versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.110 no.6 São Paulo jun. 2018
https://doi.org/10.5935/abc.20180089
A miocardite eosinofílica é uma doença rara e potencialmente letal, que se caracteriza pela infiltração do miocárdio por eosinófilos.1 A associação entre a eosinofilia e a lesão miocárdica está bem estabelecida, podendo apresentar diversas etiologias, desde hipersensibilidade e doenças autoimunes até neoplasias e infeções.1,2 Em alguns casos a etiologia permanece desconhecida, denominando-se síndrome hipereosinofílica idiopática. As manifestações clínicas apresentam um amplo espectro, desde sintomatologia leve até sintomas graves como dor retroesternal, perturbações do ritmo, e morte súbita.2,3 O diagnóstico definitivo é realizado por meio da biópsia endomiocárdica.1 A ressonância magnética cardíaca é uma alternativa válida, identificando as principais alterações estruturais provocadas pela miocardite.4 O tratamento engloba a terapêutica neuro-humoral, o manejo das complicações cardíacas, e em casos selecionados a corticoterapia sistémica.5 A seguir apresentamos o caso de um paciente com sintomatologia sugestiva de infarto do miocárdio, mas que no decorrer da investigação teve o diagnóstico de miocardite eosinofílica.
Paciente de 79 anos, do género feminino, que recorreu ao Serviço de Urgência com queixas de epigastralgia com duas semanas de evolução, e agravamento na última madrugada. Negava outra sintomatologia acompanhante. Como antecedentes pessoais apresentava dislipidemia não medicada, e asma intrínseca com início na idade adulta. Estava medicada com broncodilatadores e uma associação de um B2-agonista com corticoide inalado em baixas doses.
Ao exame objetivo apresentava taquicardia, confirmada no eletrocardiograma, com ritmo sinusal de 125 batimentos por minuto. Analiticamente com leucocitose (13,2 x 103/uL) e eosinofilia (2,8 x 103/uL ou 23%), proteína C-reativa (0,8 mg/dL) e elevação dos marcadores de necrose miocárdica (troponina I de 7,6 ng/mL). O ecocardiograma transtorácico revelou uma disfunção sistólica grave do ventrículo esquerdo com fração de ejeção estimada em 30-35%, hipocontratilidade do septo interventricular e um aumento da espessura concêntrica das paredes ventriculares. Não era evidente doença valvular. Foi colocada como primeira hipótese tratar-se de uma síndrome coronária aguda, pelo que foi iniciada terapêutica anti-isquémica com dupla antiagregação plaquetar, enoxaparina e a paciente foi alocada a uma estratégia invasiva. A coronariografia não revelou doença coronária epicárdica. Após isto, o diagnóstico de miocardite eosinofílica numa paciente com componente atópico conhecido era provável. Foi admitida em regime de internação para tratamento e estudo. Iniciou-se terapêutica neuro-humoral, beta-bloqueante e diurética, mantendo-se a aspirina.
No terceiro dia de internação realizou ressonância magnética cardíaca que identificou focos subepicárdicos de edema e de realce tardio no miocárdio do ventrículo esquerdo (Figura 1); mostrou também um pequeno derrame pericárdico na parede livre do ventrículo direito. A fração de ejeção foi quantificada em 33%. No mesmo dia foi submetida a uma biópsia endomiocárdica com colheita de fragmentos de miocárdio do ventrículo direito, cujo resultado confirmou o diagnóstico de miocardite eosinofílica (Figura 2). Iniciou corticoterapia sistémica com prednisolona endovenosa (1 mg/kg/dia) com progressiva melhoria do seu estado geral. No 12º dia de internação repetiu o ecocardiograma que demonstrou melhoria ligeira da função sistólica global do ventrículo esquerdo (fração de ejeção estimada em 35-40%). Teve alta medicada para o domicílio com prednisolona em esquema de desmame, e com consulta de seguimento de cardiologia e doenças autoimunes.
Figura 1 Ressonância magnética cardíaca com focos subepicárdicos de edema e de realce tardio do miocárdio no ventrículo esquerdo.
O estudo serológico autoimune realizado foi negativo. Após sete meses de corticoterapia, o ecocardiograma apresentou melhoria significativa (fração de ejeção estimada em 45-50%), e diminuição da hipertrofia concêntrica.
No caso descrito a paciente tinha antecedentes de asma, o qual pode ter sido o ponto de partida para a hipereosinofilia. Também apresentava um desconforto epigástrico, que pode ser uma apresentação atípica de uma síndrome coronária aguda.6 Os achados eletrocardiográficos encontrados, taquicardia sinusal, não são específicos nem sensíveis.1 Analiticamente era evidente a leucocitose e a eosinofilia com elevação da troponina I, que é explicada pela infiltração dos eosinófilos no miocárdio. Esta infiltração permite a libertação de grânulos tóxicos, proteínas catiónicas, citocinas pró-inflamatórias e radicais livres de oxigénio que vão provocar disfunção a nível mitocondrial, lesão e necrose dos miócitos.7
Os exames complementares de diagnóstico são importantes na avaliação desta patologia. O ecocardiograma possibilita excluir outras causas, monitorar a dimensão das cavidades, a espessura das paredes ventriculares, presença de derrame pericárdico e avaliar a função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo. A ressonância magnética cardíaca proporciona uma combinação de segurança, definição anatómica e caracterização tecidual do miocárdio.4 Permitiu identificar o edema e os focos difusos de realce tardio que refletiam a necrose e fibrose do miocárdio.4 A presença de derrame pericárdico e disfunção sistólica do ventrículo esquerdo reforçam a evidência de se tratar de uma miocardite. Em pacientes estáveis é razoável realizar a ressonância magnética cardíaca antes da biópsia, visto que a primeira pode ajudar a identificar patologia focal por meio do realce tardio. No entanto, em pacientes instáveis a biópsia deve ser prioritária.1 A biópsia endomiocárdica é o único método que permite o diagnóstico definitivo e a identificação da etiologia subjacente. Tem uma sensibilidade estimada em 50% devido a erros da amostra.1,2 Apesar de ser o gold standard, na prática clínica nem sempre é realizada, existindo recomendações1,8 para a sua execução, que são dependentes da clínica e dos resultados dos exames complementares. A apresentação pseudo-isquémica da paciente, com elevação dos marcadores de necrose miocárdica e exclusão de doença coronária epicárdica, e as alterações nos exames de imagem verificados, preenchiam os critérios para realização da biópsia.1,8,9 Nestes casos, a ressonância magnética cardíaca e a biópsia endomiocárdica em conjunto apresentam sinergias que ultrapassam as limitações que cada exame apresenta separadamente.9
O tratamento e prognóstico da miocardite eosinofílica depende da sua etiologia. Na fase aguda é importante a restrição da atividade física.1 Em doentes selecionados, particularmente os que apresentam virologia negativa e suspeita de etiologia autoimune, o tratamento precoce com corticoides tem apresentado resultados favoráveis.5,10 Devido à estabilidade clínica e hemodinâmica da paciente, e após exclusão infeciosa, decidimos protelar o início dos corticoides até à confirmação da miocardite eosinofílica. Na literatura está descrito que um período de terapêutica imunossupressora de seis meses pode trazer melhorias significativas ao nível da função ventricular esquerda (aumento de 15-20% da fração de ejeção),10 o que foi o verificado neste caso. Permanece a dúvida se esta melhoria se deve apenas ao corticoide ou se também está associada ao início de terapêutica para a insuficiência cardíaca, nomeadamente os beta-bloqueantes. O mecanismo de ação dos corticoides na miocardite não está totalmente esclarecido, no entanto pensa-se que interferem com a eosinofilopoiese; antagonizam as vias de desenvolvimento e maturação; e promovem a redistribuição dos eosinófilos do sangue periférico.10
Durante o seguimento, todos os pacientes devem ser sujeitos a avaliações clínicas com eletrocardiograma e ecocardiograma. Se houver agravamento clínico ou imagiológico, poderá ser necessário a reinternação hospitalar e a repetição da ressonância magnética cardíaca e/ou da biópsia endomiocárdica.1,9
A miocardite eosinofílica é uma patologia rara, sub-diagnosticada, e que pode ser letal se não for detectada e tratada a tempo.