versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.111 no.6 São Paulo dez. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180216
O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença inflamatória crônica com características multissistêmicas e autoimunes. É a doença autoimune sistêmica mais comum, ocorrendo principalmente em mulheres entre 20 e 40 anos de idade, com uma razão de sexo feminino para masculino de 10:1. Embora os rins sejam classicamente considerados o principal órgão acometido pelo LES, a cardiomiopatia é uma das complicações mais frequentemente associadas à morbimortalidade em pacientes com LES.1 O comprometimento cardiovascular pode ser altamente variável em termos das estruturas afetadas e, em casos graves, pode levar ao choque cardiogênico.
Em 2012, a Systemic Lupus International Collaborating Clinics (SLICC) publicou novos critérios para a classificação do LES, visando otimizar o diagnóstico de comprometimento cardiovascular. Entretanto, os distúrbios cardiovasculares não fazem parte da SLICC, embora haja uma alta prevalência de distúrbios cardiovasculares nessa população.2
Uma mulher caucasiana de 30 anos de idade, com histórico de três anos de hipertensão arterial, usuária irregular de captopril, procurou atendimento médico devido a uma história de uma semana de dispneia e dor torácica. A paciente apresentava pele fria e úmida, dispneia, hipotensão e taquicardia e estava afebril. Um eletrocardiograma (ECG) de repouso mostrou supradesnivelamento do segmento ST em todas as derivações. Ela tinha sido internada para trombólise com estreptoquinase no hospital original e transferida para o Hospital das Clínicas terciário. A paciente foi admitida em nosso departamento de emergência em ventilação mecânica e hemodinamicamente instável, e recebendo norepinefrina.
A radiografia de tórax revelou cardiomegalia e congestão pulmonar; o ecocardiograma transtorácico mostrou derrame pericárdico leve a moderado, com hipocinesia difusa do ventrículo esquerdo e comprometimento sistólico significativo, com fração de ejeção do ventrículo esquerdo de 30%, determinada pelo método de Teichholz; a angiografia coronariana não mostrou lesões coronarianas. Enzimas cardíacas como troponina e CKMB estavam elevadas.
Não havia histórico recente de infecção. Além disso, as hemoculturas apresentaram resultado negativo três vezes e a sorologia para o HIV não foi reativa.
A paciente foi diagnosticada com miopericardite e o suporte hemodinâmico foi realizado com dobutamina, noradrenalina e bomba de balão intra-aórtico (BBIA). Posteriormente, no décimo dia de internação, a paciente também apresentou sinais de artrite no joelho, alteração da consciência e anisocoria.
Uma tomografia computadorizada do cérebro demonstrou múltiplas áreas de hipodensidade cortical e subcortical (Figura 1) e uma arteriografia cerebral mostrou um padrão de vasculite nas artérias cerebrais. Testes anti-nucleares (ANA) e anticorpos anti-DNA foram positivos.
Após o diagnóstico de miocardite lúpica, no décimo segundo dia de internação, iniciou-se terapia imunossupressora com metilprednisolona (1 g por via intravenosa uma vez ao dia por três dias consecutivos) e posteriormente com ciclofosfamida (0,6 g/m2 por via intravenosa uma vez ao mês). Houve melhora clínica significativa, e um ecocardiograma transtorácico repetido mostrou resolução completa de todas as alterações. A paciente permaneceu assintomática e, no vigésimo oitavo dia, recebeu alta hospitalar para acompanhamento ambulatorial com 25 mg de captopril duas vezes ao dia, 30 mg de diltiazem duas vezes ao dia, 20 mg de omeprazol uma vez ao dia, 70 mg de prednisona uma vez ao dia e 250 mg de cloroquina uma vez por dia.
O LES é uma doença autoimune multissistêmica inflamatória crônica com características complexas que afeta principalmente mulheres, cujo início geralmente ocorre entre os 16 e os 55 anos de idade; tem frequência variável na população geral, com incidência de 1: 200 em mulheres negras.1
Recentemente, os critérios diagnósticos para o LES, chamados coletivamente de SLICC, foram revisados e aumentados para um total de 17 critérios, a partir dos 11 critérios da classificação anterior de 1997.2
Para diagnosticar o LES de acordo com as novas recomendações, quatro ou mais critérios devem ser atendidos, e pelo menos um deles deve ser clínico, enquanto um deve ser imunológico.1
Em nossa paciente, o diagnóstico foi confirmado devido à presença de serosite, sintomas neurológicos e teste ANA e de anticorpos anti-DNA positivos (Tabela 1).
CRITÉRIOS CLÍNICOS | CRITÉRIOS IMUNOLÓGICOS |
---|---|
1. Lúpus cutâneo agudo | 1. ANA |
2. Lúpus cutâneo crônico | 2. Anti-dsDNA |
3. Úlceras orais | 3. Anti-Sm |
4. Alopecia não escarificante | 4. Anticorpo Anti-fosfolípide |
5. Sinovite envolvendo >2 articulações | 5. Baixo níveis de complementos |
6. Serosite | 6. Teste direto de Coombs |
7. Manifestações renais | |
8. Manifestações neurológicas | |
9. Anemia hemolítica | |
10. Leucopenia/Linfopenia | |
11. Trombocitopenia |
Embora o comprometimento cardiovascular seja muito comum em pacientes com LES, com uma prevalência de até 40-50% em estudos necroscópicos, ele não faz parte dos novos critérios diagnósticos; é considerado apenas como dano associado à doença de longa duração.1-5 Pode se manifestar como pericardite, miocardite, endocardite de Libman-Sacks, hipertensão arterial pulmonar ou doença arterial coronariana. A doença arterial coronariana é a mais prevalente, devido ao processo inflamatório da própria doença, juntamente com o uso de corticosteroides, que são comumente utilizados no tratamento do lúpus.6 Devido aos vários locais de comprometimento, as manifestações clínicas podem ser bastante variáveis, desde assintomático ou oligossintomático até choque cardiogênico, nos casos mais graves de miocardite.
Em geral, os pacientes com miocardite lúpica são usualmente assintomáticos, com sintomas presentes em apenas 5 a 10% dos pacientes.3 No entanto, insuficiência cardíaca grave pode ser a primeira manifestação da doença.
O choque cardiogênico em pacientes lúpicos pode apresentar diversas etiologias, tais como doença arterial coronariana, cardiotoxicidade induzida por fármacos (por exemplo, antimaláricos), pericardite com tamponamento cardíaco e insuficiência valvar secundária à destruição valvar, entre outras causas.6
Um diagnóstico definitivo é feito através da análise anatomopatológica de uma biópsia endomiocárdica, que não é necessária na maioria dos casos. A biópsia endomiocárdica apresenta baixa sensibilidade, uma vez que o padrão miocárdico pode ser focal em muitas situações.5 Assim, a suspeita clínica combinada com a epidemiologia, o histórico individual e os sintomas continuam sendo essenciais para o diagnóstico.
Os marcadores inflamatórios associados à doença podem estar elevados em casos de miocardite, juntamente com a redução dos níveis de complementos séricos. Entre todos os marcadores, a presença de anticorpos anti-DNA tem sido associada à miocardite lúpica.3 Pode ocorrer elevação dos marcadores de necrose miocárdica; entretanto, isto não está relacionado à gravidade clínica.7,8
O tratamento de choque cardiogênico secundário ao LES inicia-se com o mesmo tratamento de suporte que é usualmente utilizado em pacientes com insuficiência cardíaca grave, independente da etiologia.2,4,5 Assim, geralmente os pacientes são inicialmente tratados com drogas inotrópicas, vasodilatadores e vasopressores, e em pacientes que são refratários à abordagem clínica convencional, o suporte mecânico é necessário. O suporte mecânico mais comum, em parte devido à sua disponibilidade, é a bomba de balão intra-aórtico; no entanto, novos dispositivos para assistência circulatória podem ser utilizados quando necessários.
Tratamentos específicos para pacientes com disfunção ventricular esquerda grave associada a miocardite lúpica incluem altas doses de corticosteroides; em algumas situações, como nessa paciente, ele inclui pulsoterapia com metilprednisolona e outros imunossupressores (ciclofosfamida, azatioprina) ou imunoglobulinas.2,3,5,7 Entretanto, os tratamentos atualmente utilizados não são respaldados por achados científicos de estudos controlados, devido à dificuldade em realizar tais estudos por causa da raridade desse tipo de apresentação.
Um diagnóstico precoce e preciso permite a implementação de um tratamento agressivo da miocardite lúpica e leva a melhores desfechos, incluindo a resolução da disfunção sistólica ventricular esquerda, que pode ocorrer em até 89% dos casos em até 6 meses, de acordo com relatos da literatura3. No entanto, um episódio de miocardite lúpica parece ser um marcador de pior prognóstico em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Além disso, talvez as manifestações cardiovasculares devam ser incluídas em futuros critérios diagnósticos para o LES.