versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.114 no.2 São Paulo fev. 2020 Epub 20-Mar-2020
https://doi.org/10.36660/abc.20200017
O envelhecimento da população tem-se configurado como uma das principais tendências mundiais nas prospecções de futuro, e o Brasil se firma dentro desse cenário aceleradamente. No entanto, em países como Japão, Suíça e Espanha, a expectativa de vida é estimada em mais de 83 anos; em outros, como Nigéria e Somália, as pessoas vivem, em média apenas até os 55 anos. No Brasil, a expectativa de vida em 2018 foi estimada em 71 anos.1 A relação entre saúde e desenvolvimento é bastante complexa e apresenta inúmeras interações. Tanto a expectativa de vida como as principais causas de morte figuram como indicadores da qualidade de vida de uma região, de um país. Sinalizam sobre estilo de vida (e orientações de mudança adequadas), serviço prestado à comunidade na saúde preventiva e avanços em técnicas diagnósticas.2 As condições de saúde são influenciadas pelo ambiente socioeconômico, já que indicadores de renda e nível educacional mais elevados traduzem-se em adoção de hábitos de vida mais saudáveis e, naturalmente, acesso a tratamentos mais eficazes.3
No passado, as doenças transmissíveis representavam a principal causa de morte. Entre os países de baixa renda, em 2016, 52% das mortes foram causadas por doenças transmissíveis, condições decorrentes da gravidez e parto e outras questões relacionadas com déficits nutricionais. Já nos países de renda elevada, essas mesmas causas foram responsáveis por, no máximo, 7% das mortes.4 Estima-se que, até 2030, a maioria dos países já tenha realizado a tão proclamada transição epidemiológica e esteja em um perfil de maior prevalência de doenças não transmissíveis.
Em 2016, entre as 56,9 milhões de mortes que ocorreram no mundo, a cardiopatia isquêmica e o acidente vascular encefálico foram os dois principais responsáveis e têm permanecido como as principais causas de morte global nos últimos 15 anos. Ressalta-se, contudo, que as causas de mortalidade variam de acordo com o padrão de riqueza do país.4
Recente publicação apresenta dados sobre estudo multicêntrico, prospectivo, envolvendo 155.722 participantes de 21 países diferentes, em que foram avaliados fatores de risco e mortalidade por doenças cardiovasculares (DCV). Os países foram estratificados de acordo com seu padrão de desenvolvimento econômico. Foi observado que a maioria das doenças e mortes relacionadas com o sistema cardiovascular pode ser atribuída a pequeno número de fatores modificáveis de risco: alguns com efeito importante, outros variando com o nível econômico do país. O estudo enfatiza, ainda, que as políticas de saúde devem concentrar-se em fatores de risco específicos. Por exemplo, a associação entre baixo nível educacional e doença e morte cardiovasculares foi fortemente identificada em países de baixo e médio desenvolvimento econômico. Em países desenvolvidos, 70% das DCV foram atribuídos a fatores de risco modificáveis (à exceção de poluição ambiental), com importante contribuição de fatores de risco metabólicos e tabagismo. Em países não desenvolvidos, 80% das doenças e mortes de etiologia cardiovascular foram atribuídos a fatores de risco modificáveis, com importante contribuição de fatores metabólicos, poluição ambiental e alimentação inadequada. A associação dos níveis educacionais com a morte é até maior que com a riqueza. A educação afeta múltiplas condições de vida desde a infância, incluindo morar e trabalhar em ambientes mais saudáveis, além de maior acesso a serviços de saúde. Reitera-se que, provavelmente, melhorias na educação diminuirão o número de mortes por diferentes condições, indicando que investimentos na área podem trazer amplo benefício para a saúde.5
A prevalência do câncer é relevante em todo o mundo. Em 2018, em nível global, uma em cada seis mortes foram relacionadas com esse grupo de doenças. As neoplasias malignas também são responsáveis por aproximadamente 70% das mortes em países de baixa e média renda.6
Alguns países ocidentais têm conseguido controlar a incidência de determinados tipos de câncer reduzindo a prevalência de fatores de risco clássicos, além de detecção precoce e tratamento adequado. No entanto, neoplasias de pulmão, mama e colo de útero continuam aumentando muito, devido a fatores de risco típicos dos países ocidentais, como tabagismo, obesidade, sedentarismo e alterações dos padrões reprodutivos. Órgãos como estômago, fígado e colo do útero também continuam apresentando elevada morbidade relacionada com infecção.
Países com alto desenvolvimento econômico continuam apresentando elevada incidência de câncer de pulmão, colorretal, de mama e próstata. No entanto, as taxas de mortalidade é que são distintas; enquanto há redução do número de mortes por câncer nos países desenvolvidos, há aumento nos não desenvolvidos. As taxas de mortalidade por neoplasias malignas vêm aumentando nos países de baixo nível de desenvolvimento, em virtude de elevação na prevalência de fatores de risco, como aumento do tabagismo, excesso de peso corporal e inatividade física, e melhor tratamento.7
O artigo “Tendência das Taxas de Mortalidade por Doença Cardiovascular e Câncer entre 2000 e 2015 nas Capitais mais Populosas das Cinco Regiões do Brasil”8 apresenta importantes conclusões sobre a incidência de câncer e doença cardiovascular em relação ao nível de desenvolvimento dentro do Brasil. Na Inglaterra, por exemplo, a taxa de mortalidade por DCV diminuiu mais que a das mortes por câncer. Em indivíduos com mais de 75 anos de idade, em particular, o impacto dos avanços conquistados em diagnóstico e tratamento sobre a taxa de mortalidade por câncer foi ainda menor. Em 2011, a taxa de mortalidade padronizada por idade para câncer excedeu a de DCV em ambos os sexos, no Reino Unido, muito antes do que é constatado no Brasil.9
Nos EUA, as taxas de mortalidade por câncer em adultos entre 45 e 64 anos diminuíram 19%, de 1999 a 2017, enquanto as taxas de mortalidade por doenças cardíacas diminuíram 22%, de 1999 a 2011, e depois aumentaram 4% de 2011 a 2017. A taxa de mortalidade por câncer sempre foi maior que a taxa de mortalidade por doenças cardíacas naquele país.10
O Brasil segue, assim, com sua transformação demográfica e transição epidemiológica. O envelhecimento da população, como já comentado, é uma tendência previsível, permitindo o planejamento da sociedade e das pessoas para esse novo perfil. Como panorama nacional, nosso perfil demográfico já se assemelha ao das grandes nações. A parcela de idosos (maiores que 60 anos) cresce em ritmo mais acelerado que qualquer outra faixa etária no Brasil. No entanto, a transição epidemiológica segue com desigualdades: a parcela de brasileiros que vive em condições de moradia e renda semelhantes às de países desenvolvidos apresenta morbidade e mortalidade também similares às desses países; já o restante da população, que constitui a maior parte dos brasileiros, convive com a pobreza e os escassos recursos na atenção à saúde.
Foi demonstrada, recentemente, a correlação entre a variação evolutiva do Produto Interno Bruto (PIB) per capita em municípios do Rio de Janeiro e a redução da mortalidade por doença arterial coronariana.11 Mais uma vez destaca-se a importância da necessidade de melhores condições de vida para reduzir a mortalidade cardiovascular. Por este e outros motivos, Martins et al.,8 chamam atenção para a necessidade de fragmentar a discussão quanto à tendência de morte no Brasil pela distinção dos perfis encontrados, que correspondem a distintos PIB e indicadores de educação.
O grande desafio no Brasil será reconhecer esse novo perfil que se descortina e traçar estratégias direcionadas de acordo com as peculiaridades encontradas, levando à maior promoção de saúde para toda população de forma equânime.