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Morte Súbita Cardíaca no Brasil: Análise dos Casos de Ribeirão Preto (2006-2010)

Morte Súbita Cardíaca no Brasil: Análise dos Casos de Ribeirão Preto (2006-2010)

Autores:

Maria Fernanda Braggion-Santos,
Gustavo Jardim Volpe,
Antonio Pazin-Filho,
Benedito Carlos Maciel,
José Antonio Marin-Neto,
André Schmidt

ARTIGO ORIGINAL

Arquivos Brasileiros de Cardiologia

versão impressa ISSN 0066-782X

Arq. Bras. Cardiol. vol.104 no.2 São Paulo fev. 2015 Epub 21-Nov-2014

https://doi.org/10.5935/abc.20140178

RESUMO

Fundamento:

Morte súbita cardíaca (MSC) é um evento súbito e inesperado, de causa cardiovascular, que ocorre em menos de uma hora após o início dos sintomas, em indivíduo sem qualquer condição clínica prévia potencialmente fatal ou assintomático nas últimas 24 horas antes do óbito, em caso de morte não testemunhada. Apesar de ser um evento relativamente frequente, há poucos dados confiáveis na literatura sobre países em desenvolvimento.

Objetivo:

Descrever as características da MSC em Ribeirão Preto (SP 600.000 habitantes) baseando-se nos relatórios de autopsias do Serviço de Verificação de Óbitos do Interior.

Métodos:

Foram revisados retrospectivamente 4.501 relatórios de autopsias entre 2006 e 2010, para identificar casos de MSC. Foram coletados dados como causa específica do óbito, características demográficas e comorbidades das vítimas, data, local e hora do evento, e se foram realizadas manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP).

Resultados:

Foram identificados 899 casos de MSC (20%; razão 30/100.000 habitantes por ano). A principal causa de MSC foi doença arterial coronariana (DAC - 64%), acometendo homens (67%) entre a sexta e a sétima década de vida. A maior parte dos eventos ocorreu durante a manhã, no domicílio (53,3%), e a RCP foi realizada em quase metade das vítimas (49,7%). A comorbidade mais prevalente foi hipertensão arterial sistêmica (57,3%). Doença de Chagas foi detectada em 49 casos (5,5%).

Conclusão:

A maioria dos casos de MSC ocorreu por DAC em homens entre a sexta e a sétima década de vida. Doença de Chagas, um importante problema de saúde pública na América Latina, foi detectada em 5,5% dos casos.

Palavras-Chave: Morte Súbita Cardíaca / epidemiologia; Brasil; Autopsia

ABSTRACT

Background:

Sudden cardiac death (SCD) is a sudden unexpected event, from a cardiac cause, that occurs in less than one hour after the symptoms onset, in a person without any previous condition that would seem fatal or who was seen without any symptoms 24 hours before found dead. Although it is a relatively frequent event, there are only few reliable data in underdeveloped countries.

Objective:

We aimed to describe the features of SCD in Ribeirão Preto, Brazil (600,000 residents) according to Coroners’ Office autopsy reports.

Methods:

We retrospectively reviewed 4501 autopsy reports between 2006 and 2010, to identify cases of SCD. Specific cause of death as well as demographic information, date, location and time of the event, comorbidities and whether cardiopulmonary resuscitation (CPR) was attempted were collected.

Results:

We identified 899 cases of SCD (20%); the rate was 30/100000 residents per year. The vast majority of cases of SCD involved a coronary artery disease (CAD) (64%) and occurred in men (67%), between the 6th and the 7th decades of life. Most events occurred during the morning in the home setting (53.3%) and CPR was attempted in almost half of victims (49.7%). The most prevalent comorbidity was systemic hypertension (57.3%). Chagas’ disease was present in 49 cases (5.5%).

Conclusion:

The majority of victims of SCD were men, in their sixties and seventies and the main cause of death was CAD. Chagas’ disease, an important public health problem in Latin America, was found in about 5.5% of the cases.

Key words: Death, Sudden, Cardiac / epidemiology; Brazil; Autopsy.

Introdução

Morte súbita cardíaca (MSC) é um evento inesperado, de causa cardíaca1. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a MSC é um evento natural que ocorre em menos de uma hora do início dos sintomas, em indivíduos sem qualquer condição prévia potencialmente fatal. No entanto, 40% dos casos são não testemunhados e, nessas situações, as vítimas devem ter sido vistas assintomáticas nas últimas 24 horas antes do evento2.

Estima-se uma incidência de MSC, nos Estados Unidos, entre 180.00-400.00 casos/ano3. Porém, uma estimativa acurada ainda não é possível por várias razões: diferentes definições de MSC utilizadas4, estudos baseados em análises retrospectivas de certificados de óbito5 ou mesmo ausência de um sistema estruturado para reportar os casos de MSC em algumas regiões. Tais dificuldades são mais evidentes em países não desenvolvidos6.

Os indivíduos mais acometidos são homens entre a sexta e a sétima década7. A epidemiologia da MSC correlaciona‑se estreitamente com a doença arterial coronariana (DAC), sendo que até 80% das vítimas têm DAC4. Fatores de risco, como hipertensão arterial sistêmica, diabetes e tabagismo, aumentam o risco de MSC8, assim como disfunção ventricular esquerda avançada (fração de ejeção < 30%)4. Em jovens, os diagnósticos mais comuns são miocardiopatia hipertrófica, anomalias de artérias coronárias, displasia arritmogênica do ventrículo direito e canalopatias9. Na América Latina, a doença de Chagas é uma causa significativa de MSC10.

Variações circadianas e sazonais de MSC foram descritas. Observa-se acentuada variação na ocorrência de MSC com picos pela manhã, nas segundas-feiras, nos meses de inverno11. Situações de estresse, como atentados terroristas ou eventos como a Copa do Mundo de Futebol, foram relacionadas a aumento das taxas de MSC12,13.

A alta incidência desse evento, combinada às baixas taxas de sobrevivência, torna a MSC um relevante problema7. Na América Latina, poucos estudos com pequenas populações e doenças cardíacas específicas foram realizados até o momento14,15.

Nosso objetivo foi descrever as características da MSC em Ribeirão Preto (aproximadamente 600.00 habitantes) em cinco anos, de acordo com os relatórios de autopsias do Serviço de Verificação de Óbitos do Interior (SVOi).

Métodos

Ribeirão Preto é uma cidade de médio porte localizada no interior do estado de São Paulo. Possui um órgão público vinculado à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo o Serviço de Verificação de Óbitos do Interior (SVOi) , responsável pelas autopsias de vítimas de óbitos de causa não violenta encaminhados de qualquer serviço de saúde da cidade, de acordo com as leis federais vigentes, conforme solicitação do profissional de saúde que assistiu à vítima.

Em nosso estudo foram analisados os formulários de solicitação do exame necroscópico e os laudos completos das autopsias realizadas pelo SVOi referentes às vítimas do município de Ribeirão Preto entre os anos de 2006 e 2010. Foram incluídos todos os casos que preencheram os critérios de MSC de acordo com a definição mais amplamente utilizada da OMS: morte inesperada dentro de uma hora do início dos sintomas ou, em casos de morte não testemunhada, quando a vítima foi vista em boas condições de saúde nas 24 horas prévias ao evento2. Foram coletados dados referentes ao evento, como causa da morte relatada pelo médico patologista que realizou o exame, características demográficas e comorbidades das vítimas, data, hora e local do evento, e realização de manobras de ressuscitação cardiopulmonar (RCP). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da nossa instituição.

Critérios de exclusão

Inicialmente, foram excluídos óbitos de recém-nascidos e crianças. Em seguida, todos os indivíduos com causas de morte não compatíveis com morte súbita foram excluídos: doenças infecciosas, neoplasias malignas avançadas, doenças abdominais, como obstrução intestinal ou úlcera gástrica perfurada, caquexia e repouso prolongado no leito. Posteriormente, casos de morte súbita de origem não cardíaca também foram excluídos: tromboembolismo pulmonar, síndromes aórticas agudas, asma ou acidente vascular encefálico hemorrágico. Finalmente, foram também excluídos casos com história clínica não compatível com MSC, de acordo com os critérios da OMS empregados em nosso estudo ou com informações incompletas.

Análise estatística

Os dados foram expressos em valores absolutos e porcentagens. Foram utilizados o teste paramétrico ANOVA e o pós-teste de Bonferroni para analisar variáveis contínuas, enquanto o teste do qui-quadrado foi utilizado para avaliar variáveis categóricas. Todas as análises estatísticas foram realizadas em programa estatístico comercialmente disponível (InStat, versão 3.0, GraphPad Software Inc, Estados Unidos). Foi considerado estatisticamente significativo o valor de p < 0,05.

Resultados

Casos de morte súbita cardíaca

Entre 2006 e 2010, 4.501 autopsias foram realizadas em Ribeirão Preto. Inicialmente, 2.053 casos de possível MSC foram selecionados; no entanto, após análise criteriosa, 718 casos foram excluídos por não preencherem todos os critérios para MSC, além de 256 casos por informações incompletas. Em 180 casos, uma causa não cardíaca de morte súbita foi identificada: 99 casos de síndrome aórtica aguda, 58 casos de tromboembolismo pulmonar, 21 casos de acidente vascular encefálico hemorrágico e dois casos de asma. Desse modo, 899 casos (20% de todas as autopsias) foram definidos como MSC (Figura 1). As taxas de MSC variaram de 28/100.000 habitantes em 2009 a 32/100.000 habitantes em 2007 e 2008 (Figura 2). Não houve diferença entre as taxas de MSC entre os anos (p = 0,88).

Figura 1 Diagrama de fluxo do estudo.*Óbitos por outras causas: doenças infecciosas, neoplasias malignas avançadas, doenças abdominais, caquexia, repouso prolongado no leito. **Causas não cardíacas de morte súbita: síndromes aórticas agudas, embolia pulmonar, acidente vascular encefálico hemorrágico, asma. 

Figura 2 Taxas de MSC (por 100.000 habitantes) em Ribeirão Preto de 2006 a 2010. A taxa média de MSC foi 30/100.000 habitantes por ano, variando entre 28/100.000 habitantes em 2009 e 32/100.000 habitantes em 2007 e 2008. 

Características demográficas da população

As características demográficas da população estudada estão resumidas na Tabela 1. Os homens foram mais acometidos que as mulheres (67% x 33%). A maior parte das vítimas era da raça branca (75% x 25%), entre a sexta e a sétima década de vida (idade média 62,7 ± 13,2 anos).

Tabela 1 Características demográficas das vítimas de MSC em Ribeirão Preto entre 2006-2010 

Características N.º %
Gênero    
Homens 599 67
Mulheres 300 33
Idade, anos    
10-19 3 0,3
20-29 7 0,7
30-39 33 3,5
40-49 114 12,5
50-59 190 21
60-69 241 27
70-79 231 26
80 80 9
Raça    
Brancos 675 75
Negros 100 11
Mulatos 119 13
Asiáticos 5 1
 

MSC: morte súbita cardíaca.

Causa do óbito

A causa mais prevalente de óbito foi a síndrome coronariana aguda, responsável por cerca de dois terços (64%) de todos os casos de MSC. A segunda causa foi miocardiopatia (32%), incluindo ambas as etiologias, isquêmica e não isquêmica. Foram observados também o diagnóstico de ponte miocárdica em oito casos, um diagnóstico de miocardite confirmado por análise histopatológica e, em outro caso, foi detectada acentuada hipoplasia da artéria coronária descendente anterior em uma mulher de 35 anos. Em 24 vítimas (3%) não foi possível diagnosticar a causa do óbito, sendo considerados casos de morte súbita de causa indeterminada (Tabela 2).

Tabela 2 Distribuição das causas de MSC entre as vítimas de MSC em Ribeirão Preto: 2006-2010 

Causa do óbito N.º %
Síndrome coronariana aguda 576 64,1
Miocardiopatias* 289 32,1
Ponte miocárdica 8 0,9
Miocardite 1 0,1
Anomalia de artéria coronária 1 0,1
Indeterminada 24 2,7

*Miocardiopatias isquêmicas e não isquêmicas; MCS: morte súbita cardíaca.

Fatores de risco para morte súbita cardíaca

Mais de um quinto dos pacientes (21,1%) vítimas de MSC tinham algum tipo de doença cardíaca previamente conhecida. Vários fatores de risco para MSC foram encontrados nesses pacientes, sendo o mais prevalente a hipertensão arterial sistêmica (57,3%). Observamos, ainda, 56 pacientes (6,2%) com antecedente de abuso de álcool (Tabela 3).

Tabela 3 Fatores de risco para MSC entre as vítimas de MSC em Ribeirão Preto: 2006-2010 

Fatores de risco para MSC N.º %
HAS 515 57,3
Doença cardíaca estrutural 190 21,1
Diabetes 138 15,3
Tabagismo 79 8,8
Obesidade 77 8,6
Dislipidemia 11 1,2
Abuso de álcool 56 6,2
Doença de Chagas 49 5,5

HAS: Hipertensão arterial sistêmica; MSC: morte súbita cardíaca.

Doença de Chagas

Quarenta e nove pacientes (5,5%) tiveram o diagnóstico de doença de Chagas, incluindo aqueles com miocardiopatia chagásica previamente conhecida e aqueles com sorologia positiva no momento da autopsia. É interessante observar que a proporção de pacientes portadores de doença de Chagas se reduziu de 2006 a 2010 (12 pacientes: 7,1% em 2006; 13 pacientes: 7,0% em 2007; 11 pacientes: 5,8% em 2008; cinco pacientes: 3,0% em 2009; oito pacientes: 4,3% em 2010), porém a diferença no decorrer dos anos não atingiu significância estatística (p = 0,14).

Variação temporal da morte súbita cardíaca

A análise dos casos de MSC mostrou variação circadiana, com menor número de casos durante a madrugada (p < 0,05 em comparação aos outros períodos do dia) seguida por aumento significativo nas primeiras horas da manhã, que foi o período com o maior número de eventos de MSC (p < 0,05 em comparação aos outros períodos do dia). Em 10% dos casos, não foi possível determinar a hora do evento (Figura 3A).

Figura 3 Histograma da variação temporal de MSC. A) Histograma da variação circadiana de MSC. O período da manhã foi o período com a maior parte dos eventos de MSC (p < 0,05 em comparação aos outros períodos). B) Histograma da variação semanal de MSC. Não houve diferença entre os dias da semana (p = 0,79). C) Histograma da variação mensal de MSC. Os eventos de MSC tenderam a ocorrer com maior frequência nos meses de maio e junho, porém sem significância estatística (p = 0,06). 

Análises posteriores não revelaram predomínio em qualquer dia da semana (p = 0,79; Figura 3B) ou em qualquer mês do ano (p = 0,06), no entanto os eventos tenderam a ocorrer com maior frequência nos meses de maio e junho (Figura 3C).

Local do óbito

Mais da metade dos óbitos ocorreu no domicílio (53,3%). Em seguida, os óbitos ocorreram em salas de emergência (37,8%), para onde a grande maioria dos pacientes foi levada em parada cardiorrespiratória, denominada “morte na chegada”16. Ressalte-se ainda que 8,2% dos eventos ocorreram em locais públicos e que seis homens foram a óbito (0,7%) durante prática de atividade física (média de idade de 35 anos).

Ressuscitação cardiopulmonar

No total, 447 de 899 pacientes receberam manobras de RCP (49,7%). Em 2006, a RCP foi realizada em 43,4% dos pacientes, e essa proporção aumentou no decorrer dos anos, chegando a 54,4% das vítimas submetidas a RCP em 2010. Observa-se clara tendência a aumento de realização de manobras de RCP (Figura 4), porém atingindo significância estatística marginal (p = 0,05).

Figura 4 Proporção das vítimas de MSC que receberam manobras de RCP em Ribeirão Preto (2006-2010). Ao todo, 447 das 899 vítimas receberam RCP (49,7%). Houve clara tendência a aumento do número de vítimas que receberam RCP entre 2006 e 2010 (p = 0,05). 

Considerações adicionais

Apesar de a MSC estar presente na Classificação Internacional das Doenças 10 (CID-10) com o código I46-117, somente 3,6% dos formulários preenchidos pelos médicos que atenderam as vítimas e 2,2% dos laudos de autopsia liberados pelos patologistas tiveram esse diagnóstico como “causa do óbito”. Finalmente, em 26 casos (2,9%) foi realizada análise microscópica do coração com base na hipótese diagnóstica de miocardite, no entanto o diagnóstico foi confirmado em somente um caso.

Discussão

Até onde temos conhecimento, este é o primeiro estudo que caracteriza vários aspectos relacionados à MSC no Brasil. Pelo fato de existirem poucos dados referentes a esse tópico, tanto no Brasil quanto em outros países da América Latina, é muito importante o conhecimento das taxas de MSC em nossa comunidade, as circunstâncias do evento e as características das vítimas, para que estratégias de prevenção sejam desenvolvidas e testadas, algumas delas específicas da nossa população.

A taxa de MSC em Ribeirão Preto foi em torno de 30/100.000 habitantes. Em outras comunidades ao redor do mundo, a incidência de MSC variou entre 37/100.000 habitantes em Okinawa, Japão18, e 90-100/100.000 habitantes em Maastricht, Holanda19, sendo que a maioria dos estudos reportou incidência semelhante de MSC, um pouco acima de 50/100.000 residentes: em Oregon, Estados Unidos (53/100.000 residentes)20, e em uma comunidade localizada no oeste da Irlanda (51,2/100.000)21.

Em comparação aos dados referentes a outras comunidades, a taxa média de MSC em nossa população foi menor. Há algumas possíveis razões para essa diferença. Primeiramente, analisamos apenas dados do SVOi; desse modo, nossos dados podem estar subestimados porque nem todos os óbitos que ocorreram no município de Ribeirão Preto no período analisado foram encaminhados para autopsia. Além disso, não foram computados os sobreviventes de MSC. Outra razão para tal diferença foi a exclusão dos casos com dados inconclusivos. No entanto, sabe-se que a epidemiologia da MSC está fortemente ligada à incidência de DAC e, no Brasil, a mortalidade por DAC é estimada em 48/100.000 habitantes22, enquanto nos Estados Unidos é cerca de três vezes maior (135/100.000)23. Tais fatores podem estar relacionados ao menor desenvolvimento econômico do nosso país; porém, devido ao fato de não haver dados confiáveis disponíveis, tanto referentes à nossa população quanto à de outros países em desenvolvimento, não é possível estabelecer comparações adequadas.

Em nosso estudo, a maioria das vítimas foram homens, da raça branca, entre 60 e 80 anos. De acordo com dados recentes, a MSC ocorre com maior frequência entre a sexta e a sétima década de vida7, conforme os nossos achados. Em relação à distribuição de MSC por gêneros, houve uma mudança do padrão no decorrer dos anos, com aumento na proporção de eventos em mulheres3. Estudos anteriores mostravam uma proporção de mulheres/homens de 25:754, no entanto em estudos mais recentes a proporção de mulheres/homens aumentou para 40:607, provavelmente por causa do aumento na prevalência e mortalidade por DAC em mulheres no decorrer dos anos24. Nós encontramos 67% dos eventos em homens, similar ao descrito na literatura. Finalmente, a maioria das vítimas de MSC era da raça branca (75%). No entanto, é importante ressaltar que temos uma distribuição racial heterogênea em diferentes regiões do Brasil e, desse modo, esse achado não deve ser extrapolado ou considerado representativo de todo o país.

Síndrome coronariana aguda foi responsável pela maioria dos casos de MSC (64%), sendo que cardiomiopatia foi a segunda causa mais comum em nossa casuística (32%), incluindo as doenças do miocárdio de etiologia isquêmica e não isquêmica. Estudos demonstram que até 80% dos casos de MSC são associados com DAC. Cerca de 10-15% dos casos ocorrem em pacientes com doenças do miocárdio, como miocardiopatia hipertrófica, miocadiopatia dilatada idiopática, displasia arritmogênica do ventrículo direito ou doenças infiltrativas miocárdicas3,4. Em nosso estudo não foi possível separar as vítimas de MSC por doenças isquêmicas ou não isquêmicas do miocárdio, pela dificuldade de diferenciar alguns casos de acordo com as informações presentes nos relatórios analisados. Como exemplo de tal limitação, algumas vítimas de MSC tinham DAC e doença de Chagas, sendo que ambas as doenças podem induzir arritmias letais, impossibilitando a definição de qual seria a patologia responsável pelo evento. Tal fato pode explicar as taxas mais baixas de DAC como causa de MSC e o maior número de eventos por doenças do miocárdio.

Em relação à doença de Chagas, 49 vítimas de MSC (5,5%) tiveram esse diagnóstico em seus laudos do exame de autopsia. Apesar de a OMS ter certificado, em 2006, que a transmissão vetorial da doença de Chagas estava eliminada em nosso país, o Brasil é considerado com alta prevalência de infecção humana (1% de nossa população 1.900.000 indivíduos infectados em 2005)25, e a cardiomiopatia chagásica ainda tem um importante papel no cenário da mortalidade cardiovascular em nosso país, especialmente nos casos de morte súbita10.

Em 24 casos (2,2%), a causa do óbito não pôde ser identificada. As vítimas tinham o coração estruturalmente normal, sendo que alguns desses casos poderiam estar relacionados a doenças genéticas, como canalopatias, vias acessórias não diagnosticadas ou vasoespasmo coronariano26.

A presença de doença cardíaca estrutural, como infarto prévio do miocárdio ou disfunção ventricular esquerda, é um importante fator de risco para MSC3. Em nosso estudo, mais de 20% das vítimas tinham alguma doença cardíaca relatada por familiares. Observamos, ainda, que hipertensão arterial sistêmica foi o fator de risco mais prevalente entre as vítimas de MSC (57,3%), sendo que pacientes hipertensos, principalmente aqueles com hipertrofia ventricular esquerda, apresentam maior risco de MSC que a população geral27. Outros fatores de risco, como diabetes, tabagismo, obesidade e dislipidemia, também foram encontrados, porém em menores proporções, sugerindo que tais dados estejam subestimados, por algumas razões descritas a seguir. Primeiramente, foram coletados dados retrospectivos, e não havia questionários específicos nos formulários analisados. Não foram avaliados os prontuários médicos das vítimas. Finalmente, algumas doenças, como diabetes ou dislipidemia, podem ser subdiagnosticadas em nossa população, uma vez que o diagnóstico depende de exames laboratoriais, muitas vezes não realizados de rotina. Abuso de álcool foi detectado em 6,2% dos casos, similar ao estudo em uma comunidade localizada no oeste da Irlanda21.

Sabe-se que a distribuição temporal de MSC tem um padrão definido, com a maioria dos eventos ocorrendo pela manhã, nas segundas-feiras, nos meses de inverno11. Em nossa casuística, houve maior número de eventos pela manhã, sem diferença em relação aos dias da semana ou meses do ano, este último caso podendo ser explicado pela ausência de estações bem definidas em nossa região. O maior número de eventos pela manhã foi previamente atribuído ao aumento da descarga simpática que ocorre no despertar, causando maior número de acidentes vasculares encefálicos, síndromes coronarianas agudas e mortes súbitas28.

Sobre o local de ocorrência do óbito, mais de metade dos eventos ocorreu no domicílio (53,3%), o que é sabidamente associado a menores taxas de sucesso após tentativa de RCP29. Nota-se que 49,7% das vítimas receberam manobras de RCP, resultado similar ao encontrado em Maastricht, Holanda, em que 51% das vítimas de MSC receberam manobras de RCP19. Apesar de não atingir significância estatística, o número de vítimas de MSC que receberam RCP aumentou no decorrer dos anos, o que pode ser reflexo das melhorias no sistema de saúde, com maior número de ambulâncias e salas de emergência em hospitais públicos e privados.

Limitações do estudo

Como já mencionado anteriormente, as taxas de MSC podem estar subestimadas. Pelo fato de ser um estudo retrospectivo, faltam alguns dados específicos referentes aos eventos, como perfil completo dos fatores de risco das vítimas de MSC, melhor descrição das manifestações clínicas apresentadas pelas vítimas antes do óbito em casos testemunhados e dos procedimentos de RCP realizados ou dos protocolos de autopsia. Apesar de a instituição de referência de nosso município para a realização de autopsias ser o SVOi, nem todos os casos de MSC são encaminhados a esse serviço, uma vez que, de acordo com as leis brasileiras se o óbito ocorreu por causa não traumática e existe um médico ciente do caso que se disponha a assinar o atestado de óbito , não é mandatório o encaminhamento da vítima para o exame de autopsia. Por último, não existem formulários específicos para a investigação de MSC no SVOi.

Apesar de o estudo ter várias limitações, acreditamos que nossos achados fornecem informações de extrema importância sobre as características da MSC no Brasil, mostrando também falhas em nossa documentação médica, o que deve ser prontamente melhorado, por exemplo, através do estabelecimento de protocolos específicos de autopsias30.

Conclusão

Morte súbita cardíaca foi responsável por cerca de 20% de todos os óbitos não traumáticos nessa grande comunidade brasileira, com base em relatórios de autopsias. A maioria dos casos de MSC ocorreu por SCA, em homens, entre a sexta e a sétima década de vida. A maior parte dos eventos Morte súbita cardíaca foi responsável por cerca de 20% de todos os óbitos não traumáticos nessa grande comunidade brasileira, com base em relatórios de autopsias. A maioria dos casos de MSC ocorreu por SCA, em homens, entre a sexta e a sétima década de vida. A maior parte dos eventos

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