versão impressa ISSN 0102-7638
Rev Bras Cir Cardiovasc vol.29 no.3 São José do Rio Preto jul./set. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/1678-9741.20140074
Abreviaturas, acrônimos & símbolos | |
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ATP | Trifosfato de adenosina |
CEC | Circulação extracorpórea |
HTK | Histidina-triptofano-cetoglutarato |
Em | Potencial de repouso |
CPK | Creatinofosfoquinase |
As primeiras operações cardíacas eram realizadas com o coração batendo, limitando-se a correção de enfermidades mais simples como sutura de ferimentos cardíacos, drenagem pericárdica e fechamento de canal arterial. Nessa época, as complicações eram relacionadas à depressão miocárdica[1,2]. Em 1953, John Gibbon realizou a primeira cirurgia cardíaca a céu aberto, tornando possível a abordagem de doenças intracardíacas[3] com a utilização de substâncias que produziam parada cardíaca controlada, chamadas genericamente agentes cardioplégicos[4].
Diversos métodos de proteção miocárdica apresentam resultados satisfatórios, mas, apesar disso, nenhum deles pode ser considerado ideal. O agente cardioplégico ideal necessita cumprir os seguintes requisitos[5]:
1. Parada cardíaca: indução rápida e eficaz da parada cardíaca com o miocárdio relaxado e com o mínimo de consumo de ATP;
2. Proteção miocárdica: efeitos protetores para retardar a lesão celular irreversível causada pela isquemia global e limitar a extensão da lesão de reperfusão;
3. Reversibilidade: reversão imediata da parada cardíaca com frequência cardíaca e força de contração, possibilitando "desmame" precoce da circulação extracorpórea (CEC);
4. Baixa toxicidade: meia-vida curta sem efeitos tóxicos em outros sistemas ou aparelhos após a descontinuidade da CEC;
5. Permitir boa visualização do campo operatório.
Diante desse contexto, o objetivo do presente trabalho é tecer algumas considerações bioquímicas e fisiológicas a respeito das modalidades de cardioplegia hipercalêmica e hipocalcêmica.
Em 1955, Melrose et al.[6] introduziram a perfusão miocárdica com solução cardioplégica cristaloide hipotérmica com citrato de potássio a 2,5%, mas logo abandonaram essa técnica devido à necrose miocárdica e morte de diversos pacientes. Gay & Ebert[7], reintroduzindo essa mesma técnica, porém com concentrações menores de potássio, conseguiram benefícios metabólicos e funcionais para o miocárdio, sem qualquer alteração estrutural aparente. A partir desses resultados, começou o uso generalizado da solução rica em potássio, cristaloide e hipotérmica para proteção miocárdica. Em 1975, a solução St. Thomas foi introduzida por Hearse et al.[8], usando cloreto de potássio com concentrações de 10-30 mM. Essas soluções aboliram o problema do "stone heart" e soluções com potássio em concentração adequada para parada cardíaca foram consideradas o gold standard na proteção miocárdica[9,10].
Entretanto, posteriormente o seu uso foi correlacionado por Cohen et al.[11] com disfunção miocárdica pós-operatória devido à falha em proteger completamente o miocárdio da isquemia e lesão de reperfusão, levando diversos autores a pesquisar soluções alternativas mais seguras para os pacientes.
O potássio extracelular elevado (10-40mM) altera o potencial de repouso (Em) dos miócitos de -85mV para uma faixa entre -65mV e -40mV, inativando os canais rápidos de sódio. Esse novo "Em" bloqueia a condução do potencial de ação miocárdico, induzindo assim a parada cardíaca despolarizada. Entretanto, ela não inativa completamente os canais lentos de sódio (janela do sódio), aumentando sua concentração intracelular de maneira lenta (Figura 1)[5,10,12].
Associado a isso, o canal de cálcio tipo L (dihidropiridínico), que é ativado com "Em" entre -20mV a -30mV, faz com que o cálcio adentre o citosol[13], fenômeno esse chamado de janela do cálcio[5]. A seguir, a bomba antiporte Na+/Ca2 + é ativada ao contrário, retirando sódio do intracelular e internalizando o íon cálcio. Íons H+ (decorrentes de isquemia) sairão da célula pela bomba antiporte Na+/H+, contribuindo para a entrada de ainda mais íons sódio (Figura 1)[5,10].
A bomba Na+/K+ será inibida pela concentração elevada do potássio extracelular, acidose e hipotermia, permitindo com que o nível de Na intracelular permaneça elevado, perpetuando a ação da bomba antiporte Na+/Ca2+ funcionando ao contrário. Esse panorama intracelular de cálcio elevado leva a contratura do miócito mesmo sem deflagrar potencial de ação, com gasto energético. O sódio elevado produz edema celular e citólise no momento da reperfusão[5]. Assim, a cardioplegia hipercalêmica não consegue inibir a entrada de cálcio na célula miocárdica e nem evitar seus efeitos negativos (Figura 1)[12,13].
O cálcio age como efetor na fibra cardíaca, conectando a fase de contração ventricular com a de excitação pelo potencial de ação. Tal mecanismo é chamado de acoplamento excitação-contração[14]. A célula muscular estriada esquelética também possui esse mecanismo, porém na fibra cardíaca há algumas diferenças que têm efeitos importantes sobre as características de sua contração[15].
Como no músculo esquelético, quando um potencial de ação passa sobre a membrana do miocárdio, também se espalha para o interior da fibra muscular cardíaca ao longo das membranas dos túbulos T. Os potenciais dos túbulos T, por sua vez, causam a liberação instantânea de íons cálcio das cisternas do retículo sarcoplasmático para o interior do sarcoplasma muscular. Os íons cálcio então se difundem, em alguns milésimos de segundo, para as miofibrilas, onde catalisam as reações químicas que promovem o deslizamento dos filamentos de actina e miosina entre si; isso, por sua vez, produz a contração muscular. Até aqui, esse mecanismo de acoplamento excitação-contração é o mesmo que o do músculo esquelético, mas nesse momento começa a surgir uma diferença fundamental. Além dos íons cálcio liberados no sarcoplasma a partir das cisternas do retículo sarcoplasmático, grandes quantidades de cálcio também se difundem durante o potencial de ação dos túbulos T para o sarcoplasma[15].
De fato, sem esse cálcio extra dos túbulos T, é provável que a força de contração do músculo cardíaco fosse consideravelmente reduzida, uma vez que as cisternas do músculo cardíaco são menos desenvolvidas que as do músculo esquelético e não armazenam cálcio suficiente para produzir contração efetiva. Por outro lado, os túbulos T do músculo cardíaco têm diâmetro cinco vezes maior que os do esquelético; no interior do túbulo T há quantidade grande de mucopolissacarídeos carregados eletronegativamente e que fixam depósito abundante de íons cálcio, mantendo-o sempre disponível para difusão no interior da fibra muscular cardíaca quando ocorre potencial de ação no túbulo T. Esse suprimento extra de cálcio a partir dos túbulos é pelo menos um dos fatores que prolongam o potencial de ação do músculo cardíaco e mantem sua contração durante 1/3 de segundo, em vez de 1/10 desse tempo, como ocorre no músculo esquelético[15].
No final do platô do potencial de ação, o suprimento de novos íons cálcio para o interior da fibra muscular é subitamente interrompida e os íons no sarcoplasma são rapidamente bombeados de volta para o retículo sarcoplasmático e túbulos T, finalizando assim a contração até que ocorra novo potencial de ação[15].
É de especial interesse o fato de que a força de contração do músculo cardíaco dependa da concentração de íons cálcio nos líquidos extracelulares, o que normalmente não é o que ocorre com o músculo estriado. A provável razão disso é que a quantidade de íons cálcio nos túbulos T é diretamente proporcional à sua concentração no líquido extracelular. Consequentemente, a disponibilidade de íons cálcio para causar contração do músculo cardíaco depende diretamente da presença desses íons no líquido extracelular[15].
O meio extracelular sem cálcio impede a sua internalização tanto por via membrana celular como via retículo sarcoplasmático, evitando que haja contração dos miofilamentos. Mesmo havendo potencial de ação, não há contração do miocárdio[5].
Investigando o efeito da solução de cardioplegia hipocalcêmica em corações imaturos de ovelhas submetidos à isquemia e hipotermia, Aoki et al.[16] verificaram que com concentração fisiológica de cálcio houve piora da função ventricular esquerda e da função diastólica, aumento do consumo de oxigênio e da resistência vascular coronariana quando comparado com hipocalcemia, indicando que níveis baixos de cálcio protegeram o coração dos efeitos deletérios da hipotermia e isquemia.
Baker et al.[17], comparando efeitos de diversas concentrações de cálcio na solução de St. Thomas em corações imaturos de coelho, constataram que quanto menor a concentração de cálcio menor foi a concentração de creatinafosfoquinase (CPK), mas a recuperação do fluxo aórtico não teve a mesma distribuição. Seu comportamento foi parabólico com zênite em 0,3 mmol/L, quando o coração obteve seus maiores valores de fluxo aórtico.
Na comparação entre soluções hipocalcêmica e normocalcêmica na cardioplegia sanguínea em corações imaturos isquêmicos ou não de porcos em CEC, Bolling et al.[18] observaram que o grupo sem isquemia foi beneficiado independentemente do tipo de cardioplegia; no grupo isquêmico houve piora da função miocárdica, dos níveis de ATP e aumento da resistência vascular coronariana naqueles tratados com cardioplegia normocalcêmica, enquanto na hipocalcêmica foram obtidos os mesmos valores do grupo sem isquemia, indicando que a hipocalcemia protegeu o coração da isquemia.
Avaliando o consumo de oxigênio em corações de ratos submetidos à cardioplegia hipocalcêmica ou hipercalêmica, Burkhoff et al.[19] averiguaram que o grupo hipocalcêmico apresentou consumo menor de oxigênio quando comparado ao que utilizou solução rica em potássio.
Kronon et al.[20] concluíram que solução cardioplégica com concentração fisiológica de cálcio é deletéria para corações imaturos de porcos, exceto quando magnésio foi incluído na solução (10 mEq/L), sendo o miocárdio protegido dos efeitos deletérios do cálcio. Em outro trabalho, os mesmos autores verificaram que quando o magnésio (tanto 5-6 mEq/L quanto 10-12 mEq/L) foi adicionado à solução hipocalcêmica houve melhora significativa na contração miocárdica e redução da rigidez diastólica[21].
Mori et al.[22] relataram melhor recuperação da primeira derivada da pressão desenvolvida do ventrículo esquerdo (dP/dt), fluxo coronário, valores menores de CPK e menor edema celular em corações de coelho submetidos à cardioplegia com baixo teor de cálcio (0,5 mmol/L) quando comparado com solução sem cálcio.
Robinson et al.[23], utilizando concentração de cálcio da solução de St. Thomas (0,6 mmol/L), constataram melhora da recuperação do fluxo aórtico em 64%, CPK reduzida em 84% e arritmias de reperfusão pós-isquêmica também reduzidas, com retorno ao ritmo sinusal mais rápido que no grupo com a solução habitual.
Em corações imaturos de coelhos com concentrações de cálcio entre 0,6 e 1,2 mmol/L submetidos a 1h de isquemia normotérmica, Zweng et al.[24] relataram melhor recuperação do fluxo aórtico, pressão desenvolvida e dP/dt.
Diversos autores apontam que a cardioplegia sem cálcio está associada à recuperação pior da função cardíaca[22,24-26] e dos fluxos coronário[22] e aórtico[24], ao aumento da creatinofosfoquinase[22,25] e edema celular[22]. Tais alterações ocorrem devido ao fenômeno denominado "paradoxo do cálcio", o que não ocorre quando adicionamos quantidade pequena de cálcio à solução[14,27].
Um exemplo de solução hipocalcêmica é a solução de Bretschneider. Além de adicionar traços de cálcio, também incorpora benefícios da histidina, triptofano, cetoglutarato e manitol.
A histidina (aminoácido) atua como sistema tampão na solução de modo dependente da temperatura. Quando colocada à temperatura de 22ºC, a histidina mantém o pH entre 7,02-7,20, ao passo que quando a temperatura é de 4ºC, o pH fica em torno de 7,40. Isso significa que a temperatura ideal da solução é de 4ºC, pois mantém o pH em nível fisiológico. Esse aminoácido também inibe as metaloproteinases de matriz, responsáveis pelo desenvolvimento da lesão tecidual durante a preservação a frio. Além disso, a histidina também age como impermeante de membrana celular, potencializando o efeito osmótico do manitol[28].
O triptofano contribui para manutenção da integridade das membranas celulares[28]. Hachida et al.[29] relataram que a ausência do triptofano na solução provocou decréscimo significativo na pressão máxima desenvolvida e do fluxo sanguíneo coronariano.
Hachida et al.[29] também avaliaram a ausência do cetoglutarato na solução, o que resultou em decréscimo da pressão máxima desenvolvida e aumento da fração MB da creatinofosfoquinase, ambos de maneira significativa.
A cardioplegia hipocalcêmica é segura na proteção ao miócito tanto em corações imaturos como em mais velhos, pois evita depleção do ATP e acidose, e está associada a boa recuperação da função ventricular. Soluções cardioplégicas hipocalcêmicas como a histidina-triptofano-cetoglutarato têm sido utilizadas rotineiramente em cirurgias cardíacas ao redor do mundo, mas ainda não é a solução ideal. Novas pesquisas ainda são necessárias para obtermos uma cardioplegia que seja ao mesmo tempo de ação rápida, atóxica, de rápida metabolização, que promova boa visualização do campo operatório e proteja adequadamente o miócito.
Papéis & responsabilidades dos autores | |
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MABO | Análise e/ou interpretação dos dados; Análise estatística; |
Aprovação final do manuscrito; Concepção e desenho do estudo; Realização das operações e/ou experimentos | |
Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo | |
ACB | Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo |
CAS | Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo |
PHHB | Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo |
JLLC | Redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo |
DMB | Aprovação final do manuscrito; Concepção e desenho do estudo |