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Mortes de mulheres internadas para parto e por aborto e de seus conceptos em maternidades públicas

Mortes de mulheres internadas para parto e por aborto e de seus conceptos em maternidades públicas

Autores:

Pauline Lorena Kale,
Maria Helena Prado de Mello Jorge,
Sandra Costa Fonseca,
Angela Maria Cascão,
Kátia Silveira da Silva,
Ana Cristina Reis,
Mauro Tomoyuki Taniguchi

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.5 Rio de Janeiro maio 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018235.18162016

Introdução

Mulheres e seus conceptos representam um grupo de maior vulnerabilidade, expressa pelo risco de adoecer e morrer1, cujos determinantes biológicos são potencializados por características socioeconômicas e assistenciais2.

Morte materna é um evento raro, trágico e evitável3. Em 2013, apesar dos avanços na saúde materno-infantil no país, a razão de mortalidade materna foi 58,1 por 100.000 nascidos vivos4, não alcançando a redução de 75%, quinta Meta dos Objetivos do Desenvolvimento do Milênio5.

Quanto ao concepto, o risco de morte é maior no início da gravidez quando essa ainda não foi sequer reconhecida ou diagnosticada6. Estas perdas da gravidez, frequentemente relatadas como irregularidades menstruais, não costumam ser registradas6.

A magnitude dos abortos também é imprecisa, mesmo em países onde é legalizado7. Em 2010, a Pesquisa Nacional de Aborto estimou que 15% das mulheres brasileiras no final da vida reprodutiva já tinham feito aborto, necessitando internação em 50% dos casos8. Apesar da redução de 26% das estimativas nacionais indiretas de abortos induzidos em mulheres em idade fértil de 1995 a 2013, sua magnitude é preocupante9.

O que define se as perdas fetais são abortos ou óbitos fetais são pontos de corte relativos ao peso ao nascer, idade gestacional ou comprimento do concepto10. O Brasil adota a definição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 10a Revisão (CID), que propõe como pontos de corte para óbito fetal: peso ao nascer: 500 gramas; idade gestacional: 22a semanas e comprimento de 25 cm10. Lawn et al.11 recomendam que a definição de óbito fetal, para comparações internacionais, use idade gestacional (28 ou mais semanas) e propõem essa mudança na 11a Revisão da CID. A mortalidade fetal é pouco compreendida e estudada, não foi incluída entre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e encontrava-se praticamente invisível nas agendas políticas mundiais11. No entanto, as taxas continuam elevadas, principalmente nos países de baixa e média rendas; estimando-se a taxa média nestes países em 28,9 óbitos fetais por mil nascimentos variando de 13,6, na Argentina a 56,5, no Paquistão12. Em 2014, a 67a Assembleia Mundial de Saúde estabeleceu como meta a redução da mortalidade fetal para 12 ou menos por mil nascimentos em 203011.

Para os nascidos vivos, o risco de morte infantil é maior imediatamente após a transição para a vida extrauterina e decresce marcadamente durante a primeira semana de vida5,6,13. Considerando-se a similaridade das causas de mortes e dos fatores de risco entre os-óbitos fetais e neonatais precoces, não é esperada uma variação na qualidade do preenchimento da Declaração de Óbito. Entretanto, erros sistemáticos geram uma pior qualidade da informação para óbitos fetais14. Incompletude, baixa confiabilidade e validade das causas de morte para óbitos neonatais e fetais, principalmente, foram relatadas em estudos nacionais15-18.

Se por um lado avanços tecnológicos da assistência à gravidez e ao período neonatal trouxeram resultados positivos para a saúde perinatal, por outro acentuaram as desigualdades onde o acesso à tecnologia não é universal e equitativo19. Desigualdades de assistência à saúde e sociodemográficas são fatores de risco comuns a abortos induzidos20, óbitos fetais15, óbitos neonatais13 e óbitos maternos3.

A hipertensão e a hemorragia têm sido as causas mais frequentes de morte materna no país e a análise das causas dos óbitos neonatais e fetais mostra as morbidades maternas como causa crescente4,18, mostrando a inter-relação entre estes óbitos e as intervenções necessárias para sua redução. Durante o pré-natal, o rastreio e tratamento de morbidades como sífilis, diabetes, hipertensão arterial21, bem como a habilidade para detectar e manusear o trabalho de parto obstruído e a redução da medicalização no momento do parto podem prevenir mortes de mães e seus conceptos22.

O objetivo deste estudo foi analisar, em maternidades do Sistema Único de Saúde, os óbitos maternos, abortos, óbitos fetais e neonatais, nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Niterói (RJ) em 2011, com ênfase nas causas de mortes.

Metodologia

Foi realizado um estudo seccional em maternidades com maior número de nascimentos do Sistema Único de Saúde (SUS):quatro na cidade de São Paulo, SP (centro-SP), uma em Niterói e outra no Rio de Janeiro, RJ (centro-RJ) - em três meses do segundo semestre de 2011. As mortes hospitalares ocorridas durante a gestação, no parto e até a alta foram identificadas durante o trabalho de campo e, posteriormente, por relacionamento probabilístico das bases de dados da pesquisa com o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), em São Paulo, pelo Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade – PRO-AIM, da Prefeitura do Município de São Paulo e no Rio de Janeiro e Niterói, pela Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro. Foi utilizado o programa computacional RecLink323. As perdas do estudo foram inferiores a 5%.

Foram realizadas entrevistas às mulheres após 12 horas do parto e cinco horas após o aborto, consultas aos prontuários hospitalares, cartão da gestante e registro de sala de parto, por enfermeiros e estudantes da área da saúde previamente treinados.

População de estudo

O fluxograma da população de estudo relativo às possíveis situações das mulheres e de seus conceptos está representado na Figura 1.

Figura 1 Fluxograma das mulheres e de seus conceptos, em maternidades públicas das cidades Sao Paulo (centro São Paulo - SP), Rio de Janeiro e Niterói (centro Rio de Janeiro - RJ), 2011. 

Foram entrevistadas 7.845 mulheres (centros SP: 5.955 e RJ: 1.890). No centro SP ocorreram quatro óbitos de mulheres, um materno após transferência e três após a alta hospitalar, ocorridos no puerpério tardio por causas não relacionadas ao ciclo gravídico-puerperal, não computados como morte materna. Estes óbitos foram investigados pelo Comitê de Morte Materna, Fetal e Infantil do Município (CMMIF) de São Paulo. Não ocorreu óbito de mulher no centro RJ.

Foram analisadas as perdas fetais e óbitos de nascidos vivos segundo o momento de ocorrência: abortos e óbitos fetais (< 22 e ≥22 semanas de gestação, respectivamente) e neonatais (0-27 dias)10. Apesar da definição de óbitos fetais (morte de um produto da concepção, antes da expulsão ou da extração completa do corpo da mãe, independentemente da duração da gravidez)10, adotamos óbito fetal para representar o componente fetal da mortalidade perinatal10, para fins de comparação com outros estudos. Um aborto foi reclassificado como natimorto. A partir das fontes oficiais foi possível identificar os óbitos infantis ocorridos após a pesquisa e, portanto, os sobreviventes ao período infantil (364 dias completos de vida). Não foram analisados 26 óbitos infantis ocorridos após a alta hospitalar devido à impossibilidade de acesso ao prontuário médico para certificação de uma nova Declaração de Óbito. Estes óbitos foram excluídos da análise do grupo de sobreviventes. Do total de 7.898 conceptos, analisaram-se 563 perdas fetais (498 abortos e 65 óbitos fetais), 44 óbitos neonatais (33 precoces e 11 tardios) e 7.291 sobreviventes infantis.

As frequências de mortes dos conceptos foram apresentadas segundo o momento da morte. Abortos foram descritos segundo o tipo (sem expulsão do feto; espontâneo; induzido e previsto em lei ou por ordem judicial; provocado) e o meio utilizado para abortos provocados. Óbitos fetais e neonatais informados pelo SIM foram descritos segundo a realização de investigação.

Conceptos foram descritos segundo centro de ocorrência do parto ou aborto (centro São Paulo; centro Rio de Janeiro) e características sociodemográficas maternas, como faixa etária (< 20; 20-34; ≥ 35 anos), escolaridade (< 8; ≥ 8 anos de estudo) e cor da pele autorreferida (branca; parda; negra; outras), características da história reprodutiva e da gestação, como número de partos anteriores (nenhum, 1-2 e 3 ou mais), aborto anterior (sim; não e não se aplica), natimortalidade anterior (sim; não e não se aplica), e, aferidas de forma binária (sim; não), morbidades autorreferidas durante a gestação (pressão alta, hemorragia e sífilis); comportamento de risco durante a gestação (uso de fumo, álcool, droga ilícita), presença de companheiro e realização do pré-natal. Adicionalmente, o óbito materno foi descrito segundo nacionalidade, assistência obstétrica prestada, causa de morte e desfecho do produto da gestação. Peso ao nascer (PN em gramas) e idade gestacional (IG em semanas) foram descritos para os subgrupos da população de estudo, exceto aborto, a partir dos indicadores: proporção de extremo baixo PN (< 1.000g), de muito baixo PN (< 1.500g), de baixo PN (< 2.500g) e de muito pré-termo (< 32 semanas) e pré-termo (< 37 semanas). Foram excluídos da análise de idade gestacional (IG) e peso ao nascer (PN), registros com inconsistência entre estas informações24: IG < 22 semanas e PN > 600g; IG de 22-27 semanas e PN > 1.500g; IG de 37-41 semanas ou IG ≥ 42 semanas e PN < 1500g ou > 5500g. Somente para os óbitos neonatais e sobreviventes foram descritas as frequências de nascidos vivos (NV) com Apgar no quinto minuto < 7.

Óbitos fetais e neonatais foram classificados por causas específicas (categorias de três e quatro caracteres), agrupamentos e capítulos da CID10. Na presença de investigação dos óbitos fetais e neonatais, as causas de morte referem-se àquelas pós-investigação registradas no SIM. Adicionalmente, os pesquisadores desconhecendo tais informações preencheram um novo atestado de óbito (São Paulo pelo coordenador geral da pesquisa e Estado do Rio de Janeiro, pela terceira autora do artigo), codificaram as causas de mortes e selecionaram a causa básica (quarta autora do artigo).

As análises das causas de morte foram realizadas separadamente para óbitos fetais e óbitos neonatais e por fonte certificadora (SIM e pesquisa). A causa básica de morte (CB) foi classificada segundo capítulo e agrupamento da CID e por causas específicas (categorias de três e quatro caracteres) apenas para os principais agrupamentos. As mudanças na frequência de óbitos segundo capítulo e agrupamento informado pelo SIM e certificada pela pesquisa por momento do óbito (fetal/neonatal) foram calculadas: valores positivos expressam aumento e negativos, diminuição. Foi descrita e contabilizada a frequência de diagnósticos além da CB, independentemente de sua localização no Atestado de Óbito (mesma linha ou não da parte I ou na parte II) e analisada a confiabilidade da CB informada pelo SIM e certificada pelos pesquisadores.

Análises Estatísticas

Foram calculados indicadores de mortalidade hospitalar: razão de mortalidade materna por 100.000 NV, risco de morte fetal, óbitos fetais por 1.000 nascimentos e o risco de morte neonatal por 1.000 NV10.

As distribuições, absoluta e percentual dos conceptos segundo características socioeconômicas, demográficas, história reprodutiva, da gestação e do parto foram descritas. Para testar a hipótese de homogeneidade de proporções foram realizados teste do Qui-quadrado de Pearson ou teste exato de Fisher. Para variáveis categóricas ordinais utilizou-se o teste do Qui-quadrado de tendência linear.

A distribuição e o posto de frequência da CB por capítulo e agrupamento da CID e por causas específicas (três e quatro caracteres) apenas para os principais agrupamentos foram descritas. Foram calculadas a média e a frequência absoluta de diagnósticos além da CB declarados (SIM e pesquisa). Foi realizado o teste de McNemar para investigar diferença entre as proporções de óbitos por causas por capítulo e agrupamento da CID, informada pelo SIM e pelos pesquisadores. Para a avaliação da concordância da CB (variáveis dicotômicas da causa específica - sim/não - informada pelo SIM e pela pesquisa) calculou-se a concordância percentual (< 25% - ruim; de 25% a 49% - regular; de 50% a 74% - boa e ≥ 75% -muito boa)25 e o coeficiente kappa (< 0,00 – pobre; 0,00-0,20 – superficial; 0,21-0,40 – razoável; 0,41-0,60 – moderada; 0,61-0,80 – substancial; 0,81- 1,00 – quase perfeita)26.

Considerações éticas

Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro, da Secretaria de Saúde e Defesa Civil do Município do Rio de Janeiro, Centros de Estudos de cada Maternidade do Estado do Rio de Janeiro, pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e hospitais participantes de São Paulo. Foi solicitado o consentimento informado a todas as gestantes elegíveis ou às respectivas responsáveis quando as mesmas eram menores de 18 anos.

Resultados

A razão de mortalidade materna hospitalar foi 13,6 por 100.000 NV, e o risco de morte fetal foi 8,8 por 1.000 nascimentos (centros RJ: 13,9‰, e SP: 7,1‰). A mortalidade neonatal foi 6,0 por 1.000 NV (centros RJ: 10,1‰ e SP: 4,7‰).

População de estudo

O único óbito materno era de uma mulher residente no município de São Paulo, natural da Bolívia, de 34 anos, cor amarela e baixa escolaridade. Ela não vivia com companheiro, era do lar, teve cinco gravidezes anteriores (um aborto e quatro NV), e a atual resultou em óbito fetal (560 gramas e 23 semanas). Não fez o pré-natal e não referiu morbidade e comportamento de risco durante a gestação. O óbito ocorreu no puerpério imediato após transferência para hospital de maior complexidade. A CB de morte foi outras hemorragias do pós-parto imediato (código da CID: O72) e constava como causa associada tuberculose pulmonar (código da CID: A162).

Entre os 7.898 conceptos ocorreram 498 abortos –29,1% sem expulsão do embrião, 64,5% espontâneos, 0,4% induzidos, previstos por lei ou ação judicial, 3,2% provocados e 2,8%, ignorados. O meio de abortamento provocado mais utilizado foi o misoprostol. A proporção de aborto provocado no centro RJ (11,9%) foi cerca de 12 vezes maior do que o centro SP (1%), enquanto que o aborto espontâneo foi 30% superior no centro SP (68,1%) em relação ao centro RJ (50,5%). Entre os nascimentos, 65 eram óbitos fetais e 7.335 NV ocorrendo 44 óbitos neonatais hospitalares.

A Tabela 1 apresenta a distribuição dos conceptos segundo características sociodemográficas, da história reprodutiva e gestação, comportamento de risco, assistência à saúde e características dos recém-nascidos.

Tabela 1 Populaçao de estudo segundo desfecho da gestaçao e algumas características maternas e dos conceptos nas cidades Rio de Janeiro, Niterói (centro RJ) e São Paulo (centro SP), 2011. 

Características Aborto Óbito fetala Óbito neonatal Sobreviventes Infantis p-valor
n = 498 % n = 65 % n = 44 % n = 7291 %
Sociodemográficas maternas
Centro do parto ou aborto < 0,0001
São Paulo 397 79,7 40 61,5 26 59,1 5531 75,9
Rio de Janeiro 101 20,3 25 38,5 18 40,9 1760 24,1
Faixa etária < 0,0001
10-19 75 15,1 22 33,8 8 18,2 1618 22,2
20-34 322 64,7 34 52,3 33 75,0 5022 68,9
35 e mais 101 20,3 9 13,8 3 6,8 651 8,9
Cor da pele 0,001
branca 197 40,9 19 30,2 17 39,5 2630 36,9
parda 188 39,0 33 52,4 12 27,9 3354 47,1
preta 86 17,8 10 15,9 13 30,2 959 13,5
outras 11 2,3 1 1,6 1 2,3 182 2,6
Escolaridade 0,047
< 8 anos 85 17,5 20 32,3 7 16,7 1393 19,7
> = 8 anos 402 82,5 42 67,7 35 83,3 5690 80,3
Companheiro presente 168 34,1 15 23,4 29 65,9 4709 65,3 < 0,0001
História reprodutiva
No de partos anteriroresb 0,01
Nenhum 126 31,9 24 36,9 18 40,9 3062 42,0
1-3 225 57,0 36 55,4 22 50,0 3720 51,1
4 e mais 44 11,1 5 7,7 4 9,1 501 6,9
Nascidos mortos anterioresd 10 2,0 2 3,2 - - 120 1,7 -
Abortos anteriores 124 25,0 12 19,0 10 22,7 1303 17,9 0,01
Da gestação
Referiu hipertensão arterial 17 3,4 12 18,5 6 13,6 853 11,7 < 0,0001
Referiu hemorragiad 90 18,1 5 7,7 6 13,6 402 5,5 -
Referiu Sífilisd 3 0,6 6 9,2 3 6,8 140 1,9 -
Usou tabaco 85 17,3 8 12,5 9 20,5 1062 14,6 0,252
Usou de álcool 73 14,8 10 15,6 13 30,2 972 13,4 0,01
Usou de drogas ilícitasd 11 2,2 - - 3 7,0 96 1,3 -
Sofreu violênciad 24 4,9 6 9,7 - - 283 3,9 -
Não fez o pré-natald 315 63,3 6 9,2 7 16,3 110 1,5 -
Recém-nascidos
Com peso ao nascer <1000gd NA NA 20 34,5 21 53,8 6 0,1 -
Com peso ao nascer <1500gd NA NA 33 56,9 28 71,8 38 0,7 -
Com peso ao nascer <2500g NA NA 45 77,6 32 82,1 463 8,0 < 0,0001
Com idade gestacional <32semd semanas NA NA 33 56,9 27 69,2 127 2,2 -
Com idade gestacional <37sem semanas NA NA 46 79,3 30 76,9 657 11,4 < 0,0001
Com Apgar 5 min <7c NA NA NA NA 21 47,7 6 0,1 < 0,0001

NA: Não se aplica; g-gramas e sem-semanas de gestação.

a(≥22sem);

bQui-Quadrado de tendência linear;.

cTeste de Fisher;

dNão foi possível testar a significância estatística em função das baixas frequências. OBS: Foram excluídos da análise registros com informações ignoradas. Adicionalmente, para análise do peso ao nascer e idade gestacional foram excluídas as inconsistências entre as duas variáveis resultando em 58 natimortos, 39 óbitos neonatais e 5.775 sobreviventes infantis.

Conceptos foram heterogêneos em todas as características sociodemográficas maternas (p valor < 0,05). Destacaram-se nas faixas etárias extremas, 34% de adolescentes entre os óbitos fetais e 20% com 35 anos e mais entre os abortos. As proporções de mulheres de cor da pele preta entre as mortes fetal e neonatal foram superiores àquelas dos sobreviventes (13,5%), alcançando 30,2% entre os óbitos neonatais. Evidenciou-se um percentual maior de baixa escolaridade entre mães dos óbitos fetais (32,3%). Prevaleceu presença do companheiro entre óbitos neonatais e sobreviventes e ausência deste entre abortos e óbitos fetais.

Exceto por natimortalidade prévia, todas as demais características reprodutivas diferiram segundo o tipo de desfecho ocorrido (p valor < 0,0001). Entre as mulheres que tiveram aborto, 11,1% tinham história de quatro partos ou mais. Aborto prévio foi relatado com mais frequência entre os subgrupos de morte quando comparados ao subgrupo de sobrevivência.

A hipertensão arterial e a sífilis materna foram mais frequentes exceto entre os abortos, quando prevaleceu hemorragia. Tabagismo, uso de álcool e de drogas foram mais comuns entre as mães dos óbitos neonatais. Nesse grupo, nenhuma mãe declarou ter sofrido violência durante a gestação. Dentre as morbidades e comportamentos de risco, somente hipertensão arterial e uso de álcool apresentaram significância estatística (p < 0,05). Não ter realizado o pré-natal foi mais frequente entre os casos de aborto (63%). Baixo peso ao nascer e prematuridade foram mais frequentes entre óbitos fetais e neonatais (p < 0,0001).

Considerando-se o momento da ocorrência da morte fetal e neonatal, observa-se a redução da frequência à medida que avança a idade gestacional e a idade cronológica (Gráfico 1). O declínio relativo do número de óbitos foi maior desde o início da gravidez (498 abortos) até a vigésima segunda semana de gestação (65 óbitos fetais), cerca de 87% e desta até o primeiro dia de vida incompleto (18 óbitos neonatais), 72%.

Gráfico 1 Distribuiçao das perdas fetais* e dos óbitos neonatais segundo o momento da morte em maternidades públicas das cidades Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo, 2011.*Perdas fetais: aborto e óbito fetal (< 22 e ≥ 22 semanas de gestação, respectivamente). 

Causas de morte dos conceptos

A investigação de óbitos informados pelo SIM ocorreu em 83,1% dos óbitos fetais e 84,1% dos óbitos neonatais. As principais causas de mortes por capítulo da CID foram Causas Perinatais (XVI) seguidas de Malformações Congênitas (XVII) e Doenças Infecciosas e Parasitárias (I) tanto entre as informadas pelo SIM quanto as certificadas pelos pesquisadores. Um óbito neonatal foi certificado pelos pesquisadores como Causas Externas (XX). Para os óbitos fetais a certificação da pesquisa comparada à informação do SIM, aumenta a frequência de doenças infecciosas e parasitárias e malformações congênitas e diminui a frequência das causas perinatais; para os óbitos neonatais, verifica-se diminuição da frequência das malformações congênitas e aumento das demais.

A Tabela 2 apresenta a distribuição dos óbitos fetais e neonatais por CB e número de diagnósticos, além da CB segundo agrupamento da CID, informados pelo SIM e certificados pelos pesquisadores.

Tabela 2 Agrupamentos de causa básica (CB) de natimortos e de óbitos neonatais, número de diagnósticos além da CB informados pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e pela pesquisa, proporção de mudança da CB informada pelo SIM e certificada pela pesquisa, em maternidades das cidades de São Paulo, do Rio de Janeiro e Niterói, 2011. 

Causa Básica (CB) por Agrupamentos (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – 10a Revisão) SIM Pesquisa Mudança
n0 % n0 diagnósticos além da CB n0 % n0 diagnóticos além da CB Causa Básica %
0 1 2 3 ≥ 4 0 1 2 3 ≥ 4
Óbitos Fetaisa
A50-A54: Infecções de transmissão predominantemente sexual 2 3,1 - 1 - 1 - 5 7,7 4 1 - - - 150,0
P00-P04: Fatores maternos e complicações (gravidez/trabalho de parto/parto) 20 31,3 1 14 4 1 21 32,3 4 9 5 3 5,0
P05-P08: Transtornos relacionados com duração da gestação e crescimento fetal - - - - - - - 1 1,5 1 - - - - -
P20-P29: Transtornos respiratórios/cardiovasculares específicos período perinatal 30 46,9 29 1 - - - 4 6,2 2 2 - - - -86,7c
P35-P39: Infecções específicas do período perinatal 1 1,6 - 1 - - - - - - - - - - -
P70-P74: Transtornos endócrinos e metabólicos transitórios e específicos 1 1,6 - - 1 - - 5 7,7 2 1 1 0 - 300,0
P90-P97: Outros transtornos originados no período perinatal 7 10,9 6 1 - - - 24 36,9 24 0 0 0 - 242,9c
Q00-Q07: Malformações congênitas do Sistema Nervoso 1 1,6 1 - - - - 1 1,5 1 0 0 0 - 0,0
Q20-Q28: Malformações congênitas do Aparelho circulatório - - - - - - - 1 1,5 0 0 1 0 - -
Q80-Q89: Outras Malformações congênitasb 1 1,6 - 1 - - - 3 4,6 2 0 1 0 - 200,0
Q90-Q99: Anomalias crossômicas, não classificadas em outra parte 1 1,6 - 0 1 - - - - - - - - - -
Total 64 100 37 19 6 2 - 65 100 40 13 8 3 - -
Óbitos Neonatais
A50-A54: Infecçoes de transmissão predominantemente sexual - - - - - - - 1 2,3 1 - - - - -
P00-P04: Fatores maternos e complicações (gravidez/trabalho de parto/parto) 11 25 - - 2 4 5 17 38,6 - 6 9 1 1 54,5
P05-P08: Transtornos relacionados com duração da gestação e crescimento fetal 3 6,8 - 1 2 - - 6 13,6 6 - - - - 100,0
P10-P15: Traumatismo de parto - - - - - - - 1 2,3 - - 1 - - -
P20-P29: Transtornos respiratórios/cardiovasculares específicos período perinatal 13 29,5 - 1 5 5 2 8 18,2 1 2 3 1 1 -38,5
P35-P39: Infecçoes específicas do período perinatal 6 13,6 - 1 - 1 4 1 2,3 - 1 - - - -83,3
P75-P78: Transtornos do aparelho digestivo do feto e do RN - - - - - - - 1 2,3 - 1 - - - -
P90-P97: Outros transtornos originados n período perinatal 1 2,3 - - - - 1 - - - - - - - -
Q00-Q07: Malformaçoes congênitas do Sistema Nervoso 5 11,4 - 2 2 1 - 5 11,4 2 1 1 1 - 0,0
Q20-Q28:Malformaçoes congênitas do Aparelho circulatório 1 2,3 - - 1 - - 1 2,3 1 - - - - 0,0
Q30-Q34: Malformação congênita do nariz 2 4,5 - - 1 0 1 1 2,3 - - - 1 - -50,0
Q60-Q64: Malformaçoes congênitas do Aparelho urinário 1 2,3 - 1 - - - 1 2,3 - - - 1 - 0,0
Q65-Q79: Malformaçoes congênitas/deformidades aparelho osteomuscular 1 - - - - - 1 - - - - - - - -
W00-W19: Quedas - - - - - - - 1 2,3 - 1 - - - -
Total 44 100 - 6 13 11 14 44 100 11 12 14 5 2

Fontes: Sistema de Informações sobre Mortalidade (PRO-AIM São Paulo; Secretaria de Estado de Saúde Rio de Janeiro).

aóbito fetal (≥ 22 semanas de gestação);

bUm aborto foi corrigido para natimorto (não foi registrado no Sistema de Informações sobre Mortalidade);

cTeste de Mcnemar (p < 0,001).

Entre os óbitos fetais, 78% das CB informadas pelo SIM foram por Transtornos respiratórios e cardiovasculares específicos do período perinatal (P20-P29), exclusivamente por hipóxia intra-uterina não especificada (P209), e Fatores maternos e por complicações da gravidez, do trabalho de parto e parto (P00-P004), destacando-se neste agrupamento, doenças hipertensivas da gravidez (P000) e outras formas de descolamento prematuro de placenta e hemorragia (P021). Quando certificado pela pesquisa passou a predominar o agrupamento Outros transtornos originados no período perinatal (P90-P97), exclusivamente devido às mortes fetais de causas não especificadas (P95), o correspondente às causas mal definidas para natimortos (Tabela 2). O número de diagnósticos, além da CB, nos atestados de óbitos dos óbitos fetais variou entre zero e três; em cerca de 60% (SIM) e 62,5% (pesquisadores) havia registro apenas da CB, principalmente quando classificada no agrupamento Transtornos respiratórios e cardiovasculares (SIM) e Outros transtornos originados no período perinatal (pesquisa) (Tabela 2). A média de diagnósticos além da CB certificados pelos pesquisadores foi 1,9 e informada pelo SIM, 1,3.

Mais da metade das causas dos óbitos neonatais no nível de agrupamento foram também devidas aos Transtornos respiratórios e cardiovasculares específicos do período perinatal (P20-P29) e Fatores maternos e por complicações da gravidez, do trabalho de parto e parto (P00-P004) quando informados no SIM (54,5%) e certificados pela pesquisa (56,8%), alternando apenas os primeiros e segundos postos de maior frequência. Entre os óbitos neonatais informados pelo SIM, todos apresentaram pelo menos um diagnóstico além da CB e em cinco registros este valor ultrapassou quatro. Na pesquisa, 11 óbitos neonatais apresentaram apenas a CB no atestado de óbito e o número máximo de diagnósticos além da CB foi quatro. Os principais agrupamentos, P20-P29 entre os óbitos neonatais informados pelo SIM e P00-P004 certificados pela pesquisa apresentaram um número maior de diagnósticos além da CB (tabela 2). O número médio de diagnósticos além da CB dos óbitos neonatais foi superior ao dos natimortos, sendo também o da pesquisa (3,0) superior ao informado pelo SIM (2,7).

Mudanças da causa básica de morte dos conceptos

A principal mudança de CB específica dos óbitos fetais foi de hipóxia intrauterina não especificada (P209), informada pelo SIM (30), para mortes fetais de causas não especificadas (P95), certificadas pelos pesquisadores (16). Em todas as situações em que essa modificação ocorreu não havia diagnóstico além da causa básica (SIM e pesquisa). Para oito óbitos fetais cuja CB informada pelo SIM era P209, havia como diagnóstico além da CB, seis no agrupamento Fatores maternos e complicações (P00-P04) e dois Transtornos endócrinos e metabólicos transitórios e específicos (P70-74) que passaram para CB pelos pesquisadores. Para um óbito fetal, a CB hipóxia intrauterina não especificada no SIM mudou para sífilis congênita precoce sintomática (A500) pela pesquisa. Para nenhum óbito fetal foi mantida hipóxia intrauterina como causa básica após certificação pela pesquisa.

As mudanças de causas específicas dos óbitos neonatais entre SIM e pesquisa foram mais distribuídas entre os códigos da CID. Entretanto, duas mudanças de CB dos óbitos neonatais registradas no SIM e certificadas na pesquisa chamaram a atenção. Em um óbito, septicemia bacteriana não especificada (P369) foi informada pelo SIM e Sífilis congênita precoce sintomática (A500) certificada pelos pesquisadores. A segunda mudança foi da causa natural prematuridade não especificada (P073) informada pelo SIM para a causa não natural, outras quedas no mesmo nível (W18), certificada pelos pesquisadores.

Mudanças de CB estatisticamente significantes informadas pelo SIM e pela pesquisa ocorreram apenas por agrupamento (P20-P29 e P90-P97) para os óbitos fetais (p < 0,01) (Tabela 2).

Confiabilidade da causa básica de morte dos conceptos

A confiabilidade das CB neonatais foi superior à dos óbitos fetais, verificando-se que, à medida que as causas de morte são mais especificadas, diminui a concordância entre o SIM e pesquisa (Tabela 3). A concordância percentual por capítulo da CID foi muito boa tanto para natimortos quanto para óbitos neonatais; o coeficiente kappa apresentou concordância substancial (0,70) e moderada (0,54) para os óbitos neonatais e natimortos, respectivamente. Os óbitos neonatais apresentam concordância moderada (kappa = 0,40) e razoável no nível de três caracteres (kappa = 0,23) e quatro caracteres (kappa= 0,25). Para os óbitos fetais, a concordância por agrupamento e causa específica foi superficial (Tabela 3).

Tabela 3 Concordância percentual entre as causas de óbitos fetais e neonatais informadas pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade e certificadas pela pesquisa em maternidades públicas das cidades Rio de Janeiro, Niterói e São Paulo, 2011. 

Óbitos fetaisa (n = 64) Óbitos neonatais (n = 44)
concordância % Coef. kappab IC 95% concordância % Coef. kappab IC 95%
Capítulo 90,63 0,54 0,34 0,78 88,64 0,70 - -
Agrupamento 31,25 0,16 0,06 0,26 51,16 0,40 0,24 0,62
Categorias de 3 caracteres 26,56 0,17 0,13 0,21 27,27 0,23 0,10 0,27
Categorias de 4 caracteres 20,31 0,14 0,12 0,21 27,7 0,25 0,18 0,29

Fontes: Sistema de Informações sobre Mortalidade (PRO-AIM, São Paulo e Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro).

IC 95%: Intervalo de Confiança de 95% do coeficiente kappa.

aÓbitos fetais correspondem aos óbitos fetais do componente perinatal (idade gestacional ≥ 22 semanas).

bp-valor < 0,001.

Discussão

Este estudo permitiu avaliar todo o espectro das mortes dependentes da ocorrência de gravidez.

Ocorreu um óbito materno para 7.335 NV nesta pesquisa. Em número absoluto, óbito materno é um evento raro e possivelmente a ocorrência no centro SP se deveu mais à frequência de NV (75,8%) do que à demanda de gravidez de risco e/ou uma pior assistência obstétrica. No estudo seccional multicêntrico em 2010/11, em sete maternidades brasileiras participantes ocorreu um óbito materno e a razão de mortalidade materna foi 14,2/100.000 NV21, valor próximo ao deste estudo.

O pior cenário da mortalidade fetal e neonatal foi no centro RJ. Exceto uma maternidade paulistana, as demais são referência para gravidez de risco. Deve-se considerar que além de possíveis diferenças na qualidade da assistência obstétrica e neonatal entre os centros RJ e SP, na maternidade da cidade de Niterói, referência para a região metropolitana II do Estado do Rio de Janeiro, grande parcela das parturientes assistidas é de risco e oriundas de municípios mais empobrecidos, elevando os riscos de morte de mulheres e conceptos. O risco de mortalidade fetal estimado para este estudo priorizou o peso ao nascer seguindo a definição da CID10 e, portanto, pode estar subestimado27. Esta subestimação pode ser maior quando a frequência de nascimentos com restrição do crescimento intrauterino é alta27.

As características sociodemográficas da parturiente que evoluiu para morte materna neste estudo, além da causa de morte associada (tuberculose pulmonar), expressam condições de vulnerabilidade2. As causas de morte certificadas, hemorragia e obstrução do parto, são as complicações mais frequentes no momento do nascimento e comuns à morte materna, neonatal e fetal22. Esta tragédia resultou em duas mortes, mãe e concepto, e quatro órfãos. Apenas as melhorias da atenção profissional e institucional ao parto, independentemente das condições das mulheres, são capazes de reduzir significativamente a ocorrência de mortes maternas3.

Como apontado em outros estudos8,9,20, erros de classificação do tipo de aborto, devido à ilegalidade, resultaram na subestimação de abortos provocados, o que comprometeu o conhecimento sobre o tipo de aborto. No centro RJ, a proporção de abortos provocados foi maior do que em SP, resultado compatível com o inquérito nacional20. No presente estudo, entre os abortos provocados, o uso de misoprostol foi relatado por quase a totalidade das respondentes, apesar do medicamento ser restrito a hospitais credenciados. O comércio ilegal do misoprostol favorece sua adulteração e o risco de venda de apresentações com subdoses ou sem o princípio ativo compromete sua eficácia28, expondo as mulheres a situações de risco, quer seja pelo acesso à medicação ou pelo êxito não obtido29. Aborto é uma causa importante de morbi-mortalidade materna, principalmente quando realizado em condições inseguras30.

Aborto, óbito fetal, óbito neonatal e sobrevivente infantil apresentaram-se como grupos distintos corroborando resultados de estudos sobre fatores de risco e mortalidade11-13,15,20, exceto por algumas peculiaridades. Conceptos mostraramse homogêneos em relação às variáveis nascidos mortos anteriores e uso de tabaco (p valor>0,20). A natimortalidade prévia foi descrita como um fator de risco independente para óbitos fetais15 e óbitos neonatais13 e, não apenas o tabagismo, mas também o uso de álcool e drogas, não estiveram associados aos óbitos fetais15. A baixa idade gestacional dos abortos pode ter influenciado o acesso ao pré-natal.

Destacaram-se pela alta frequência, algumas características sociodemográficas como adolescência entre os óbitos fetais, cor de pele materna preta entre mortes fetais e neonatais13 e ausência de companheiro nos casos de aborto ou óbito fetal15. Essas características sugerem a influência de desigualdades sociais na assistência e nos desfechos de saúde2.

Entre os óbitos perinatais predominaram óbitos fetais (66,3%); óbitos neonatais ocorreram principalmente nas primeiras 48 horas, em concordância com a literatura1,6,13.

Apesar da obrigatoriedade31, um pouco mais da metade dos óbitos fetais e neonatais havia sido investigada. A investigação do óbito possibilita qualificar a certificação das causas de morte. Em 2011, a investigação não era universal e as secretarias de saúde estabeleciam critérios de prioridade32,33. Da mesma forma, espera-se que a certificação das causas de morte pelos pesquisadores seja mais qualificada do que a certificação original na maioria dos casos. As diferenças entre as certificações do SIM e da pesquisa repercutiram na ordenação de postos das CB e na concordância, fundamentalmente no nível de agrupamento da CID. Contudo, a subestimação de sífilis congênita (capítulo I) entre natimortos e óbitos neonatais e queda (capítulo XX) nos óbitos neonatais pelo SIM contribuíram para enfraquecer a concordância também no nível de capítulo.

Discordâncias de CB informadas pelo SIM e pela pesquisa foram maiores entre os óbitos fetais comparados aos óbitos neonatais e aumentam com a especificidade da causa (de capítulo a quatro caracteres). Evidencia-se por um lado o despreparo dos profissionais em reconhecer a cadeia causal que resultou na morte18 e, por outro, a presença de um complexo inter-relacionamento entre as diversas causas18. Estudos nacionais mostraram baixa confiabilidade da CB de óbitos fetais, perinatais e infantis15,17,18,34,35.

Entre os óbitos fetais, a principal modificação de causa básica entre o SIM e pesquisa ocorreu de hipóxia intrauterina não especificada para causas de morte fetal não especificada. Esta mudança também foi destacada nos estudos similares de óbitos fetais15 e perinatais35 e pode refletir a incompletude do prontuário do óbito fetal, a não realização de necropsia ou, a falta de informações nos laudos17,35. A ausência de informações clínicas da gestação e do parto e a não inclusão das placentas na necropsia dificultam a precisão das causas de morte17.

Hipóxia intrauterina representa o estágio terminal da cadeia causal da mortalidade, portanto, não deve ser certificada como CB; e causas de morte fetal não especificada são as “causas mal definidas” dos óbitos perinatais. Ambos os diagnósticos (P209 e P95) são inespecíficos para direcionar medidas de prevenção36.

Apesar do pequeno número absoluto de óbitos fetais, as frequências de sífilis congênita (A50-A54) e de diabetes (P70-P74) foram, respectivamente, 2,5 e cinco vezes maiores quando comparadas à informação do SIM. Essas causas de mortalidade fetal são decorrentes de morbidades maternas consideradas modificáveis pela melhor assistência obstétrica e frequentes em países de média e baixa renda11. No Brasil, a prevalência de sífilis na gestação é maior na ausência de pré-natal e, mesmo quando realizado, o início tardio pode ser uma barreira para diagnóstico e tratamento na idade gestacional recomendada37. A fração atribuível populacional mundial da sífilis e da diabetes pré-gestacional na mortalidade fetal foi estimada em cerca de 8% e 7%, respectivamente11. Sífilis congênita também foi subregistrada como causa básica entre os óbitos neonatais em concordância com estudo de Alagoas na década anterior18. Os autores destacam a evitabilidade de mortes neonatais por sífilis congênita e diabetes na gestação, entre outras causas.

A qualificação da CB dos óbitos fetais e neonatais pela pesquisa pode ser avaliada também pelo aumento do número de diagnósticos certificados. Por vezes, os médicos deixam de informar diagnósticos além da CB no atestado de óbito por já estarem registrados no prontuário38. Particularmente para os óbitos fetais, questões referentes aos códigos da CID, escassos e incompletos para as condições placentárias, e ao próprio modelo da Declaração de Óbito que não contempla informações sobre intercorrências da gravidez e do parto devem ser consideradas27.

Uma limitação da pesquisa foi a inexistência de um Serviço de Verificação do Óbito nas cidades do Estado do Rio de Janeiro e, no caso da cidade de São Paulo que dispõe do serviço, alguns resultados foram imprecisos para qualificar a causa de morte, como sinalizado por Almeida et al.17. Adicionalmente, a estratégia de captação dos recém-nascidos em maternidades com maior número de nascimentos no SUS nas cidades integrantes da pesquisa, semelhante à estratégia amostral utilizada no inquérito multicêntrico da Saúde Materna e do Recém-nascido da Organização Mundial de Saúde39, não correspondeu a uma amostra aleatória.

Como pontos positivos do estudo ressalta-se a inexistência praticamente de erro de classificação entre as perdas fetais (aborto e óbitos fetais) e dos óbitos fetais com os nascidos vivos, estas últimas já sinalizadas em publicação com a base de dados do inquérito na cidade40 de São Paulo.

Para o melhor preenchimento da Declaração de Óbito e consequente precisão das causas de morte é necessário enfatizar aos médicos e principalmente aos estudantes de Medicina, as definições das mortes (materna, aborto, componente fetal do óbito perinatal e infantil por componentes) e a inclusão de todas as doenças nos atestados de óbitos38, as do recém-nascido e aquelas consequentes às morbidades maternas, impactando positivamente na qualidade da assistência.

A assistência de boa qualidade no planejamento reprodutivo, pré-natal, durante o parto e nascimento resultará na prevenção de abortos, mortes fetal, materna e neonatal11.

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