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Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: Pesquisa Qualitativa em Ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.

Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: Pesquisa Qualitativa em Ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.

Autores:

Orli Carvalho da Silva Filho

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.25 no.5 Rio de Janeiro maio 2020 Epub 08-Maio-2020

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232020255.22042019

Algumas semelhanças são encontradas quando se avaliam a formação e o incentivo à pesquisa nas áreas que compõem o multifacetado campo da Saúde. Desses elementos, destaca-se um facilmente identificado em graduandos, pós-graduandos e jovens pesquisadores: a crença na dicotomia entre as abordagens qualitativas e quantitativas em Saúde. Embora se verifique que o aumento nas publicações de estudos qualitativos e mistos em saúde tem atenuado essa suposta oposição1, constata-se que a academia ainda reproduz um contexto de exclusão e não de complementaridade metodológica, por vezes desqualificando a pesquisa Social por não se conformar às regras positivistas das ciências naturais2.

Inscrito e escrito por essa perspectiva, o livro se apresenta como uma prática referência em português que busca “tornar acessíveis os procedimentos mais utilizados para a realização da pesquisa qualitativa e, igualmente, fundamentá-los de forma a permitir aos aprendizes e usuários do método, uma segurança epistemológica quanto à cientificidade do processo e das operações”3(p.53). Assim, este livro pode ser entendido como um manual dirigido a estudantes e pesquisadores que se soma a outros textos nacionais reconhecidos disciplinarmente pela Saúde Pública e Saúde Coletiva4,5. Publicado em 2019, apresenta 63 páginas organizadas sintética e didaticamente em oito seções (introdução, seis capítulos e referências). Sua linguagem fluida e sua diagramação clara facilitam a aproximação de estudantes da área da Saúde com a Pesquisa Social, mesmo que se priorize o diálogo com autores clássicos das Ciências Sociais e Humanas: preocupação transversal demarcada em todo o texto. Ainda que o foco do livro sejam as técnicas de coleta de dados e de sua análise, os autores sinalizam que os estudos compreensivos devem ser bem planejados e executados de “forma teoricamente aprofundada, metodologicamente correta e historicamente contextualizada”3(p.53).

A inovação do livro, entretanto, aparece por uma hibridez assumida em sua proposta e estrutura. Se por um lado se apresenta como conservador e alinhado a outras obras técnicas que debatem sobre a dialética na cientificidade, na representatividade e na objetividade da Pesquisa Social, por outro introduz a recente discussão sobre a análise de dados qualitativos assistida por computador (CAQDAS), no tocante à gestão, à modelação gráfica e ao compartilhamento de dados e ideias. Longe de uma simples provocação sobre conflitos geracionais na pesquisa, Minayo e Costa3 conseguem ampliar as reflexões sobre a práxis dos métodos qualitativos que, ao buscar compreender e interpretar o ser humano, a sua vida e os seus mundos, deve se sensibilizar frente às apropriações de novos dispositivos e ferramentas que representam e modulam essa mesma humanidade. Assim, nas entrelinhas do livro anunciam-se reflexões temporais que ultrapassam o escopo de um manual e avançam num debate sobre a parceria possível entre o artesanal e o tecnológico, entre a tradição e a big data.

Como suposto e adequado a uma obra sobre metodologia qualitativa, evidencia-se uma preocupação autoral em se questionar e problematizar, nesse caso, as próprias ferramentas digitais. Num paralelo às técnicas quantitativas de coleta e análise de dados, orienta-se formalmente que os softwares sejam dispositivos associados e não substitutivos, não retirando do pesquisador o pleno e dinâmico protagonismo do planejamento da fase exploratória, do trabalho de campo e da análise do material empírico. Assim, um alerta apontado pelo livro é a possibilidade de a tecnologia seduzir os pesquisadores e provocar uma nova onda de ilusão de neutralidade científica, enaltecendo a ferramenta como um pré-requisito para validação e fidedignidade da pesquisa qualitativa4,5.

A introdução do livro anuncia a tônica assumida sobre um “modo de fazer” próprio e específico dos pesquisadores qualitativos com premissas epistemológicas que são discutidas no decorrer do Capítulo 1 (Fundamentos): Fundamentos da pesquisa qualitativa (1.1), Fundamentos das Técnicas de Campo (1.2) e Fundamentos da Análise (1.3). Num diálogo com outras obras de Minayo4,5, são apresentados e discutidos os principais substantivos que são a matéria prima da pesquisa qualitativa (experiência, vivência, senso comum e ação), assim como os verbos próprios de investigação (compreender, interpretar e dialetizar), valorizando os pressupostos que suportam o método e o qualificam no campo científico.

O Capítulo 2 faz uma referência direta ao título do livro e expõe as principais técnicas de coleta de dados, sempre apoiadas pela ética em pesquisa. A palavra e o olhar (fala e observação) são colocados não apenas como ferramentas e instrumentos de pesquisa, mas como funções inerentes à condição humana do pesquisador e de seu interlocutor. Essa dupla condição conferida às técnicas que usam a palavra e o olhar constitui a essência da Pesquisa Social, a qual será eficiente somente a partir de uma interação empática e integrativa do pesquisador com seu objeto no campo. A seção 2.3 valoriza a empatia não como uma técnica, mas como uma atitude necessária à Pesquisa Social como um “fio invisível que costura todo o trabalho intersubjetivo em campo”3(p.22). Em técnicas que fazem uso da palavra (2.1) são expostas diferentes estratégias, agrupadas como entrevistas, apontando suas especificidades amparando-se pela argumentação de que a escolha por uma modalidade está vinculada a sua boa adequação ao objeto. Sendo uma provocação à fala e à palavra, uma entrevista precisa incorporar o contexto de sua produção, para que a expressão verbal obtida represente e comporte as relações, atitudes e práticas da vida social dos entrevistados. As técnicas que fazem uso do olhar e da convivência (2.2) são apresentadas como as que priorizam o ver, o sentir e o conviver no campo, em diferentes medidas entre o participar e o observar.

O terceiro capítulo (Técnicas de análise de dados) aborda as principais dúvidas e demandas metodológicas dos pesquisadores qualitativos, segundo a experiência autoral. Porém, a maior orientação fornecida durante essa seção trata do fazer ciência como um trabalho árduo ancorado no tripé teoria, método e técnica; assim, a análise e o tratamento dos dados são uma etapa interconectada dentro de um projeto de pesquisa. Tal cuidado se realça no texto pela suposta facilidade que as ferramentas digitais podem oferecer à conclusão de uma pesquisa. O capítulo retoma as proposições e etapas que Minayo amplamente debate com outros autores em “O desafio do conhecimento”4: ordenação do material empírico; categorização/busca de unidades de sentido; contextualização e o constructo de primeira ordem; interpretação de segunda ordem. Tais referências se aprofundam no capítulo seguinte dando uma solidez teórica e reflexiva às indagações metodológicas sobre a investigação qualitativa. Em Questões Epistemológicas referentes aos instrumentos são debatidos: senso comum e conhecimento científico (4.1), representação e representatividade (4.2), objetividade e subjetividade (4.3) e os critérios de fidedignidade e de validade na Pesquisa Social (4.4).

O capítulo cinco, amparado por arsenal teórico prévio, representa a maior novidade do livro ilustrando como as ferramentas digitais podem ser utilizadas na codificação e análise preliminar do material empírico, tal como em seu compartilhamento e suas conexões com outros investigadores. A partir de um recurso exemplificativo de um projeto fictício, são explicitadas as diferentes etapas de utilização e de manejo do software conhecido como webQDA, demonstrando as potencialidades que a ferramenta proporciona. Esse programa de análise qualitativa vem sendo estudado por Costa6 e compartilha finalidades e desenhos semelhantes a outros dispositivos eletrônicos de e-research. Com 11 ilustrações que capturam a interface do programa, discute-se como os passos metodológicos qualitativos podem ser simplificados e potencializados através de quatro sistemas operacionais que o estruturam: Fontes, Codificação, Questionamento e Gestão. Didaticamente, tais recursos são apresentados em três atos: Trabalhar os dados (5.1), Ato de interpretar (5.2) e Ato de Inferir (5.3). O formato e a linguagem do capítulo despertam curiosidade provocando indagações pertinentes à práxis e ao futuro da pesquisa.

As considerações finais do livro (Capítulo 6) retomam a trajetória da investigação qualitativa, que acompanhou a construção da ciência moderna, passando pela fenomenologia alemã e pela Escola de Chicago. A compreensão e interpretação da realidade, ainda que entendida como algo inacabado e aproximado4, é uma missão da Pesquisa Social, tão pertinente ao campo da Saúde, por lidar essencialmente com o que é humano.

A co-autoria, reunindo dois experts no campo da pesquisa qualitativa, representa com maestria e simplicidade a proposta assumida pelo manual. Dois importantes pesquisadores numa parceria entre a tradição e a inovação, estimulando novas ações em pesquisas. Incorporado como uma atual e clássica referência metodológica, o livro contribuirá com os trabalhos de diversas graduações e pós-graduações em Saúde no país, disseminando a contemporaneidade e a tradição que as abordagens qualitativas podem assumir.

REFERÊNCIAS

1 Baixinho CL, Presado MH, Ribeiro J. Investigação qualitativa e transformação da saúde coletiva. Cien Saude Colet 2019; 24(5):1582.
2 Minayo MCS, Sanches O. Quantitativo-Qualitativo: Oposição ou Complementaridade? Cad Saude Publica 1993; 9(3): 293-262.
3 Minayo MCS, Costa AP. Técnicas que fazem uso da Palavra, do Olhar e da Empatia: Pesquisa Qualitativa em Ação. Aveiro: Ludomedia; 2019.
4 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 14ª ed. São Paulo: Hucitec; 2014.
5 Minayo MCS, Deslandes SF, Gomes R. Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2016. (Série Manuais Acadêmicos).
6 Costa AP. Cloud Computing em Investigação Qualitativa: Investigação Colaborativa através do software webQDA. Fronteiras: J Social Technol Environ Sci 2016; 5(2):153-161.