de adolescentes sob influência da mídia, fenômeno que vem crescendo aceleradamente a partir da década de 1990. Essa crescente influência é comprovada pelas datas dos artigos apresentados nos dois Apêndices, pois eles mostram concentração de publicações desde o fim da referida década, sinalizando o interesse pelo assunto em anos mais recentes. Quanto aos indexadores, foram utilizados os termos “adolescentes”, “comportamento alimentar”, “imagem corporal”, “transtornos alimentares”, “mídia” e seus correspondentes em inglês “adolescentes”, “eating behavior”, “body image”, “eating disorder” e “media”. Nessa busca foram incluídas publicações em inglês e português que continham pelo menos um dos descritores selecionados e que associavam o comportamento alimentar com adolescentes. Aproximadamente 150 artigos foram encontrados. No entanto, realizando a sua classificação, concluiu-se que, desse total, 55 eram mais atinentes ao objetivo específico desta pesquisa. Todos foram importantes para a compreensão geral do tema, mas estão discriminados nos Apêndices A e B apenas aqueles que foram utilizados para embasar este artigo, isto é, 10 em inglês e 25 em português.
A magreza relacionada à beleza é um padrão que vem sendo criado no Ocidente desde a segunda metade do século XX. Provavelmente, a imagem mais marcante dessa tendência tenha sido a da modelo inglesa Leslie Lawson, mais conhecida como Twiggy. Com apenas 16 anos de idade, de cabelos curtos e olhos fundos, ela foi exibida em uma imagem quase anoréxica que ficou mundialmente conhecida, tornando-se precursora da magreza na década de 1960. Com o aumento do poder da mídia, a difusão desse padrão foi amplificada, chegando ao ápice a partir da década de 1990.
Souto & Ferro-Bucher (2006) sinalizam que a ênfase da sociedade contemporânea no ideal de magreza, as intensas propagandas na mídia sobre uma infinidade de regimes e de produtos dietéticos, bem como o crescimento de academias e de revistas sobre o assunto, fornecem o ambiente sociocultural que justifica a perda de peso, trazendo consigo uma simbologia de que a beleza física proporciona autocontrole, poder e “modernidade”. Entretanto, essa imagem corporal idealizada é um padrão impossível ou impróprio, incompatível para a grande maioria da população.
Para os autores Andrade & Bosi (2003), o culto à magreza está diretamente associado à imagem de poder, beleza e mobilidade social, gerando um quadro contraditório, “esquizofrenizante”, tendo em vista que, por meio da mídia escrita e televisiva, a indústria de alimentos vende gordura, com o apelo aos alimentos hipercalóricos, enquanto a sociedade cobra magreza.
A mídia, termo usado no Brasil para designar o conjunto de meios de comunicação dedicados a divulgar informações, de forma alguma é neutra. Atualmente, ela desempenha papel determinante, criando e difundindo ideias, comportamentos e, portanto, exercendo forte função ideológica sobre o conjunto da sociedade, diferentemente de épocas passadas, nas quais a família, as igrejas e a escola eram as principais instituições formadoras. Setton (2002) discute especificamente a mídia como instrumento pedagógico e seu papel na escola constatando que ela mudou relações sociais que antes eram estáveis. Pela presença que ela vem exercendo na vida contemporânea, a sua relação com os adolescentes é um dado fundamental para a compreensão sobre o seu comportamento alimentar.
Com a entrada na adolescência, as escolhas alimentares se tornam mais autônomas e independentes. Entretanto, essa maior autonomia nas tomadas de decisões parece estar associada a um aumento de comportamentos alimentares inadequados, ao contrário do que seria desejável (Neumark-Sztainer et al., 2011).
Para Fisberg (2000, apud Bertin et al., 2008, p. 436),
[...] esse comportamento alimentar está vinculado aos padrões manifestados pelo grupo etário a que pertencem, pelo consumo de alimentos com alto valor energético e pobre em nutrientes, omissão de refeições, ingestão precoce de bebidas alcoólicas e tendência às restrições alimentares, cujas práticas podem contribuir com alterações no estado nutricional.
Nesse contexto, compreender o comportamento alimentar requer a reflexão sobre o ato mais intrínseco à sobrevivência humana e que envolve aspectos históricos e sociológicos: quem é o sujeito que se alimenta? Onde e como se alimenta? Por que se alimenta de uma determinada forma e não de outra? A discussão sobre essas indagações envolve dimensões interdisciplinares sobre Saúde e Psicologia, além de fatores socioeconômicos e de marketing (Köster, 2009).
O maior acesso à mídia na adolescência tem sido associado ao aumento de peso e à menor aptidão física na vida adulta, insatisfação corporal, inabilidade em controlar o peso corpóreo e comportamentos de risco para transtornos alimentares (Benowitz-Fredericks et al., 2012).
Segundo Coimbra (2001), o poder da mídia é um dos mais importantes equipamentos sociais para produzir esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo. Nessa perspectiva, “ser belo” e “ser magro” se configura como um modelo de unidade propagado pelos meios de comunicação que produzem formas de existir e se relacionar.
O aumento da prevalência dos transtornos alimentares, o crescimento da mídia e a expansão de informações sobre saúde, alimentação e dieta constituem fatores que merecem ser estudados. Sendo assim, a contribuição específica deste artigo é a abordagem da relação entre mídia e escolhas alimentares que podem incidir na imagem corporal e no possível desenvolvimento de transtornos alimentares em adolescentes.
Para tanto, é importante considerar a adolescência não apenas como uma fase biológica da vida, mas relacioná-la aos diferentes contextos sociais nas quais ela se insere. Como assinalaram Lopes et al. (2008, p. 65):
[…] o debate acerca das concepções com relação à juventude e à adolescência é essencial, pois a partir delas serão retratadas e interpretadas suas formas de ser e estar no mundo e, além disso, a maneira como a sociedade se organiza na atenção a essas fases da vida, especialmente o modo como são configurados os direitos e os deveres dos adolescentes e dos jovens e quais são as ações sociais e políticas reivindicadas.
Desse modo, estudar o comportamento alimentar dos adolescentes envolve questões mais complexas que vão além do ato biológico, pois se relacionam também ao seu contexto psicossocial.
A adolescência é uma fase que antecede a vida adulta. Comumente, ela é compreendida como uma preparação para esta, embora saibamos que, na verdade, não existe separação entre “preparar-se para alguma coisa” e o ato de viver. Isso porque, essencialmente, só existe o viver, que é um processo contínuo, sem demarcações rígidas.
A adolescência é geralmente entendida como fase da existência caracterizada pela transição entre infância e vida adulta. No entanto, historicamente, essas passagens variaram e nem sempre existiu a compreensão sobre elas. Além disso, mesmo com a globalização, há sociedades nas quais a adolescência não existe.
Para a Organização Mundial da Saúde, a adolescência, faixa etária entre 10 e 19 anos de idade, é definida como um período da vida que merece particular atenção. No Brasil, ela está legalmente determinada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como uma faixa etária que se estende dos 12 aos 18 anos de idade (Brasil, 2002). Castro et al. (2010) afirmam que esse período é caracterizado por diversas modificações físicas, comportamentais e psicossociais, entre outras, e é marcada por transformações relacionadas à formação da autoimagem do indivíduo. A diversidade e a intensidade dessas mudanças, aliadas a atitudes de rebeldia, à tentativa de independência, ao desejo de transgressão e à falta de preocupação com um futuro distante podem influenciar os hábitos alimentares e outros comportamentos que tendem a repercutir sobre a saúde e bem-estar dos adolescentes.
Na maioria das sociedades industrializadas, durante a adolescência são incorporadas características relacionadas à descoberta e vivência de múltiplos aspectos sociais e emocionais. Sendo uma fase de transição, para grande parte dos autores que embasaram esta pesquisa, os adolescentes podem se engajar em comportamentos de risco potencialmente capazes de comprometer a sua saúde física e mental. Diversos comportamentos podem oferecer risco, como uso de substâncias alcoólicas, cigarro e outras drogas, comportamento sexual de risco, comportamento antissocial, comportamento suicida, hábitos alimentares não saudáveis, prática inadequada de atividades físicas, entre outros (Zappe & Dell’Aglio, 2016).
Para Frois et al. (2011), essa fase da vida é denominada adolescentização, que é o processo de valorização de características típicas que, em tese, antecedem deveres e papéis sociais de adulto, como a construção e apropriação de uma identidade corporal e a experimentação de novas referências corporais.
Ainda para os autores, nessa busca, o adolescente se vê diante de novas demandas de ordem afetiva, hormonal e física. Sendo assim, a imagem corporal precisará se ajustar às suas novas demandas. De acordo com Castro et al. (2010), a imagem corporal pode ser definida como a percepção que o sujeito tem do próprio corpo com base nas sensações e experiências vividas ao longo da vida. Ela pode ser influenciada por inúmeros fatores de origem física, psicológica, ambiental e cultural no âmbito da subjetividade de cada ser humano, como sexo, idade, meios de comunicação, crenças, raça e valores.
A imagem corporal é a figura mental formada acerca do tamanho, da aparência e da forma do corpo (Schilder, 1999). Esse construto é multifacetado e envolve duas dimensões: a perceptiva e a atitudinal. A primeira se refere à acurácia no julgamento do tamanho do corpo (Ferreira et al., 2014). A segunda pode ser subdividida em três componentes: cognitivo, comportamental e afetivo.
O componente cognitivo diz respeito às crenças e pensamentos relacionados ao próprio corpo (Ferreira et al., 2014). Segundo esses mesmos autores, investimentos no corpo a fim de melhorar a aparência física como principal critério de auto-avaliação são aspectos cognitivos da imagem corporal. O segundo componente (comportamental) da imagem corporal se caracteriza por comportamentos relacionados ao corpo. Dentre eles, destacam-se a evitação e a checagem corporal, já que estes servem como parâmetros de avaliação do indivíduo no julgamento de seu sucesso ou de sua falha no controle do peso (Shafran et al., 2004). Assim, indivíduos descontentes com sua imagem corporal tendem a apresentar rituais de pesagens, medidas e comparações de seu corpo com o de outros indivíduos (Fairburn et al., 1999). Esses comportamentos ocorrem porque, nas sociedades ocidentais, caracterizadas por um crescente aumento de consumo e competitividade, as pessoas são induzidas a ambicionar um determinado padrão de corpo.
Por fim, o terceiro componente (afetivo) diz respeito aos sentimentos em relação ao corpo. Envolve a insatisfação corporal, que pode ser compreendida como a avaliação negativa do próprio corpo (Ferreira et al., 2014) e, atualmente, é observada tanto em mulheres quanto em homens (Cafri et al., 2005; Murnen, 2011). Além disso, ela pode ser influenciada por diversos fatores, como: mídia, idade, sexo, Índice de Massa Corporal (IMC), prática de atividade física, dentre outros (Damasceno et al., 2006). Frois et al. (2011, p. 74) afirmam que:
[...] nesse processo de construção e reconstrução cíclica da imagem corporal situam-se todos – crianças, jovens, adultos e idosos, mas é na adolescência que se dá um processo de luto típico do corpo infantil, o que permite uma mudança significativa do posicionamento do corpo no mundo.
Assim, ainda que o processo de reconstrução da imagem corporal seja uma possibilidade constante ao longo da vida, é na adolescência que essa demanda se torna indiscutível, pois as contradições apresentadas não giram em torno apenas do desejo de se ter um corpo diferente do que se tem, mas apontam para uma mudança implacável do corpo movida por questões hormonais e físicas, gerando demandas de ajustamento estruturais.
Nesse aspecto, Damasceno et al. (2006, p. 85) pontuam que: “[...] pessoas mais velhas parecem sofrer menos influências, ou talvez por fatores biológicos, tenham menos desejo de ter um ‘corpo sarado’, apresentando menor insatisfação corporal quando comparadas com pessoas mais jovens”.
Uma série de estudos demonstra que indivíduos mais velhos são menos exigentes em relação à sua aparência. Em contrapartida, os jovens estão mais expostos aos efeitos da indústria cultural e são impelidos a desejar um “corpo perfeito”, ditado por essa mesma indústria, fator que pode gerar angústia, frustração e sofrimento. Isso quer dizer que, quanto mais uma sociedade esteja submetida à lógica do consumo e da indústria cultural, mais ela provoca esses sentimentos em seus adolescentes.
Estudos têm demonstrado que a insatisfação corporal pode levar a comportamentos alimentares inadequados em busca do corpo supostamente ideal (Alves et al., 2008; Bosi et al., 2008). Esses comportamentos podem estar relacionados ao desenvolvimento de transtornos alimentares (Phillippi & Alvarenga, 2004).
Frois et al. (2011) acrescentam que os jovens buscam figuras idealizadas, o que é típico de sua fase existencial. Eles constroem essas idealizações com base em figuras identificatórias, mas é com base nas figuras parentais seguras e satisfatórias que atuam com limites claros, indicando uma autoridade razoável e sustentando uma imagem corporal que o adolescente pode buscar uma oposição, desejar novos paradigmas e, posteriormente, apropriar-se de uma identidade corporal. Ter pais com uma organização da própria corporeidade não conflitiva, em harmonia com o modo como se vê e se relaciona no mundo é um indicativo para saídas saudáveis para os adolescentes diante dos conflitos com a imagem corporal. Assim, o adolescente poderá construir uma identidade corporal satisfatória para si, uma imagem corporal congruente com suas vivências, percepções e subjetividades. Em outras palavras, tendo uma referência familiar saudável de como lidar com o próprio corpo, os adolescentes terão melhores condições para enfrentar o problema da imposição de padrões típicos da sociedade de consumo e da indústria cultural.
De acordo com as fontes consultadas nesta pesquisa, o comportamento é entendido como uma função conjunta de fatores filogenéticos que operam durante o processo de evolução de uma dada espécie, e de fatores ontogenéticos, que operam nas interações de um dado organismo dessa espécie com seu ambiente (Catania, 1999).
Segundo Quaioti & Almeida (2006), o comportamento alimentar reflete interações entre o estado fisiológico, psicológico e as condições ambientais de um indivíduo.
A busca crescente por uma maior compreensão do comportamento alimentar é observada na literatura a partir da década de 1990. No entanto, segundo Toral (2006), são poucos os autores que apresentam uma definição explícita, sendo comum limitar o debate do tema ao entendimento de suas influências, as quais incluem uma complexa gama de fatores nutricionais, demográficos, sociais, culturais, ambientais e psicológicos.
Para Carvalho et al. (2013), o comportamento alimentar pode ser definido como todas as formas de convívio com o alimento. Semelhante ao conceito de Garcia (1999), encontrado no estudo de Vaz & Bennemann (2014), o qual diz que o comportamento alimentar se refere a atitudes relacionadas às práticas alimentares em associação a atributos socioculturais, como os aspectos subjetivos intrínsecos do indivíduo e próprios de uma coletividade, que estejam envolvidos com o ato de se alimentar ou com o alimento em si.
Philippi et al. (1999, apud Matias & Fiore, 2010, p. 55) afirmam em seus estudos que “[…] o comportamento alimentar é um conjunto de ações relacionadas ao alimento, que começa com a decisão, disponibilidade, modo de preparo, utensílios, horários e divisão das refeições e encerra com a ingestão”.
Portanto, assim como define Atzingen (2011), o comportamento alimentar acaba se tornando algo muito complexo, pois comer é um ato social que vai além das necessidades básicas de alimentação, indispensável ao desenvolvimento dos valores vitais, comum a todo ser humano, e está associado com as relações sociais, às escolhas inseridas em cada indivíduo por meio de gerações e às sensações proporcionadas pelos sentidos.
No momento da alimentação, o indivíduo busca atender a suas necessidades fisiológicas e hedônicas. Portanto, esse comportamento jamais pode ser definido com base no indivíduo como algo único e isolado, mas sim com base em suas relações com o meio. Isso porque não se pode esquecer que na sociedade humana todos os indivíduos estão sujeitos às relações sociais de sua época e, mesmo que o queiram, têm poucas possibilidades de mudar por completo essa sociedade durante as suas existências. Dizendo de outra forma, na sociedade humana não existe “eu” sem “nós”, e essa relação entre indivíduo e sociedade é especialmente tensionada durante a adolescência.
Voltando ao ponto específico deste estudo, realçamos que as profundas transformações corporais, psicológicas e sociais ocorridas na adolescência têm efeito sobre o comportamento alimentar (Nunes & Guimarães, 2009).
Os adolescentes sofrem mudanças físicas, sociais e psicológicas nessa fase da vida e também seu comportamento alimentar é influenciado por essas transformações, sendo afetado por fatores internos e externos. Os fatores internos dizem respeito à autoimagem, valores, preferências, necessidades fisiológicas, desenvolvimento psicossocial etc., já os fatores externos correspondem aos hábitos do grupo familiar, às regras sociais e culturais, à influência da mídia, ao convívio com os amigos e às próprias experiências do indivíduo (Gambardella et al., 1999).
Os adolescentes constituem um grupo nutricionalmente vulnerável, considerando-se suas necessidades nutricionais aumentadas, seu padrão alimentar e estilo de vida, e sua suscetibilidade às influências ambientais (Philippi, 2008; World World Health Organization, 2005). Dessa forma, o acesso a informações sobre alimentação e nutrição, bem como o monitoramento do consumo alimentar são importantes na identificação de um comportamento de risco.
Conforme dito anteriormente, a mídia, sinônimo de “meios de comunicação social”, abrange veículos responsáveis pela difusão das informações, como rádio, jornais, revistas, televisão, vídeo, entre outros (Gomes, 2001).
A mídia configura-se, na atualidade, como uma das instituições responsáveis pela educação no mundo moderno, trazendo tanto benefícios como malefícios, respondendo pela transmissão de valores e padrões de conduta e socializando muitas gerações (Setton, 2002).
A revolução tecnológica mudou completamente as formas de obtenção da informação, os tipos de comunicação e até mesmo a maneira de convívio entre as pessoas. A propósito, o estudo desenvolvido por Beleli (2015) discute a importância que a imagem assumiu nesse novo contexto em que as afinidades são percebidas inicialmente por meio da circulação de fotos, influenciando a seleção e escolha de parceiros. Para ela, ter um celular de última geração não só insere os sujeitos em imaginações de modernidade, mas também os dota de certo poder sobre a informação, inclusive como produtores de conteúdos, possibilitando a ampliação da circulação de diversas moralidades.
Conforme mencionado anteriormente, esse é um dado que caracteriza a nossa época em oposição às épocas anteriores vividas pela humanidade. Por um lado, essa é uma conquista que aproximou as pessoas e facilitou a informação. Mas, por outro, segundo Toral (2006), a mídia, de forma bastante incisiva e até agressiva, dita regras e muda comportamentos.
No caso específico dos adolescentes, Fischer (2002) alerta para o fato de que os meios de comunicação contribuem inegavelmente para um aprendizado sobre os modos de se comportar e de se constituir. A autora acredita que essa influência vai além de uma fonte básica de lazer, tornando-se um lugar extremamente poderoso no que diz respeito à produção e à circulação de uma série de valores, concepções, representações relacionadas a um aprendizado cotidiano sobre quem nós somos, o que devemos fazer com o nosso corpo, entre outros questionamentos. Nesse aspecto, é importante observarmos também que as percepções sobre nós mesmos e sobre o que é ser uma pessoa saudável mudam historicamente, conforme demonstrou a pesquisa de Sibilia & Jorge (2016). Elas examinaram os modos pelos quais a “medicalização da vida” nos discursos midiáticos influenciam a produção de subjetividades. Segundo as autoras,
[...] essas manifestações midiáticas reforçam a legitimidade do saber científico e multiplicam as crenças apoiadas em sua eficácia, além de promoverem o perfil ideal que se deve almejar para si e que todos deveriam tentar conquistar, sugerindo que o bem-estar e a alta performance produtiva estão disponíveis para todos os que lutarem por isso (Sibilia & Jorge, 2016, p. 40).
Atualmente, a publicidade é outra importante influência do comportamento alimentar. Diversos estudos têm mostrado uma associação positiva entre o número de horas despendidas diante da televisão e o peso dos indivíduos (Laus, 2012).
Contento (2010), Nestle et al. (1998), Pollard et al. (2002) afirmam que a mídia é capaz de moldar inúmeros aspectos relacionados à alimentação, e, segundo Laus et al. (2011), essa influência ocorre por meio dos padrões de consumo de alimentos e dos ideais de beleza que ela estabelece.
Como consequência da obsessão dos meios de comunicação em exibir corpos atraentes, muitas pessoas se lançam na busca de uma aparência física idealizada, reforçando valores e normas que condicionam atitudes e comportamentos relacionados ao tamanho do corpo e ao peso (Russo, 2005).
Assim, o desejo de alterar suas proporções corpóreas muitas vezes leva as pessoas a manipulações dietéticas que podem ter consequências negativas à saúde (Spear, 2002) e, em alguns casos, até mesmo levar à morte.
Diante disso, alguns pesquisadores vêm estudando o efeito das imagens veiculadas pela mídia sobre os comportamentos dietéticos e já encontraram evidências de que estas normas culturais exercem um impacto significativo sobre a alimentação. Os estudos experimentais de associação entre essas variáveis têm utilizado como medida de avaliação a quantidade de alimentos ingeridos após a visualização de estímulos ou atitudes sugestivas de transtornos alimentares, por meio de questionários (Laus, 2012).
Os transtornos alimentares (TAs) são fenômenos pluridimensionais resultantes da interação de fatores pessoais, familiares e socioculturais, caracterizados pela preocupação intensa com alimento, peso e corpo (Souto & Ferro-Bucher, 2006).
Para Leal et al. (2013), os TAs têm uma etiologia multifatorial, ou seja, são diferentes fatores interagindo para o desenvolvimento e perpetuação da doença. Acrescentam ainda que os transtornos alimentares têm critérios diagnósticos baseados em características psicológicas, comportamentais e fisiológicas, que se caracterizam por severas perturbações no comportamento alimentar e imagem corporal.
De acordo com Souza et al. (2014, p. 2):
[…] os transtornos alimentares (TA) são caracterizados por importantes alterações nas atitudes alimentares e por marcante insatisfação com a imagem corporal. Peculiaridades típicas dos TAs, relacionadas aos sintomas clássicos, são dietas restritivas severas, ingestão alimentar irregular, aversões alimentares, compulsões e comportamentos compensatórios e de purgação.
Os transtornos alimentares geralmente apresentam as suas primeiras manifestações na infância e na adolescência (Appolinário & Claudino, 2000). Para Castro et al. (2010), a não aceitação do seu corpo pelos adolescentes está positivamente associada à depressão e a distúrbios alimentares, como anorexia e bulimia. Além disso, tem sido registrado aumento acelerado das prevalências de excesso de peso e de obesidade entre adolescentes em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil.
Segundo Souto & Ferro-Bucher (2006, p. 695), “[...] o panorama sociocultural ocidental, de extrema valorização da magreza, com a pressão para o emagrecimento interagindo com outros fatores biológicos, psicológicos e familiares, geram uma preocupação com o corpo e um pavor patológico de engordar”.
Os quadros mais conhecidos são anorexia nervosa (AN) e bulimia nervosa (BN). Quando um transtorno não satisfaz todos os critérios diagnósticos para AN ou BN, ele é chamado de transtorno alimentar não especificado (TANE) (American Pychiatric Association, 1994).
Para Gonçalves et al. (2013), a anorexia é caracterizada pelo desejo de magreza, que leva ao comportamento alimentar monótono e ritualizado e à perda de peso significante, especialmente em crianças ou adolescentes nos quais a baixa ingestão calórica se reflete em atraso no desenvolvimento. Ela pode ser do tipo restritiva (limita-se a ingestão energética e o consumo de carboidratos e lipídios) e do tipo purgativo (no qual ocorrem episódios frequentes de compulsão alimentar e purgação).
Já a BN pode ser classificada de acordo com o método compensatório adotado em purgativa (caracteriza-se pela indução do vômito ou pelo abuso de laxantes e diuréticos) ou não purgativa (marcado pela prática de atividade física intensa ou por jejuns). Os autores acrescentam ainda que, entre os TANE, têm-se AN e BN subclínicas, compulsão alimentar (clínica ou subclínica), purgação (clínica ou subclínica), entre outros, incluindo os TANE que não se enquadram nos subtipos descritos.
A realização desta pesquisa possibilitou concluir que a mídia se converteu em uma instância educativa que define, regula e disciplina corpos, ditando padrões estéticos conforme interesses mercadológicos. A adolescência é um período da vida de grandes mudanças, de fragilidades e instabilidade emocional, durante o qual o indivíduo está construindo uma identidade corporal e buscando referências corporais. Considerando essa importante transição, constatamos que a mídia produz sentimento de insatisfação corporal nos adolescentes a partir do momento em que divulga e propaga um determinado modelo de “corpo ideal”. Isso porque as suas escolhas alimentares, fortemente influenciadas pelo padrão estético que a mídia estabelece, não lhes possibilita alcançar esse modelo.
Nessa etapa da vida, as transformações físicas, psicológicas e sociais tornam os adolescentes vulneráveis em todos os aspectos, inclusive nutricionais, pois eles se tornam mais autônomos e começam a tomar suas próprias decisões em relação aos alimentos. No entanto, a imaturidade, que é inerente a essa etapa da vida, é um fator inibidor da compreensão de que essas decisões, na verdade, mesmo que lhes pareçam ser decorrentes de sua exclusiva e única vontade, não o são. Isso porque, mesmo que o grau de liberdade individual tenha aumentado na sociedade atual, ele é limitado ante o poder exercido pela mídia.
De acordo com as fontes empregadas neste estudo, os adolescentes são um grupo de risco e por isso se tornam mais vulneráveis e suscetíveis a desenvolverem transtornos alimentares e serem acometidos por determinadas doenças. A mídia, tendo se transformado em poderoso artefato nos últimos anos, contribui para criar comportamentos alimentares disfuncionais. Contudo, para o aparecimento dos transtornos alimentares, os quais são de origem multifatorial, outros fatores são influenciadores, como os modelos parentais e a pré-disposição genética.
Relacionando os resultados da pesquisa com a concepção sociológica mencionada no início deste artigo, conclui-se também que, especificamente no caso dos adolescentes, a conexão em rede e os efeitos da mídia convertem-se em fator gerador de angústia e sentimento de solidão, fatores potencialmente capazes de gerar transtornos psicológicos e comportamentos alimentares inadequados.
Por último, voltamos às características da sociedade atual marcada por constantes mudanças. Essa fluidez requer uma compreensão abrangente sobre a questão da adolescência e suas formas de alimentação, devendo ser considerada a interação de vários fatores e do contexto social em que os adolescentes estão inseridos. Tais fatores aplicam-se ao indivíduo em si e também aos grupos e classes sociais. Em uma época marcada por grandes contradições e desigualdades sociais como a que vivemos no começo do século XXI, enquanto alguns têm abundância, outros nada têm. Enquanto alguns se alimentam exclusivamente para saciar a fome e sobreviver, outros são movidos por fatores que ultrapassam a necessidade fisiológica. Nessa esfera da ordem subjetiva, inserem-se os adolescentes, já que estão mais sujeitos ao poder da mídia e ao padrão estético que ela determina. Romper com isso é difícil para eles, mas se a sociedade está sempre em processo, isso quer dizer que é possível contestar a própria lógica que a rege.
Uma demonstração dessa possibilidade é o fato de que, no momento em que estas linhas finais foram escritas, adolescentes tornaram-se notícia em várias partes do mundo. No dia 15 de março de 2019, eles realizaram greves escolares denominadas “Fridays for future” (sexta-feira pelo futuro), em defesa do meio ambiente e da sobrevivência do planeta, movimento que teve início em 2018 com os protestos da estudante sueca de 15 anos de idade, Greta Thunberg. Com um criativo mosaico de cartazes, os adolescentes transmitiram ao mundo um recado crítico em forma de pergunta: “que mundo é esse que os adultos nos legaram?”. Essas manifestações são um sinal de que, apesar da lógica dominante, a sociedade se move. Elas nos inspiram a seguinte indagação sobre as perspectivas de futuro: se os adolescentes são capazes de defender a sobrevivência do planeta, por que não serão capazes de protestar contra a ditadura estética imposta pela mídia?