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Mortalidade por câncer entre pintores brasileiros das regiões Sul e Sudeste do Brasil

Mortalidade por câncer entre pintores brasileiros das regiões Sul e Sudeste do Brasil

Autores:

Aline de Souza Espindola Santos,
Amanda Alzira Friaes Martins,
Jaime Silva de Lima,
Armando Meyer

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1414-462Xversão On-line ISSN 2358-291X

Cad. saúde colet. vol.24 no.4 Rio de Janeiro out./dez. 2016

http://dx.doi.org/10.1590/1414-462x201600040293

Abstract

As a result of their professional activity, painters come in regular contact with significant amounts of genotoxic and carcinogenic substances and may have increased risk for various diseases, including some cancers. This study aimed to compare the mortality by specific cancers among painters and the general population from the South and Southeast regions of Brazil from 1996 to 2013. Data on cancer deaths were obtained from the Brazilian Mortality Information System, according to ICD-10. To determine the risk of death from specific cancers, we calculated the mortality odds ratio (MOR), stratified by age (25-44 years and 45-64 years) and region. Older painters of the South and Southeast regions had a higher chance to die by oropharyngeal (MOR=1.73; 95% CI 1.51 to 1.98), hypopharynx (MOR=1.56; 95% CI 1.20 -2.03) and larynx cancer (MOR=1.45; 95% CI 1.32 to 1.61) when compared to the general population. These results suggest that painters may be at greater risk of becoming ill and dying from specific cancers from the upper respiratory tract.

Keywords:  occupational exposure; painters; mortality; cancer

INTRODUÇÃO

Em 1989, a Agência Internacional para Pesquisa em Câncer (IARC) classificou como cancerígena para humanos (grupo 1A) a exposição ocupacional como pintor, baseada nas evidências do aumento de risco para câncer de pulmão em estudos epidemiológicos de coorte, caso-controle e metanálise, em sua maioria, ajustados para tabagismo1-3. Embora essa classificação não inclua outras neoplasias, estudos epidemiológicos sugerem associações positivas entre pintores e o desenvolvimento de cânceres de bexiga, cavidade oral, faringe, laringe e testículos4-7.

No Brasil, somente dois estudos de caso-controle ocupacionais realizados em São Paulo avaliaram a associação entre pintores e desenvolvimento de câncer. No primeiro, Wünsch-Filho et al.8 não observaram associação entre pintores com mais de dez anos de profissão e câncer de pulmão, com ou sem ajuste para tabagismo. Já Andreotti et al.9 avaliaram o risco para câncer de cavidade oral e de orofaringe combinado para diferentes ocupações. Os resultados para pintores, ajustados para fumo e bebida alcoólica, não apresentaram aumento significativo do risco para os cânceres estudados.

A exposição ocupacional em pintores pelas vias inalatória e dérmica está relacionada à volatilização de solventes durante as etapas de mistura, aplicação e transporte de tintas, massa corrida, removedores ou vernizes e a liberação de poeira contendo pigmentos, resinas e aditivos durante o lixamento de superfícies metálicas, de madeira e cimento3. Embora a inalação ou o contato dérmico sejam considerados os de maior relevância toxicológica, a via oral pode estar associada a exposições ocasionais por meio da ingestão de alimentos e bebidas no ambiente de trabalho3.

Alguns aspectos na ocupação de pintor podem intensificar a exposição a agentes químicos. Grande parte desses profissionais trabalha como autônomo e possui baixa escolaridade, característica socioeconômica importante para a compreensão dos rótulos e da toxicidade dos produtos manipulados10,11. Adicionalmente, a deficiente capacitação e a atualização profissional estão associadas à reduzida percepção dos riscos ocupacionais, sobretudo o risco químico e a baixa adesão aos equipamentos de proteção individual12,13.

O risco químico nessa atividade profissional está associado a uma variedade de substâncias genotóxicas, mutagênicas e carcinogênicas3. Do grupo 1A (cancerígenos em humanos) estão incluídos pigmentos orgânicos (2-naftilamina, 4-aminobifenil e benzidina), inorgânicos (compostos contendo cromo VI, níquel e o cádmio), solventes como o benzeno, alcatrão de hulha e formaldeído, e agentes anti-incrustantes derivados de arsênio. Substâncias do grupo 2A (provável carcinógeno para humanos) também estão presentes no processo de trabalho de pintores, como bifenilas policloradas e o tricloroetileno3,14,15.

Estudos de biomarcadores de efeitos genotóxicos têm sugerido que pintores apresentam maiores frequências de quebras de DNA, aberrações cromossômicas e micronúcleo quando comparados com os controles16-18. No Brasil, Silva e Mello (1996) observaram um aumento na frequência de aneuploidias e deleções cromossômicas em linfócitos de pintores de automóveis brasilienses em relação ao grupo controle, independentemente do hábito de fumar19. Em um estudo conduzido por Oliveira20 em Santa Catarina, trabalhadores de uma fábrica de tintas apresentaram um maior número de alterações no DNA de leucócitos e células epiteliais bucais em relação ao controle.

A presença de substâncias tóxicas em tintas e a aparente vulnerabilidade de profissionais expostos a essas substâncias evidenciam a necessidade de se avaliar os possíveis efeitos dessa exposição sobre a saúde dos pintores no Brasil. Sendo assim, o objetivo deste trabalho foi avaliar o perfil de mortalidade por neoplasias do trato respiratório (orofaringe, hipofaringe, laringe, pulmão), esôfago e testículos em pintores do sexo masculino, nas regiões Sudeste e Sul, no período de 1996 a 2013, e compará-lo ao da população geral masculina no Brasil.

METODOLOGIA

Os dados de mortalidade entre pintores e a população geral do sexo masculino foram coletados no Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), utilizando a 10ª revisão da Classificação Internacional de Doenças (CID-10). A busca pelos dados de morte foi feita em dois períodos (1996-2005) e (2006-2013), que estão associados a atualizações na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) no SIM. No primeiro período, o dado de morte em pintores foi obtido utilizando os seguintes códigos CBO (1994) de ocupação: 16100 (pintor artístico), 89500 (pintor de cerâmica), 93000 (pintor sem especificação), 93100 (pintor de construções cênicas, edifícios, embarcações, estruturas metálicas, obras, industrial), 93900 (pintor de aviões, de imersão-veículos, letreiros, manutenção, móveis, rótulos, veículos, por imersão). Para os anos de 2006-2013, foram utilizados os códigos CBO (2002): 716610 (pintor de obras), 723310 (pintor a pincel e rolo, exceto obras e estruturas), 723315 (pintor de estruturas metálicas), 723320 (pintor de veículos-fabricação), 723325 (pintor por imersão), 723330 (pintor, a pistola, exceto obras e estruturas metálicas), 752430 (pintor de cerâmica, a pincel), 768625 (pintor de letreiros), 991315 (pintor de veículos-reparação).

Inicialmente, foram avaliadas a distribuição de frequências de todas as neoplasias em relação ao total de óbitos entre pintores brasileiros e a população geral do sexo masculino por faixas etárias (25-44 e 45-64 anos), escolaridade (nenhuma, 1-7 anos, ≥8 anos) e região de residência. Uma vez que as regiões Sul e Sudeste apresentam maior completude do preenchimento dos dados do SIM e cobertura dos óbitos acima de 95% em relação às demais, nossas análises se restringiram geograficamente a essas regiões21,22. A seguir, foi analisada a distribuição de frequência de neoplasias selecionadas (câncer de orofaringe, CID10:10; hipofaringe, CID10:13; esôfago, CID10:15; laringe, CID10:32; pulmão, CID10:34; testículos, CID10:62) em relação ao total de óbitos por neoplasias das regiões Sul e Sudeste no período de 1996 a 2013. O teste do qui-quadrado foi utilizado com nível de significância de p<0,05 para comparar diferenças de proporções das covariáveis estudadas.

Neste estudo, a medida de associação utilizada foi a “Mortality Odds Ratio” ou razão de chances de mortalidade (RCM) proposta por Miettinen e Wang23. Para esta análise, foi necessário separar os dados de morte ou óbitos em dois grupos, a saber: o primeiro com todos os óbitos por neoplasias selecionadas e o segundo formado pelas demais causas de morte. A partir dessa separação, foram calculadas as chances de morte em pintores e na população geral, ou seja, o número de óbitos de uma neoplasia específica ou todas as neoplasias pelas demais causas de cada grupo. O cálculo da RCM baseou-se na divisão das chances entre os grupos comparados. O programa estatístico para realização das análises foi o WINPEPI, versão 11.43, com adoção do nível de significância estatística de 95%.

A utilização de dados secundários de domínio público para a condução deste estudo não requereu aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), conforme recomendações do Conselho Nacional de Saúde em sua Resolução CNS nº 466/2012.

RESULTADOS

Foi realizado um estudo epidemiológico ecológico que utilizou os dados de óbitos do SIM das regiões Sul e Sudeste do Brasil como unidade de análise. A frequência de óbitos masculinos por todas as neoplasias na população geral foi maior que aquela observada entre pintores (Tabela 1). Em relação à idade, verificou-se que a maior parte dos óbitos por neoplasias ocorreram na população geral entre os mais velhos (45-64 anos: 85,3%). No que se refere à escolaridade, 70,8% dos óbitos eram de pintores que apresentaram de um a sete anos de estudo, enquanto que, na população geral, 32,1% possuíam maior grau de instrução (oito anos ou mais). A variável escolaridade reflete a incompletude dos dados na população estudada, uma vez que, do total dos dados analisados, somente em 44,1% dos óbitos em pintores existiam informações relacionadas ao grau de instrução. Na população geral, essa informação foi obtida em 61,3% dos dados avaliados. Na estratificação por região, foi observada uma maior frequência por neoplasias em pintores (73,2%) na região Sudeste.

Tabela 1 Distribuição dos óbitos na população estudada segundo faixa etária e escolaridade das regiões Sudeste e Sul do Brasil, de 1996-2013 

1996-2013 Pintores População geral χ2 p
N % N %
Total 45535 100 2864599 100 148,8 0,00
Neoplasias 5689 12,5 425282 14,8
Faixas etárias
25-44 anos 989 17,4 62455 14,7 32,5 0,00
45-64 anos 4700 82,6 362827 85,3
Total 5689 100 425282 100
Educação
Nenhuma 192 7,5 22066 8,5 142,3 0,00
1-7 anos 1801 70,8 155032 59,5
≥8 anos 551 21,7 83637 32,1
Total 2544 44,1 260735 61,3
Região
Sudeste 4164 73,2 297332 69,9 28,7 0,00
Sul 1525 26,8 127950 30,1
Total 5689 100 425282 100

Na Tabela 2, podemos observar que, em relação ao total de óbitos masculinos por neoplasias, 39,1% foram atribuídas às neoplasias selecionadas (orofaringe, hipofaringe, esôfago, laringe, pulmão, testículos) em pintores contra 33,3% na população geral. Entre os cânceres selecionados, o de pulmão foi a maior causa de morte na população geral (45,7%), enquanto em pintores, foram o de laringe (19,2%), de orofaringe (10,9%) e de hipofaringe (2,8%). Não foram observadas diferenças na porcentagem de óbitos para o câncer de esôfago e testículos entre os grupos estudados.

Tabela 2 Distribuição de óbitos por neoplasias e por neoplasias selecionadas em pintores das regiões Sudeste e Sul do Brasil, de 1996-2013 

Pintores População geral χ2 p
N % N %
Neoplasias 5689 100,0 425282 100 41,0 0,00
Neoplasias selecionadas 2223 39,1 141433 33,3
CID-10 Localização anatômica
10 Orofaringe 242 10,9 10304 7,3 34,9 0,00
13 Hipofaringe 62 2,8 2996 2,1 4,5 0,03
15 Esôfago 625 28,1 39667 28,0 0,0 0,96
32 Laringe 427 19,2 21771 15,4 17,3 0,00
34 Pulmão 826 37,2 64580 45,7 25,3 0,00
62 Testículo 41 1,8 2115 1,5 1,7 0,19

Em relação à RCM, para os dados não estratificados por faixa etária (total), observamos um aumento do risco por câncer de orofaringe (RCM=1,48; IC95%:1,30-1,68), de hipofaringe (RCM=1,30; IC95%:1,01-1,67) e de laringe (RCM=1,32; IC95%:1,12-1,36) entre pintores homens, quando comparados à população geral (Tabela 3). Quando os dados foram estratificados, o grupo de pintores mais jovens (25-44 anos) não apresentou aumento no risco de morte para nenhum dos cânceres estudados. Já entre os pintores mais velhos, verificamos aumento no risco para câncer de orofaringe (RCM=1,73; IC95%:1,51-1,98), de hipofaringe (RCM=1,56; IC95%:1,20-2,03), de laringe (RCM=1,45; IC95%:1,32-1,61) e de esôfago (RCM=1,14; IC95%:1,05-1,24) em relação à população comparada. Quanto ao câncer de pulmão, verificamos que a exposição em pintores mais jovens conferiu efeito protetor, quando comparados à população geral (RCM=0,86; IC95%:0,75-0,86).

Tabela 3 Razão de chance de mortalidade (RCM) em pintores por neoplasias selecionadas, estratificada por faixa etária das regiões Sudeste e Sul do Brasil, de 1996-2013 

RCM (IC95%)
N Total 25-44 anos 45-64 anos
CID-10 Localização anatômica
10 Orofaringe 242 1,48 (1,30-1,68) 1,27 (0,89-1,83) 1,73 (1,51-1,98)
13 Hipofaringe 62 1,30 (1,01-1,67) 0,89 (0,37-2,15) 1,56 (1,20-2,03)
15 Esôfago 625 0,99 (0,92-1,07) 0,99 (0,79-1,24) 1,14 (1,05-1,24)
32 Laringe 427 1,32 (1,12-1,36) 1,05 (0,77-1,44) 1,45 (1,32-1,61)
34 Pulmão 826 0,86 (0,75-0,86) 0,82 (0,66-1,03) 0,93 (0,86-0,99)
62 Testículo 41 1,22 (0,90-1,66) 0,95 (0,68-1,34) 1,38 (0,68-2,77)

Na região Sudeste, pintores do sexo masculino apresentaram um aumento de risco para o câncer de orofaringe (RCM=1,58; IC95%:1,38-1,82) e de laringe (RCM=1,28; IC95%:1,15-1,43), quando analisados sem estratificação por faixa etária. Ao se estratificar por grupos etários, não foram observados aumentos na magnitude do risco de morte por neoplasias específicas em pintores mais jovens. Para o maior grupo etário, foi observado um aumento na magnitude do risco de morte para câncer de orofaringe (RCM=1,80; IC95%:1,55-2,08), de esôfago (RCM=1,15; IC95%:1,04-1,27) e de laringe (RCM=1,49; IC95%:1,33-1,67). Na análise da região Sul, sem estratificação etária, verificamos aumento no risco de morte em pintores para câncer de hipofaringe (RCM=1,72; IC95%:1,16-2,53). Pintores mais velhos apresentaram um aumento no risco de morte para o câncer de orofaringe (RCM=1,44; IC95%:1,03-2,01), de hipofaringe (RCM=2,19; IC95%:1,45-3,31), de esôfago (RCM=1,18; IC95%:1,02-1,38) e de laringe (RCM=1,36; IC95%:1,10-168) (Tabela 4).

Tabela 4 Razão de chance de mortalidade (RCM) em pintores por neoplasias selecionadas, estratificada por faixa etária e região de residência, de 1996-2013 

RCM (IC95%)
N Total 25-44 45-64
Região Sudeste
CID-10 Localização anatômica
10 Orofaringe 202 1,58 (1,38-1,82) 1,42 (0,95-2,11) 1,80 (1,55-2,08)
13 Hipofaringe 36 1,12 (0,81-1,56) 0,54 (0,13-2,16) 1,34 (0,96-1,88)
15 Esôfago 440 1,04 (0,94-1,14) 1,09 (0,83-1,42) 1,15 (1,04-1,27)
32 Laringe 325 1,28 (1,15-1,43) 0,89 (0,59-1,34) 1,49 (1,33-1,67)
34 Pulmão 587 0,87 (0,80-0,94) 0,95 (0,74-1,22) 0,97 (0,89-1,05)
62 Testículo 24 1,16 (0,77-1,74) 0,83 (0,51-1,34) 1,95 (0,92-4,14)
Região Sul
CID-10 Localização anatômica
10 Orofaringe 40 1,11 (0,81-1,52) 0,84 (0,35-2,03) 1,44 (1,03-2,01)
13 Hipofaringe 26 1,72 (1,16-2,53) 1,53 (0,48-4,82) 2,19 (1,45-3,31)
15 Esôfago 185 0,92 (0,80-1,06) 0,78 (0,51-1,19) 1,18 (1,02-1,38)
32 Laringe 102 1,12 (0,92-1,36) 1,39 (0,84-2,28) 1,36 (1,10-1,68)
34 Pulmão 239 0,69 (0,61-0,78) 0,55 (0,34-0,87) 0,91 (0,80-1,03)
62 Testículo 17 1,36 (0,84-2,20) 1,08 (0,66-1,77) 0,49 (0,07-3,51)

DISCUSSÃO

As estimativas encontradas no presente estudo sugerem aumento significativo do risco de morte por câncer de orofaringe, de laringe e de esôfago em pintores da faixa etária de 45 a 64 anos das regiões Sul e Sudeste, quando comparados à população geral. Para o câncer de nasofaringe, somente foi observado aumento do risco em pintores mais velhos da região Sul. Esses achados são corroborados por estudos de caso-controle e coorte que sustentam associações positivas entre a ocupação de pintor e o desenvolvimento de câncer no trato respiratório e esôfago24-26. Embora existam evidências epidemiológicas suficientes que sugiram aumento de risco para o câncer de pulmão em pintores1,3, nossos resultados não encontraram associação para essa ocupação com ou sem estratificação por idade e região.

Embora a literatura forneça evidências de associações positivas entre a exposição a substâncias químicas presentes na atividade laboral de pintores e alguns cânceres estudados27, o tabagismo e o consumo de álcool são considerados os principais fatores de risco para câncer de pulmão, de cavidade oral, de faringe e de laringe28-32. Uma vez que o SIM não possui informações sobre esses potenciais fatores de risco, a falta de controle dessas variáveis pode produzir distorções nas estimativas de risco encontradas neste estudo.

Adicionalmente, a falta de informações na declaração de óbito relacionadas ao número de anos empregados na atividade de pintor dificulta a avaliação da relação entre a ocupação, como proxy da exposição, e a magnitude do risco de morte para os tipos de câncer estudados. Dessa forma, ocupações pontuais referentes a um período muito curto de atividade profissional como pintor não refletirão as condições de exposição, podendo levar a distorções nos resultados encontrados.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, 19% dos cânceres no mundo estão relacionadas às exposições ambientais, as quais incluem o meio de trabalho, resultando em 1,3 milhão de mortes anualmente33. Considerando que o câncer ocupacional possui uma relação causa-efeito relativamente estabelecida por parte da literatura científica para algumas substâncias, estratégias para o seu controle e prevenção podem ser adotadas no ambiente de trabalho34. Embora ocorra um declínio das estimativas de diferentes tipos de câncer atribuíveis à exposição ocupacional nos países mais desenvolvidos, esse comportamento não tem sido observado em países em desenvolvimento e subdesenvolvidos35. A flexibilização das leis trabalhistas e o estímulo ao desenvolvimento por meio da utilização de tecnologias ultrapassadas em países em desenvolvimento estão associadas a riscos aos trabalhadores.

O Brasil ainda não possui uma legislação específica que regule o registro e o controle de tintas, vernizes e materiais de revestimento36. Dessa forma, não existe um programa de monitoramento legal que avalie as substâncias químicas e suas respectivas concentrações presentes em tintas e vernizes37. Consequentemente, informações qualitativas e quantitativas dos constituintes de produtos do processo de trabalho de pintores somente são obtidas por meio de estudos técnicos ou científicos. Patiño Guío38 avaliou amostras de diferentes tintas à base de água produzidas e utilizadas no Brasil. Os resultados mostraram que as amostras podem emitir até 61 substâncias químicas juntas, das quais duas delas, 1,4 dioxano e etilbenzeno, possivelmente sejam carcinogênicas em humanos (grupo 2B), segundo classificação da IARC.

Outro ponto importante relacionado à deficiência de legislação específica para tintas e afins diz respeito à rotulagem. Assim, não existem exigências padronizadas para rótulos nem um órgão que fiscalize as informações disponibilizadas pelos fabricantes36. Em relação à legislação existente, a obrigatoriedade das Fichas de Informação de Segurança de Produtos Químicos (FISPQs) para produtos químicos perigosos, estabelecida pelo Decreto n° 2.657, de 3 de julho de 199839, é a única garantia de informação detalhada sobre os componentes e sua periculosidade no ambiente de trabalho. Entretanto, o caráter autodeclaratório das FISPQs não garante a fidelidade e a completude das informações.

O presente estudo utilizou dados do SIM para avaliar o risco de morte por cânceres específicos entre pintores brasileiros e compará-lo ao da população geral. Essa estratégia de análise possui vantagens e desvantagens que precisam ser consideradas ao discutirmos os resultados. Por se tratar de um estudo ecológico, a utilização de dados agregados pode não refletir a associação das variáveis em nível individual, caracterizando a possibilidade de falácia ecológica. A mudança de código das ocupações no ano de 2006 pode influenciar a descrição das ocupações no SIM, por ocasionar um viés de informação, subestimando o número de casos de câncer em pintores.

CONCLUSÃO

Nossos resultados sugerem que pintores brasileiros, especialmente aqueles entre 45-64 anos de idade, apresentam maiores chances de morte por alguns cânceres do trato respiratório, como os de orofaringe, hipofaringe, esôfago e laringe.

REFERÊNCIAS

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