versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.16 no.4 São Paulo 2018 Epub 08-Nov-2018
http://dx.doi.org/10.31744/einstein_journal/2018ao4199
O gás hélio foi descoberto por um astrônomo francês em 1868, mas somente em 1895 foi isolado na Terra e, em 1907, teve seu peso molecular determinado.(1)Suas características físicas e químicas compreendem baixo peso molecular, baixa densidade (um terço da densidade do oxigênio), alta viscosidade, alto coeficiente de difusão (maior que do dióxido de carbono) e é um gás biologicamente inerte.(1,2)Sua utilização na prática clínica foi fundamentada nestas características. Comercialmente, podemos encontrar a mistura nas concentrações 80:20 (80% de hélio e 20% de oxigênio) 70:30 e 60:40 – respectivamente concentrações de hélio: oxigênio.
A aplicabilidade clínica do Heliox®é descrita principalmente em doenças obstrutivas, como asma, bronquiolite e laringite,(3-6)pois, devido às propriedades físico-químicas da mistura (principalmente baixa densidade e alta viscosidade), ela influencia diretamente no fluxo e na resistência do sistema respiratório.(3,7)Em 1934, Barach et al., comprovaram que a utilização da mistura hélio-oxigênio (heliox) diminui a pressão transpulmonar e melhora o volume corrente em estudo experimental com cachorros traqueostomizados.(8)
Fisiologicamente temos nas vias aéreas proximais um padrão de fluxo turbulento que vai se tornando laminar nas vias aéreas terminais. Em pacientes com doença obstrutiva o fluxo turbulento das vias aéreas proximais agrava o desconforto respiratório e diminui a ventilação pulmonar. A utilização do heliox altera o padrão de fluxo nas vias aéreas proximais de turbulento para laminar, diminuindo o trabalho respiratório.(9,10)
O relato do uso do Heliox®em crianças com asma tem mostrado resultados conflitantes. O tratamento convencional é suficiente na maioria dos casos de exacerbação da doença. Por ser um gás com maior custo do que oxigênio, o Heliox®não deve ser usado como primeira escolha; já em quadros mais severos, ele parece ser benéfico, e seu uso precoce pode diminuir o trabalho respiratório e a dispneia.(11)
Há uma grande dificuldade em se estabelecer um consenso sobre o uso do Heliox®em crianças devido a diferença de critérios de inclusão, tempo de intervenção, tratamento ministrado e severidade da doença nos estudos conhecidos. Ainda deve ser determinado o papel do Heliox®na exacerbação da asma.(12,13)
Por outro lado, têm sido realizados estudos que identificam o efeito do Heliox®na produção de partículas pelos nebulizadores a jato. A eficácia da entrega do aerossol com Heliox®está relacionada à sua baixa densidade. Ao se tornar laminar, o fluxo turbulento melhora a ventilação em áreas de alta resistência, proporcionando otimização da deposição do aerossol em vias aéreas inferiores.(14-16)
A utilização da mistura hélio-oxigênio não se restringe ao paciente em respiração espontânea. Seus benefícios podem ser associados à utilização de ventilação não invasiva e, até mesmo, invasiva − uma vez que são considerados tratamentos sinergistas.(17-19)
A atuação do Heliox®na diminuição do processo inflamatório de pacientes com síndrome do desconforto respiratório, apesar de comprovada, ainda não é bem compreendida.(20)Ainda, a aplicabilidade clínica da mistura hélio-oxigênio tem ganhado cada vez mais destaque em ambientes de terapia intensiva, mas ainda também não há consenso sobre sua utilização.
Avaliar a eficácia da resposta clínica da utilização da mistura hélio-oxigênio em pacientes com quadros obstrutivos graves.
Estudo observacional retrospectivo, de análise de prontuário de crianças, realizado em um hospital privado da cidade de São Paulo (SP).
Foram incluídas crianças de zero a 14 anos, admitidas na unidade de terapia intensiva pediátrica, com diagnóstico de broncoespasmo e/ou crise de sibilância, que utilizaram a mistura hélio-oxigênio, seguindo o protocolo institucional, entre 1° de janeiro de 2012 a 31 de dezembro de 2013.
As variáveis coletadas no prontuário para análise do desfecho clínico foram escore de gravidade; frequência cardíaca; frequência respiratória; e saturação de oxigênio (SpO2) logo após a instalação da mistura, momento zero, 30 minutos, 60 minutos e 120 minutos.
As crianças foram avaliadas quanto à necessidade de oxigênio para manutenção da monitorização da oximetria de pulso (SpO2) maior do que 92% e grau de desconforto respiratório, avaliado pelo escore de Wood modificado ( Tabela 1 ). Oxigênio adicional foi iniciado quando SpO2apresentou valores inferiores a 92%. O fluxo de oxigênio utilizado foi o mínimo para manter SpO2>93%. A mistura hélio-oxigênio foi iniciada conforme protocolo institucional.
Tabela 1 Escore de Wood modificado
0 | 0,5 | 1 | 2 | |
---|---|---|---|---|
SatO2 | ≥95% em AA | 90-94% em AA | ≥90% com FiO2>21% | <90% com FiO2>21% |
Murmúrios vesiculares | Normal | Levemente assimétrico | Muito assimétrico | Diminuído ou abolido |
Sibilos | Ausente | Leve | Moderado | Grave |
Musculatura acessória | Ausente | Leve | Moderado | Grave |
Nível de consciência | Normal | Agitado quando estimulado | Deprimido ou agitado | Muito deprimido |
Fonte: Traduzido e modificado de: Cambonie G, Milési C, Fournier-Favre S, Counil F, Jaber S, Picaud JC, et al. Clinical effects of heliox administration for acute bronchiolitis in young infants. Chest. 2006;129(3):676-82.(4)
SatO2: saturação de oxigênio; AA: ar ambiente; FiO2: fração inspirada de oxigênio.
O protocolo institucional para utilização da mistura hélio-oxigênio incluía pacientes com diagnóstico de broncoespasmo e/ou crise de sibilância que mantivessem escore de Wood ≥3 ( Tabela 1 ) após 1 hora de tratamento convencional, independente da fração de oxigênio utilizada previamente.
Consideraram-se salbutamol, predinisolona, metilpredinisolona, inalação com solução hipertônica, antibióticos, fisioterapia respiratória e oxigenoterapia como tratamento convencional. O tratamento convencional foi mantido mesmo após a introdução da mistura hélio-oxigênio.
Para a instalação da mistura hélio-oxigênio, foi utilizado torpedo de Heliox®na concentração 70:30 (70% de hélio e 30% de oxigênio) com máscara não reinalante específica ( Figura 1 ) e fluxo em 10L/minuto. Os pacientes que não mantiveram SpO2>92% com 30% O2tiveram a mistura enriquecida com 2LO2, que totalizou 40% de oxigênio.
Pacientes que não mantivessem a SpO2>92% com 40% de oxigênio e/ou que não apresentassem nenhuma melhora no escore de gravidade após 1 hora da utilização do Heliox®tiveram sua utilização suspensa.
Foi realizado cálculo de amostra baseado no estudo de Cambonie et al.,(4)que assumiram média do escore de desconforto respiratório era de 5,4 e desvio padrão de 0,2. Assim, foi estimado que uma amostra de dez indivíduos era suficiente para detectar diferença mínima de 0,3 unidade no escore de desconforto, assumindo erro do tipo I a 5% e 90% de poder.
As medidas foram descritas por gráficos de perfis individuais e médios, acompanhados dos intervalos de confiança. A avaliação da evolução das medidas do escore de Wood, da frequência cardíaca e da frequência respiratória foi feita por meio do teste t de Student para amostras pareadas.
O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Israelita Albert Einstein, parecer 687.992, CAAE: 32371514.0.0000.0071.
Foram incluídos 20 pacientes internados na unidade de terapia intensiva de um hospital particular de São Paulo, nos meses de janeiro de 2012 a dezembro 2013, com diagnóstico de broncoespasmo e/ou crise de sibilância. A idade dos pacientes variou entre 1 e 158 meses, com mediana de 16 meses (intervalo interquartis - IIQ: 10 a 74 meses). O tempo médio da internação hospitalar foi de 5,7 dias (desvio padrão − DP – de 3,19). O tratamento medicamentoso não foi alterado em decorrência do estudo. Broncodilatadores (salbutamol) foi utilizado em 100% dos casos, corticosteroide oral (prednisolona) foi administrado em 14 (70%) ocasiões e 4 (20%) pacientes receberam corticosteroide endovenoso (metilprednisolona). Inalação com solução hipertônica foi prescrita para 30% dos pacientes e antibióticos para 80%. O tratamento considerado profilático foi mantido durante a internação em três pacientes, sendo que cada um deles recebeu um tipo de medicamentos diferente, a saber: montelucaste (Singulair®), propionato de fluticasona (Flixotide®) e fluticasona associado com salmeterol (Seretide®). Fisioterapia respiratória foi realizada em 100% dos pacientes. O tempo decorrente entre o início do tratamento convencional e a introdução do Heliox®apresentou uma mediana de 10 horas (3 a 53 horas).
As variáveis para avaliação do desfecho clínico estão apresentadas na tabela 2 . Em dois casos, o tratamento com Heliox®foi associado à ventilação não invasiva. Houve suspensão do Heliox®devido à falha de tratamento em três (25%) pacientes − duas delas após 30 minutos e uma após 60 minutos. Destes, um necessitou de ventilação mecânica invasiva.
Tabela 2 Escore de gravidade, frequência cardíaca e respiratória nos momentos zero, 30, 60 e 120 minutos
Momento (minutos) | Valor de p | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|
|
|
||||||
Pre | 30 | 60 | 120 | 30 | 60 | 120 | |
Escore | 5,6 (2,0) | 4,1 (2,1) | 3,4 (1,9) | 2,9 (1,5) | <0,001 | <0,001 | <0,001 |
FC | 152 (25,0) | 141 (21,3) | 141 (20,3) | 138 (18,3) | 0,011 | 0,33 | 0,12 |
FR | 54 (13,4) | 44 (11,3) | 38 (10,3) | 37 (10,3) | <0,001 | <0,001 | <0,001 |
Resultados expressos em média (desvio padrão).
FC: frequência cardíaca; FR: frequência respiratória.
A média do escore de gravidade da doença no momento zero foi de 5,6 (DP: 2,0) e, no momento 120 minutos, foi 3,4 (DP: 2,0). Esta diferença encontrada no escore de gravidade foi estatisticamente significante a partir dos 30 minutos (p<0,001), conforme apresentado na figura 2 . A avaliação da frequência cardíaca mostrou significância somente no primeiro momento do estudo, porém, esta relevância não foi sustentada ( Figura 3 ). A variação da frequência respiratória apresentou evolução semelhante à do escore de gravidade, também mostrando significância a partir dos 30 minutos ( Figura 4 ). Não observamos relação entre os dias de internação e o escore de gravidade (r=0,15 e p=0,4).
IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Figura 2 Perfis médios do escore de Wood pelo tempo (pré, 30, 60 e 120 minutos)
IC95%: intervalo de confiança de 95%.
Figura 3 Perfis médios da frequência cardíaca pelo tempo (pré, 30, 60 e 120 minutos)
Nas últimas décadas, é crescente o número de estudos que buscaram comprovar a eficácia da utilização da mistura hélio-oxigênio em doenças obstrutivas, como asma, bronquiolite e obstrução de vias aéreas.(4,12-15,21,22)Nosso estudo mostra-se particularmente importante por trazer dados da população brasileira, da qual nota-se escassez de resultados sobre a aplicabilidade clínica da mistura hélio-oxigênio, principalmente no que diz respeito à população pediátrica.
Em um estudo de coorte da população brasileira, que incluiu 111 lactentes com diagnóstico de bronquiolite viral aguda, o tempo médio de internação foi de 9,5 dias. Nesse estudo, o tratamento da patologia foi convencional e não houve a utilização da mistura hélio-oxigênio.(23)Já estudo realizado com crianças asmáticas, também sem a utilização do Heliox®, o tempo médio de internação foi de 6,0 dias.(24)Em nosso estudo, o tempo médio de internação foi inferior, mas não sendo ainda possível afirmar que estes resultados estão associados à utilização do Heliox®. Liet et al., não observaram relação entre a utilização da mistura e a redução no tempo de internação.(25)
Com relação ao tratamento empregado durante a internação, nosso estudo mostrou alta taxa de utilização de broncodilatador e corticoide oral, tratamento fortemente recomendado pelas Global Initiatives for Asthma .(26)
Outra recomendação do Global Initiatives for Asthma ,(26)seria a utilização da mistura hélio-oxigênio somente após 1 hora do início do tratamento medicamentoso convencional. Em nosso estudo, o tempo decorrido entre o início do tratamento medicamentoso e a instalação da mistura hélio-oxigênio foi de 10 horas. Este dado reforça o resultado de que a melhora dos pacientes estava relacionada à introdução do Heliox®, e não ao efeito medicamentoso.
Martinón-Torres et al., acompanharam crianças não intubadas com bronquiolite e concluíram que crianças que receberam Heliox®apresentaram melhora dos níveis de frequência respiratória e cardíaca, além de permanecerem por menos tempo na unidade de terapia intensiva.(27)Nas crianças incluídas em nosso estudo, além do escore de desconforto, acompanhamos as frequências respiratória e cardíaca. A utilização da mistura hélio-oxigênio mostrou redução significativa no escore de desconforto respiratório e da frequência respiratória dos nossos pacientes nos primeiros 30 minutos de utilização, havendo redução contínua até 120 minutos.
A melhora do escore de desconforto mais significativa nos primeiros 30 minutos pode ser atribuída à alteração do padrão do fluxo aéreo, que se torna mais laminar com a utilização do Heliox®. Porém, a melhora progressiva das crianças ao longo do tempo pode estar relacionada à melhor deposição pulmonar da droga inalatória (broncodilatadores) com a utilização do Heliox®.
Estes dados confirmam os resultados de Kress et al., que realizaram estudo randomizado com 45 crianças asmáticas, das quais 22 receberam albuterol com Heliox®, e 23 com oxigênio. Eles observaram melhora estatisticamente significante no volume expiratório forçado no primeiro segundo (VEF1) no grupo Heliox®.(28)Braun Filho et al., compararam a administração de broncodilatadores de forma convencional com a administração de medicação inalatória com a mistura de gás hélio e observaram que a utilização do Heliox®diminui o risco de permanência do paciente em sala de observação.(29)
Em nosso estudo, três pacientes não apresentaram melhora do escore de desconforto, tendo o Heliox®sido suspenso: um deles utilizou ventilação mecânica invasiva. Em dois casos de sucesso, houve associação de ventilação não invasiva. Com boa resposta, esta associação está indicada, já que o Heliox®e a ventilação mecânica não invasiva são considerados terapias sinergistas e complementares; ressalta-se, porém, que a necessidade de ventiladores preparados para receber a mistura limita o processo. Martinón-Torres et al., realizaram um estudo randomizado e crossover em 12 lactentes com diagnóstico de bronquiolite, constatando melhora significativa da SpO2e do trabalho respiratório, quando a ventilação mecânica não invasiva foi associada ao Heliox®.(30)Revisão sobre a utilização de ventilação mecânica não invasiva com Heliox®reforça o papel complementar das duas terapias, expondo que a associação das duas pode garantir um futuro bastante promissor para o tratamento de várias patologias.(19)
Estudos recentes têm demonstrado que a utilização do Heliox®com cânula nasal de alto fluxo influenciam significativamente na melhora da oxigenação e da frequência respiratória, podendo ser uma alternativa de sucesso no futuro, uma vez que demanda equipamentos mais acessíveis do que os ventiladores microprocessados utilizados na ventilação mecânica não invasiva.(31,32)
Em nosso estudo, optamos por observar os casos de broncoespasmo e as crises de sibilância, patologias em que o Heliox®melhora a troca gasosa, diminui o esforço respiratório e previne a reintubação.(33)
Nosso protocolo incluiu crianças que mantivessem o escore de gravidade de moderado a grave após 1 hora de tratamento convencional. Isso limitou bastante o número de crianças incluídas no estudo, pois a maioria das crianças com patologias obstrutivas melhora com a intervenção convencional na primeira hora. Outra limitação do estudo é ter sido retrospectivo, o que limita os resultados e suas interpretações.
Ainda hoje não há consenso sobre a utilização da mistura hélio-oxigênio, e a grande dificuldade de conclusão está na diferença do desenho dos estudos, critérios de inclusão, gravidade da doença, tratamento e tempo do início da intervenção.(34)
A utilização do Heliox®em crianças com doenças obstrutivas teve desfechos positivos, com redução significativa no escore do desconforto e frequência respiratória nos primeiros 30 minutos de utilização. Portanto, o Heliox®pode ser considerado como suporte no tratamento de pacientes com insuficiência respiratória de causas obstrutivas.