versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.2 São Paulo abr./jun. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150031
A cobertura da terapia renal substitutiva, no Ministério da Saúde do Peru (MINSA), é deficiente. O serviço público atende 70% dos peruanos, mas ainda existem regiões onde os pacientes não têm acesso a um nefrologista ou alguma forma de tratamento.1 Em Lima, estão concentradas a maioria destas alternativas. No entanto, ainda são insuficientes para atender a demanda de seus habitantes, existindo pacientes que não recebem diálise e que interrompem o tratamento.1,2
Tem sido relatado que, apesar dos avanços no tratamento dos pacientes com doença renal crônica (DRC), a mortalidade em pacientes em hemodiálise (HD) é alta.3,4 Isto é devido, entre outros fatores, ao tratamento que recebem antes de ingressar a diálise.5-9 Portanto, recomenda-se avaliação nefrológica adequada dos pacientes candidatos a iniciá-la, pois reduz a morbidade e a mortalidade.9-12
Na América Latina, a Argentina relatou que a mortalidade de seus pacientes prevalentes em HD de manutenção é de 15,65 óbitos por 100 paciente-anos de exposição ao risco.13 No Brasil, descreve-se uma taxa anual de mortalidade de 19,9%.14 No Peru, foram relatadas experiências sobre a mortalidade de pacientes em diálise tanto na população com acesso à segurança social15 como em pacientes de um hospital de referência nacional do MINSA.16 No entanto, não há estudos que avaliaram a associação entre mortalidade e condições dos pacientes na admissão à diálise.
O Hospital Nacional 2 de Mayo (HN2M) é um hospital de referência nacional e juntamente com o Hospital Cayetano Heredia (HNCH) são os maiores centros de diálise do MINSA no Peru. Avaliar o seu programa de diálise pode ser importante para conhecer a mortalidade de pacientes no país. O objetivo do nosso estudo foi determinar a mortalidade em pacientes que iniciam hemodiálise no Hospital Nacional 2 de Mayo e os fatores associados.
Trata-se de uma coorte de pacientes com DRC em HD de manutenção que foram atendidos no Centro de Nefrologia do HN2M. Os pacientes acima de 18 anos foram recrutados entre 1º de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2013. O período de seguimento encerrou-se no dia 31 de março de 2014.
Considerou-se o dia de entrada do paciente a data que foi iniciada a hemodiálise. Contabilizou-se o dia de saída a data do último atendimento vivo, da confirmação do abandono ou ainda a data de óbito.
Foram excluídos os pacientes que começaram HD com diagnóstico de lesão renal aguda, intoxicação e pacientes com DRC que iniciaram hemodiálise em outro hospital.
A partir de um registro eletrônico de coleta de dados, os seguintes dados demográficos e clínicos foram registrados: idade, sexo, se o paciente era atendido regularmente no hospital, etiologia da DRC e se o paciente começou HD de forma programada ou de emergência.
Registrou-se também o tempo do diagnóstico de DRC, se o paciente já havia sido avaliado por um nefrologista, pelo menos, duas vezes no ano passado e o tipo de acesso vascular utilizado no início da HD. Além disso, foram registrados os valores de hemoglobina, potássio, potencial hidrogeniônico (pH), bicarbonato e creatinina antes da primeira hemodiálise e calculouse a taxa de filtração glomerular (TFG) com o uso da fórmula de Modification Dialysis Renal Disease 4.17
Usando as informações de enfermagem do centro de diálise, determinou-se a data de início da HD, abandono ou morte.
Na análise estatística, para as variáveis contínuas calculou-se a média e desvio padrão se tivessem distribuição normal e a mediana com variação interquartil se tivessem distribuição assimétrica. Apresentaram-se as frequências em percentuais das variáveis categóricas. Para investigar as variáveis contínuas associadas à mortalidade, calculou-se o teste t de Student, em casos de distribuição normal, e o teste U de Mann-Whitney, se os dados fossem assimétricos. As variáveis categóricas foram investigadas pelo teste do qui-quadrado ou pelo teste exato de Fisher, conforme os valores esperados. Estimou-se a sobrevida pelas curvas de Kaplan-Meier. Precedeu-se regressão logística uni e multivariada incluindo as variáveis: idade, taxa de filtração glomerular, tempo de diagnóstico de DRC, atendimento prévio por nefrologista e diálise agendada. A associação foi estimada pelo cálculo do odds ratio (OR) com intervalo de confiança de 95%. Considerouse estatisticamente significativo o valor de p < 0,05.
As análises foram feitas utilizando o pacote estatístico STATA® versão 11.0 (StataCorp LP, College Station, TX).
Os dados deste trabalho foram obtidos dos registros utilizados na vigilância epidemiológica do serviço de nefrologia do HN2M, por isso, não foi necessário apresentá-lo ao Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital.
Foram estudados 235 pacientes. A idade média foi de 56,4 anos e quase seis em cada dez pacientes eram do sexo masculino (Tabela 1). A maior parte tinha doença renal diabética e o rim policístico foi a causa menos frequente. Mais ou menos a metade dos pacientes na admissão de hemodiálise tinha menos de um mês de diagnóstico de DRC; além disso, apenas oito apresentaram fístula arteriovenosa. Pouco mais de um terço dos pacientes estavam designados para HN2M. Apenas 15 pacientes começaram com diálise programada e cerca de um em cada quatro pacientes foi atendido anteriormente por um nefrologista.
Tabela 1 Características demográficas e clínicas da população do estudo
Variáveis | Total | Mortos | Vivos | Valor p |
---|---|---|---|---|
N = 236 | N = 68 | N = 168 | ||
Idade (anos) | 56,40 ± 15,76 | 59,35 ± 14,80 | 55,20±16,02 | 0,07 |
Masculino | 149 (63,14) | 41 (60,29) | 108 (64,29) | 0,57 |
Etiología da DRC | 0,34 | |||
Nefropatía Diabética | 78 (44,07) | 28 (51,85) | 50 (40,65) | |
Glomerulonefrite crônica | 41 (23,16) | 13 (24,07) | 28 (22,76) | |
Uropatia obstrutiva | 27 (15,25) | 5 (9,26) | 22 (17,82) | |
Nefropatía Hipertensiva | 22 (12,43) | 7 (12,96) | 15 (12,20) | |
Doença renal policística | 9 (5,08) | 1 (1,85) | 8 (6,50) | |
Tempo do diagnóstico da DRC | 0,55 | |||
< 1 mês | 107 (45,34) | 31 (45,59) | 76 (45,24) | |
1 a 6 meses | 53 (22,46) | 18 (26,47) | 35 (20,83) | |
> 6 meses | 76 (32,20) | 19 (27,94) | 57 (33,93) | |
Tipo de Acesso Vascular | 0,11 | |||
Fistula Arterio-Venosa | 8 (3,43) | 0 (0) | 8 (4,82) | |
Cateter não tunelizado | 225 (95,18) | 67 (100) | 158 (95,18) | |
Paciente do HN2M | 79 (33,91) | 27 (40,91) | 52 (31,14) | 0,15 |
Diálise programada | 15 (6,36) | 1 (1,47) | 14 (8,33) | 0,07 |
Acompanhado por um nefrologista | 57 (24,15) | 19 (27,94) | 38 (22,62) | 0,38 |
Valores de Laboratório | ||||
Taxa de filtração glomerular | 4,94 ± 3,08 | 5,39 ± 3,06 | 4,76± 3,08 | 0,16 |
Hemoglobina | 7,18 ± 2,52 | 7,13 ± 2,52 | 7,19± 2,53 | 0,85 |
pH | 7,29 (7,20- 7,36) | 7,29 (7,17-7,36) | 7,29 (7,21-7,36) | 0,54 |
HCO3 | 11,11 ± 4,76 | 11,13 ± 5,31 | 11,10± 4,52 | 0,97 |
Potássio | 6,11 ± 1,49 | 5,94 ± 1,57 | 6,18 ± 1,45 | 0,25 |
Cálcio | 7,70 (6,90-8,40) | 7,90 (7,00-8,40) | 7,65 (6,70-8,40) | 0,35 |
Fósforo | 7,27 ± 2,84 | 7,33 ± 2,55 | 7,24 ± 2,95 | 0,85 |
Média ± Desvio Padrão Mediana (intervalo interquartil) número (porcentagem). DRC: Doença Renal Crônica; H2M: Hospital Dos de Mayo.
A mediana do acompanhamento foi de 0,6 anos (IQR 9 a 45). Oitenta e dois porcento dos participantes foram acompanhados por menos de 3 meses. 68 pacientes foram a óbito e 118 (50,2%) abandonaram a terapêutica durante o seguimento.
A mortalidade média durante o terceiro mês foi de 37,7% (IC 95% 29,3 a 48,5), enquanto a média ao sétimo mês foi de quase 50% (49,5% (IC 95% 38,8 a 61,4). A distribuição da sobrevida pode ser vista na curva de Kaplan-Meier mostrada na Figura 1.
A Tabela 1 apresenta a distribuição das variáveis demográficas e clínicas dos pacientes de acordo com o estado vital no momento da alta. Além disso, foram observadas algumas medidas de desempenho: taxa de filtração glomerular, hemoglobina, bicarbonato, potássio, cálcio e fósforo. Ao comparar os valores entre sobreviventes e os que foram a óbito, não houve diferenças estatisticamente significativas.
Os resultados do modelo multivariado estão dispostos na Tabela 2. Os seguintes fatores não se associaram com a mortalidade: idade, etiologia da DRC, tempo com a doença, acompanhamento pelo nefrologista, TFG e diálise (Tabela 2). No entanto, há uma tendência de proteção quando o diagnóstico é superior à 6 meses, com diagnóstico de DRC (OR = 0,39 [IC 95% 0,12-1,27]) ou quando o paciente participa de diálise programada (OR = 0,28 [IC 95% 0,01-2,28]).
Tabela 2 Aregressão logística multivariada para mortalidade em pacientes com doença renal crônica em hemodiálise
Variável | Odds Ratio (IC 95%) | Valor p |
---|---|---|
Idade* | 1,03 (0,99 a 1,07) | 0,08 |
Etiología | ||
Nefropatía Diabética | 1 | -- |
Glomerulonefrite crônica | 0,92 (0,25 a 3,38) | 0,90 |
Uropatia obstrutiva | 0,28 (0,76 a 1,06) | 0,06 |
Nefropatía Hipertensiva | 0,64 (0,14 a 3,01) | 0,57 |
Doença renal policística | 0,41 (0,40 a 4,31) | 0,46 |
Tempo do diagnóstico DRC | ||
< 1 mês | 1 | -- |
1 a 6 meses | 0,55 (0,18 a 1,71) | 0,30 |
> 6 meses | 0,39 (0,12 a 1,27) | 0,11 |
Acompanhado por um nefrologista | 2,29 (0,89 a 5,91) | 0,09 |
Taxa de filtração glomerular | 1,00 (0,88 a 1,13) | 0,99 |
Diálise programada | 0,28 (0,01 a 2,28) | 0,18 |
*Odds ratio para cada ano de idade.
Encontramos alta mortalidade entre os pacientes incidentes, com quase 50% no sétimo mês de acompanhamento. Detectou-se menor mortalidade nos pacientes com mais de 6 meses de diagnóstico de DRC e naqueles com o diálise programada.
Embora se tenha descrito alta mortalidade de pacientes em diálise,3,4 é evidente que em nosso país que a mortalidade é tão alta como a descrita em países da África. Nesta região os custos e mortalidade associados com a terapia renal substitutiva fazem questionar o começo da mesma nos seus pacientes.18 Esta situação mostra que o crescimento econômico do Peru não está associado à melhoria do estado de saúde de pacientes com DRC, especialmente a uma melhor cobertura no MINSA.1,2
Questões de custo em terapia renal substitutiva foram relatadas em outros países do terceiro mundo19,20 e tiveram como consequência que a Kidney Disease Improving Global Outcomes (KDIGO) considere a publicação de uma guia para o tratamento médico paliativo de pacientes com DRC5 após constatar que em muitas partes do mundo as TRS não estão disponíveis.21
Há dois relatos peruanos sobre mortalidade em HD crônica. Meneses et al.15 compararam a mortalidade da população incidente em diálise entre 1982-1995 com a do período entre 1995-2007 de uma unidade privada de atenção a pacientes do seguro social. Os autores não encontraram diferenças significativas entre os dois períodos e relatam a sobrevida global no primeiro ano de 87% (n = 236). Cieza et al.16 relataram a sobrevivência da população nos três modos de terapia renal substitutiva (hemodiálise, diálise peritoneal e transplante do rim), no HNCH entre 1 de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2011. A sobrevivência no primeiro ano em HD foi de 95,1% ± 0,21 (n = 90); também encontrou que as mulheres tiveram menor sobrevida do que os homens e pacientes maiores ou iguais a 60 anos também tiveram menor sobrevida do que aqueles com menos de 60 anos nos três modos de terapia renal substitutiva.
Essa discrepância na mortalidade em relação ao nosso trabalho pode ser explicada pelo tipo de pacientes que se incluíram nestes estudos: os autores estudaram apenas a população prevalente ou não incluíram pacientes que abandonaram a terapêutica. Além disso, enquanto o estudo de Meneses et al. foi realizado numa unidade privada de atenção, o estudo de Cieza et al. foi feito em uma unidade hospitalar que não incluiu pacientes admitidos na diálise não programada e que morreram em sua primeira hospitalização. Assim, poder-se-ia ter uma informação parcial dos problemas dos pacientes em diálise no MINSA serviço público como se relatou anteriormente1 e que explica a razão para a nossa maior mortalidade.
Em nossa população encontrou-se uma tendência que o ingresso à diálise programada e ter um maior tempo de diagnóstico de DRC esteve relacionado à menor mortalidade. No entanto, os nossos esforços para implementar estes aspectos podem-se ver limitados ao constatar que apenas um terço dos pacientes tiveram avaliações anteriores no hospital. Este resultado, junto ao fato de que quase a metade dos nossos pacientes não tem conhecimento do seu diagnóstico em menos de um mês antes de entrar em diálise, mostram a falta de um programa integral de cuidado para pacientes com DRC no MINSA.
Um acompanhamento nefrológico prévio adequado é associado a melhores resultados em pacientes que iniciam hemodiálise crônica.9-12 Esse acompanhamento inclui, entre outras coisas, ingresso programado à diálise com avaliações por um nefrologista,9,11 assim como a confecção da fístula arteriovenosa como acesso vascular permanente.22 No entanto, apesar destas recomendações, existe variabilidade nos resultados relatados em diferentes países. Assim, a utilização da fístula na população incidente na diálise é de 83% na Alemanha, 69% na Espanha e apenas 15% nos Estados Unidos.6 Além disso, o acompanhamento por um nefrologista antes do início da HD foi relatado em 56,6% dos pacientes incidentes nos Estados Unidos7 e 63% na Espanha.8 A maioria dos nossos pacientes começou a HD com um cateter venoso transitório e apenas 1 em cada 4 teve uma avaliação nefrológica anterior.
Nossos resultados são parecidos aos que foram encontrados num estudo brasileiro, onde, igualmente ao nosso país, quase a metade dos pacientes que ingressaram a diálise não sabia que tinham DRC e aproximadamente um de cada quatro haviam tido uma avaliação nefrológica anterior.23
Um detalhe preocupante é a alta taxa do abandono da diálise entre os nossos pacientes. Nós não estudamos as causas desses abandonos por não termos um sistema de seguimento dos pacientes que não continuam em nosso centro de diálise. Entretanto, a falta de vagas para diálise crônica no hospital e a falta de recursos econômicos são as razões mais prováveis para esta situação, pois a instituição tem capacidade para apenas 100 pacientes.2
Nosso trabalho tem limitações importantes. Primeiro, os nossos resultados, por serem obtidos a partir de uma única instituição, não podem ser extrapolados para outros hospitais do MINSA públicos peruanos. No entanto, por ser realizado em um hospital de referência nacional, poderia servir para questões não discutidas em relatórios anteriores de mortalidade em diálise no Peru. Segundo, tendo uma alta taxa de abandono da terapia entre nossos pacientes, é provável que a mortalidade global em nossa população esteja subestimada. Terceiro, o pequeno número de participantes e o pequeno número de eventos (58) são também limitações da análise de fatores associados. Por último, ao ter uma alta frequência de fatores associados ao mau controle prévio, tanto nos pacientes mortos como nos vivos, não é possível encontrar associações estatisticamente significativas.
Em conclusão, a nossa população tem uma alta mortalidade em diálise. Ter mais tempo com diagnóstico de DRC e o ingresso programado na diálise tendem a serem fatores de proteção para mortalidade.