versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.5 Rio de Janeiro maio 2015
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015205.01642014
O tabagismo é um importante fator de risco modificável para doenças crônicas não transmissíveis1. O hábito de fumar é responsável por uma em cada seis mortes resultantes de doenças não transmissíveis2 e contabiliza aproximadamente 6 milhões de mortes por ano no mundo3.
A maior incidência de tabagismo em homens é observada em países de baixa e média renda, enquanto que para toda a população a prevalência é maior nos países de alta e média renda1. Evidências sugerem que o uso de tabaco está associado ao nível econômico, ocupacional4 , 5 e educacional4 - 6. Nesse sentido, é interessante investigar se essa relação é pontual ou influenciada pela trajetória dos indivíduos ao longo da vida, evidenciando a importância dos estudos longitudinais para estudar o efeito de exposições que podem mudar em determinado período.
A mobilidade social é uma abordagem utilizada para avaliar a trajetória socioeconômica e pode ser medida através de diversos canais como classe social, renda, riqueza, classificação ocupacional, educação ou outras formas de classificação social7 , 8. Ela representa a mudança dos indivíduos de uma classe para outra em um período de tempo e é classificada como nula (quando não ocorre mudança), ascendente (sobe uma ou mais classes) ou descendente (desce uma ou mais classes)9 , 10.
Existem dois tipos de mobilidade social: a intrageracional, quando a mobilidade ocorre em uma única geração e a intergeracional, quando a classe social do filho é comparada com a dos pais9. A mobilidade social intergeracional é o reflexo da distribuição de oportunidades na população, como a chance de ocupar uma posição social conforme a origem socioeconômica da família7.
Neste contexto, o objetivo desta revisão de literatura foi identificar estudos longitudinais que tenham avaliado o efeito da mobilidade social sobre a ocorrência de tabagismo em diferentes populações.
Inicialmente, para identificação dos termos referentes ao objetivo do estudo, foi feita uma busca exploratória com o propósito de identificar palavras-chave consistentemente relatadas em artigos da área. A seguir, a revisão de literatura foi realizada nas bases de dados eletrônicas PubMed e Web of Science. Na PubMed, a busca empregada foi ((("follow up"[All Fields] OR "cohort"[All Fields]) OR "longitudinal"[All Fields]) OR "prospective"[All Fields]) AND (("social mobility"[All Fields] OR "social change"[All Fields]) OR "life course socioeconomic"[All Fields])) AND ("smoking"[All Fields] OR "tobacco"[All Fields]), e na Web of Science, Tópico: ("follow up" or "longitudinal" or "cohort" or "prospective") AND Tópico: ("social mobility" or "social change" or "life course socioeconomic") AND Tópico: ("smoking" or "tobacco"). Não foram utilizados limites de idade, data e idioma.
A seleção dos artigos a serem incluídos no estudo foi realizada de forma independente por dois revisores (JVSM e NPL). A Figura 1 apresenta o fluxograma da seleção de artigos. Primeiramente, foram lidos os títulos de todos os artigos obtidos na busca. A segunda etapa consistiu na avaliação de resumos. Os artigos identificados pelas etapas anteriores foram selecionados para leitura na íntegra. Foram excluídos os estudos que não estimavam o efeito da mobilidade social na ocorrência de tabagismo; publicados em outros idiomas que não português, inglês ou espanhol, e que apresentavam análise transversal na metodologia, ou seja, não consideravam a trajetória ao longo da vida ao avaliar a posição socioeconômica
As divergências entre os revisores foram resolvidas a partir de discussão e consenso entre ambos e o processo de revisão foi finalizado em 15 de fevereiro de 2014.
Em um primeiro momento, na fase de identificação, foram detectados 68 artigos, sendo que sete deles eram duplicatas identificadas nas duas bases de dados revisadas. Na fase de rastreamento, com base na leitura de títulos e resumos, 11 estudos foram considerados como potencialmente relevantes para essa revisão e foram lidos na íntegra. Após a leitura, um artigo foi excluído por não estimar o efeito da mobilidade social na ocorrência de tabagismo e quatro por não avaliarem a posição socioeconômica de forma longitudinal. Finalmente, seis artigos foram incluídos no presente estudo (Figura 1).
Os resultados da revisão de literatura estão apresentados no Quadro 1, que descreve os estudos de acordo com o autor, o local, o ano e a amostra, além de resumir a variável de exposição (mobilidade social), o desfecho (tabagismo) e os principais resultados. Os seis artigos foram conduzidos na Europa (3 Escócia, 2 Finlândia e 1 na França), sendo que quatro deles utilizaram a classificação ocupacional como canal sociodemográfico para medir a mobilidade social, enquanto os outros dois utilizaram a variável escolaridade para avaliar a mobilidade social intergeracional.
Quadro 1. Estudos epidemiológicos sobre mobilidade social e tabagismo segundo autor, local e ano de publicação, faixa etária, tamanho da amostra e principais resultados encontrados. Período 1994-2004.
Dois dos três estudos conduzidos na Escócia apresentam resultados do mesmo estudo de coorte, sendo que um deles avaliou a influência da mobilidade social na mortalidade por doenças cardiovasculares e alguns fatores comportamentais, incluindo o tabagismo. Nesse artigo foram utilizados três pontos no tempo para medida socioeconômica, avaliando a mobilidade social em dois dos três pontos, porém de diferentes maneiras, incluindo a mobilidade inter e intrageracional (classe ocupacional do pai x classe ocupacional do próprio membro no momento da morte, classe ocupacional do pai x classe ocupacional do próprio membro ao entrar no mercado de trabalho, classe ocupacional do próprio membro ao entrar no mercado de trabalho x classe ocupacional no momento da morte)11. Enquanto o outro avaliou a mobilidade social através da classe ocupacional dividida em quatro categorias, porém em dois pontos do acompanhamento, gerando 16 possibilidades para a trajetória ocupacional e suas contribuições para seis fatores de risco para doenças cardiovasculares12.
Apenas um estudo apresentou a média de cigarros consumidos por dia em relação à mobilidade social13, enquanto outros quatro utilizaram a variável tabagismo na forma dicotômica12 , 14 - 16, fuma ou não fuma atualmente, e apenas um considerou os ex-fumantes na classificação da variável tabagismo11.
Os artigos incluídos nesta revisão mostraram que aqueles que se mantiveram na classe social mais baixa ao longo da vida foram os que apresentaram maiores frequências de tabagismo11 , 15, assim como aqueles cujos pais, ou eles mesmos, pertenciam a classes sociais mais elevadas no início do acompanhamento do que ao final, apresentando assim uma mobilidade descendente12 , 14 , 16, independente do canal de mobilidade social utilizado (escolaridade, renda, classificação ocupacional). Quando avaliado o número de cigarros consumidos por dia, a maior média observada foi entre o grupo que sofreu mobilidade descendente13.
Apesar de o tabagismo estar diminuindo em países de alta renda2, todos os estudos aqui reunidos são de países europeus, não tendo sido identificados estudos brasileiros que avaliassem a influência da mobilidade social no hábito de fumar. O sistema de vigilância de fatores de risco do Brasil, o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL), é uma série de estudos transversais que possibilita apenas estudo de tendências da prevalência de tabagismo sem a associação com a mobilidade social. Além de mostrar a queda do tabagismo, o VIGTEL aponta o Brasil como um exemplo global pelos avanços na política antitabaco17 , 18.
Na França, em uma coorte com trabalhadores da Companhia Nacional Francesa de Eletricidade e Gás, além de estimarem a ocorrência de tabagismo de acordo com mobilidade social, os autores avaliaram a influência do hábito de fumar sobre a mobilidade social, e os achados mostraram que aqueles que fumavam ascenderam menos dentro da empresa. Assim como em outros estudos, em relação à influência da mobilidade social no fumo, a prevalência de tabagismo foi menor entre aqueles que passaram por mobilidade ascendente e, na análise de incidência, o resultado observado foi no mesmo sentido15.
Nos artigos revisados, a ocorrência de tabagismo se mostrou maior em indivíduos que se mantiveram estáveis no grupo de posição socioeconômica inferior e naqueles que sofreram mobilidade descendente e migraram para esses grupos mais desfavoráveis, sugerindo uma forte relação entre nível socioeconômico baixo e o hábito de fumar, indo ao encontro de evidências já descritas na literatura4 - 6 , 19.
Uma limitação do presente estudo, assim como da produção bibliográfica da área, é a nomenclatura mobilidade social não ser um consenso entre os estudos que avaliam mudanças de classes. Talvez um dos motivos dessa limitação seja o grande número de canais através dos quais a mobilidade social pode ser medida, mas o certo é que isso dificulta a busca de estudos. Apesar desta revisão ter sido realizada a partir de termos usualmente empregados na literatura, apontados pela busca exploratória, acredita-se que alguns estudos possam não ter sido identificados, pois, além do motivo descrito acima, a estratégia de busca utilizada pode ter sido restrita.
No Brasil há um estudo de coorte de nascimentos que abordou o tema, porém o artigo não foi encontrado na busca, talvez pela nomenclatura utilizada pelos autores para identificar a mobilidade social ser "mudança de renda". Apesar de não fazer parte desta revisão, os resultados desse estudo vão no mesmo sentido dos achados observados em artigos aqui incluídos, uma vez que os autores indicam que há uma alta concentração de tabagistas nos grupos mais pobres20.
O conjunto de artigos da revisão mostra que, assim como outras variáveis comportamentais, a prevalência de tabagismo entre aqueles que tiveram uma mobilidade social ascendente tende a ser semelhante à prevalência do grupo estável na parte superior da distribuição, do mesmo modo que a proporção de tabagistas entre aqueles que tiveram uma mobilidade social descendente tende a ser semelhante a do grupo estável na parte inferior da distribuição. Ao final da revisão ficam duas considerações: a importância de uma padronização dos trabalhos que estudam trajetória socioeconômica para utilizarem a terminologia mobilidade social e que as pessoas que migram para um novo grupo social tendem a mimetizar hábitos do novo grupo.