versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.27 no.4 São Paulo jul./ago. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20152014141
A rinite alérgica é definida como uma resposta inflamatória da mucosa nasal à exposição a fatores alérgenos, mediada pela imunoglobulina E, que pode resultar em sintomas crônicos ou recorrentes(1). Tal entidade clínica tem por consequências alteração na qualidade de vida, diminuição do rendimento escolar e profissional, gerando, assim, repercussões econômicas(2).
É apontado na literatura científica que o paciente com rinite alérgica apresenta alterações nas funções de mastigação, deglutição e respiração(3), esta última relacionada principalmente com a obstrução nasal, que é o sintoma predominante nesta patologia e relaciona-se diretamente com alterações no sistema estomatognático(4 - 6 ).
Alguns autores relatam que com o surgimento da obstrução nasal e possivelmente abertura da boca para respirar, ocorrem adaptações estruturais que causam desequilíbrio nas funções orofaciais(7). Tais mudanças surgem por resposta neuromuscular que induz a adaptação de diversas estruturas do sistema estomatognático, gerando atividades musculares inadequadas fisiologicamente, acarretando, assim, alterações esqueléticas, dentárias e, consequentemente, musculares, podendo ser observadas hipotrofias, hipotonias e hipofunção dos músculos elevadores de mandíbula(8 , 9 ).
Em relação à fala, aponta-se que sua produção depende da mobilidade dos órgãos fonoarticulatórios, como língua, lábios e bochechas, além do posicionamento dos dentes, da língua e da mandíbula(10), e que problemas nesta função estão associados à ocorrência de alterações de mobilidade, tônus e postura dos órgãos fonoarticulatórios e das alterações orofaciais(11). Decorrentes disso, os movimentos mandibulares poderão estar alterados durante a produção da fala na ocorrência de obstruções nasais.
Um método capaz de registrar a dinâmica mandibular é a eletrognatografia, que funciona por meio de um sistema computadorizado de análise tridimensional dos movimentos mandibulares. Além de simplificar o registro dos movimentos de mandíbula, a eletrognatografia é um exame que pode ser utilizado como auxiliar no diagnóstico, no acompanhamento e na evolução de alterações estomatognáticas(12). Na avaliação dos movimentos mandibulares durante a fala por meio da eletrognatografia pode-se utilizar as chamadas situações estruturadas, as quais permitem a não ocorrência de pausas e minimizam alterações na velocidade, demonstrando melhor o desempenho dos mecanismos motores de produção de fala(13). São exemplos dessas situações a repetição de fonemas ou mesmo a repetição de palavras.
Diante disso, o objetivo deste estudo foi caracterizar a amplitude e a velocidade dos movimentos mandibulares durante a fala de crianças com e sem rinite alérgica.
O presente estudo teve caráter observacional, descritivo e transversal. A amostra não probabilística foi composta por 32 crianças, 18 do gênero feminino e 14 do masculino, com 7 a 12 anos de idade, atendidas nos Ambulatórios de Alergia e Imunologia e Pediatria de um hospital universitário, no período entre abril e junho de 2013. A seleção dos participantes ocorreu por intermédio de um critério de conveniência relacionado à demanda de atendimentos nos ambulatórios.
Os participantes foram divididos em um grupo constituído por 16 crianças com diagnóstico médico de rinite alérgica (8 do gênero feminino) e um grupo controle com o mesmo número de voluntários, formado por crianças não riníticas (10 do gênero feminino).
As crianças foram captadas para a realização da pesquisa por meio de consulta a prontuários médicos dos ambulatórios mencionados, considerando os critérios de inclusão e exclusão do presente estudo.
Os critérios de inclusão no grupo de pesquisa foram apresentar idade de 7 a 12 anos e ter diagnóstico de rinite alérgica. Em relação ao grupo controle foram incluídas crianças, sem rinite, que apresentavam idade de 7 a 12 anos.
Os critérios de exclusão para os dois grupos foram: apresentar malformações craniofaciais, usar aparelho ortodôntico, falta de elementos dentários que comprometessem a fala, apresentar síndromes neurológicas, apresentar quaisquer déficits comunicativos, neurológicos, cognitivos e sensoriais.
Para registro dos movimentos mandibulares, foram utilizados o eletrognatógrafo da Bio RESEACH (r) associates inc. e o software BIOPAK(tm) Program, com um computador notebook. Na realização do exame o participante foi instruído a permanecer sentado em uma cadeira e, em seguida, foi fixado um sensor magnético (ímã) na mucosa oral, abaixo dos incisivos centrais inferiores, com Corega(r) fita adesiva. Logo após, o eletrognatógrafo foi acoplado à cabeça do participante e foram executados os ajustes no posicionamento do equipamento em relação às características anatômicas da criança (Figura 1).
Em seguida, foi apresentado de forma impressa um quadro de figuras de fácil nomeação(14 , 15 ) contendo todos os fonemas da língua portuguesa e solicitado que o participante nomeasse, em sequência, todas as figuras, para captação dos movimentos de mandíbula durante a fala (Figura 2). O percurso da mandíbula durante a nomeação das figuras foi registrado no software para realização posterior da análise dos dados (Figura 3).
Figura 3. Registro da ve locidade (azul) e dos movimentos mandibulares durante a fala nos planos frontal (vermelho) e sagital (verde) em um voluntário
Para análise estatística descritiva, foram consideradas a média, o desvio padrão e o intervalo de confiança. Para comparação entre os grupos caso e controle, foi adotado o teste não paramétrico de Mann-Whitney; para verificar a correlação entre a amplitude de abertura de mandíbula e a velocidade durante a abertura e o fechamento da boca, foi utilizado o teste de correlação de Spearman (o nível de significância foi de 95%).
A coleta de dados foi iniciada após a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da instituição (CAAE: 10733513.4.0000.5208; parecer nº 257.940) e todos os responsáveis pelas crianças assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido antes de os procedimentos serem iniciados.
A amostra foi composta por 56,25% de crianças do gênero feminino e 43,75% do gênero masculino, demonstrando uma homogeneidade na inclusão dos participantes. Além disso, o grupo de riníticos teve metade dos participantes pertencente a cada um dos sexos, enquanto o grupo controle foi composto por 62,5% de meninas.
Em relação à Tabela 1, é possível verificar maior média da amplitude de abertura mandibular no grupo controle, com uma diferença de 2,23 mm em relação ao grupo caso, porém sem significância estatística. Além disso, observa-se nos dados relacionados à velocidade de abertura de mandíbula, nos dois grupos estudados, uma diferença de 10,31 mm/s entre as médias, sendo a velocidade deste movimento maior no grupo controle; contudo, não houve diferença estatisticamente significativa entre esses resultados. Também pôde ser observado que existe uma diferença de 12,31 mm/s entre as médias dos grupos caso e controle na variável velocidade de fechamento mandibular, sendo que o grupo controle apresentou um fechamento mais rápido, apesar de essa diferença não ser significativa. A partir do cálculo do intervalo de confiança foi evidenciada menor dispersão no grupo caso, o que aponta para uma estimativa mais acurada no valor dos indivíduos riníticos. Tais valores indicam que não há diferenças entre o grupo controle e o grupo com rinite alérgica, considerando as variáveis do movimento mandibular estudadas: amplitude de abertura de mandíbula, velocidade de abertura de mandíbula e velocidade de fechamento de mandíbula durante a fala.
Tabela 1. Comparação entre a amplitude de abertura mandibular e as velocidades de abertura e fechamento da mandíbula em milímetros durante a fala nos voluntários dos grupos caso e controle
Variável | Caso (n=16) | Controle (n=16) | Valor de p |
||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Média±DP | IC | Mín.–Máx. | Mediana | Média±DP | IC | Mín.–Máx. | Mediana | ||
Amplitude | 13,18±4,09 | 11,00–15,37 | 7,90–20,60 | 16,5 | 15,75±6,32 | 12,38–19,12 | 5,60–26,10 | 18 | 0,175 |
Velocidade de abertura |
78,00±28,18 | 62,98–93,02 | 32–118 | 97,5 | 88,31±52,20 | 60,49–116,13 | 10–200 | 111 | 0,650 |
Velocidade de fechamento |
89,94±40,76 | 68,21–111,66 | 26–182 | 104,5 | 102,25±52,71 | 74,16–130,34 | 26–227 | 132 | 0,462 |
Teste não paramétrico de Mann-Whitney - p<0,05 Legenda: DP = desvio padrão; IC = intervalo de confiança (95%); Mín. = mínimo; Máx. = máximo
Na Tabela 2 pode-se observar que houve correlação positiva entre amplitude e velocidade de abertura de mandíbula, e esta foi discretamente maior no grupo caso. Já a correlação entre amplitude e velocidade de fechamento da mandíbula foi positiva e forte em ambos os grupos. Considerando tais achados, é possível destacar que os valores numéricos da amplitude e das velocidades de abertura e fechamento mandibular são diretamente proporcionais. Tais análises do coeficiente de correlação de Spearman foram feitas considerando a distância dos valores encontrados, da referência de coeficiente perfeito, representada pelo número um.
Tabela 2. Correlação entre a amplitude dos movimentos mandibulares e as velocidades de abertura e fechamento da mandíbula durante a fala em voluntários dos grupos caso e controle
Velocidade abertura | Velocidade fechamento | |||
---|---|---|---|---|
rho | Valor de p | rho | Valor de p | |
Amplitude | ||||
Grupo Controle | 0,591 | 0,016 | 0,665 | 0,005 |
Grupo Caso | 0,712 | 0,002 | 0,776 | <0,001 |
p<0,05 Legenda: rho = coeficiente de correlação de postos de Spearman
A análise da dinâmica mandibular é apontada em alguns estudos como um importante meio de avaliação do estado funcional do sistema estomatognático, assim como uma ferramenta auxiliar no diagnóstico correto de possíveis alterações(16 , 17 ). É visto na literatura que as pesquisas feitas com o intuito de verificar a movimentação mandibular apresentam uma diversidade de situações clínicas estudadas, o que demonstra também a confiabilidade da eletrognatografia na obtenção de dados clínicos relativos à velocidade e à amplitude destes movimentos(12).
Apesar de diferenças estatisticamente significativas entre as medidas de movimentação mandibular de crianças com e sem rinite não terem sido encontradas neste estudo, algumas considerações podem ser feitas.
Inicialmente considerando os dados relacionados à distribuição dos sexos nos grupos estudados, verificou-se uma homogeneidade na alocação dos participantes. Diante dessa questão, em um estudo com o objetivo de avaliar os movimentos mandibulares de crianças por meio do uso do paquímetro, não foram encontradas diferenças da amplitude de abertura mandibular na comparação entre meninos e meninas, corroborando os achados deste estudo(18).
Em relação aos dados da amplitude de abertura da mandíbula, o resultado de um estudo de caracterização quantitativa dos movimentos mandibulares mostrou um valor de 12,77 mm no plano sagital durante a fala(17), o que se assemelha aos achados da presente pesquisa, considerando os índices do desvio padrão, tanto no grupo controle como no caso, apesar de se tratar de um estudo feito com adultos.
Outro estudo com indivíduos adultos utilizando um sistema de análise eletromagnética semelhante evidenciou média de abertura da boca de 14,5 mm durante a fala, o que sugere, além de valores discretos nesta variável, diferenças pequenas entre crianças e adultos jovens assintomáticos(19). Em relação a isso a literatura demonstrou, em estudos de mensuração dos movimentos mandibulares por meio do paquímetro, que a amplitude máxima de abertura da boca aumenta de acordo com o aumento da faixa etária(20 , 21 ); no entanto, pode-se inferir pelos achados do presente estudo que possivelmente a natureza pouco ampla desses movimentos e as poucas mudanças vistas na comparação entre faixas etárias estariam associadas à natureza complexa do controle motor durante a fala, não exigindo que a amplitude do movimento de mandíbula, nesta função, seja proporcional à máxima abertura da boca.
Além disso, outros achados evidenciaram valores menores do que os referidos acima, variando de 2 a 8,6 mm(22 - 24 ). Uma possível explicação para a causa dessa discrepância estaria associada ao idioma, o que ressalta a importância de estudos que caracterizem os movimentos mandibulares na língua portuguesa(25).
Os dados encontrados mostram diferenças numéricas, mas não estatisticamente significativas, nos valores observados entre os grupos investigados; no entanto, tais modificações podem indicar que possíveis alterações orofaciais no sistema estomatognático, presentes no grupo de riníticos, justifiquem tais achados.
Em relação às velocidades de abertura e fechamento da mandíbula, os dados encontrados demonstram valores altos durante a abertura e o fechamento da mandíbula na fala tanto no grupo controle como no caso, com uma maior velocidade durante o fechamento. Considerando isso, em um estudo(17) com indivíduos adultos assintomáticos foram evidenciadas velocidades de 88,65 e 89,90 mm/s durante os movimentos de abertura e fechamento mandibular, respectivamente, o que demonstra um pequeno incremento na velocidade de fechamento da boca. Pode-se inferir a partir desses resultados que esse incremento de velocidade no fechamento mandibular esteja relacionado à função mastigatória, pois esta depende de um complexo integrado de músculos que elevam e abaixam a mandíbula, e a eficiência desta função está diretamente relacionada à força de contração destes músculos, em especial dos elevadores de mandíbula(26).
Ainda em relação à velocidade do movimento mandibular, pode-se notar, a partir das médias, que tanto na abertura como no fechamento os valores foram menores no grupo de riníticos. Murdoch(27) diz que a velocidade de mandíbula depende, dentre outros fatores, da ação dos músculos e ligamentos do sistema estomatognático. Considerando esse fator, nota-se que a literatura aponta uma grande prevalência de respiração oral em indivíduos com rinite alérgica, e modificações neuromusculares no sistema estomatognático encontradas na respiração oral que causam hipofunção e hipotonia muscular, principalmente na musculatura elevadora de mandíbula(28 , 29 ). Assim, é possível que a diminuição da velocidade da mandíbula no grupo de crianças com rinopatia alérgica esteja relacionada à alteração do modo respiratório causada pela obstrução nasal.
Em relação à comparação entre a amplitude e as velocidades de abertura e fechamento da mandíbula, um estudo(17) também comentou que existe uma relação direta entre tais variáveis. Na presente pesquisa houve correlação positiva estatisticamente significativa nos dois grupos, sendo esta discretamente maior nas crianças com rinite. Apesar de essa diferença ser pequena, pode-se inferir que este resultado esteja relacionado ao fato de os valores numéricos do grupo controle se apresentarem de forma mais heterogênea, possivelmente pela existência de condições fisiológicas do sistema estomatognático não abordadas nos critérios de exclusão e que podem modificar a condição muscular, como é o caso do tipo facial. Um dado que pode fortalecer tal conjectura são os valores do índice do intervalo de confiança, em que se observou menor dispersão no grupo de crianças riníticas e maior no grupo controle em todas as análises realizadas, demonstrando maior variação dos valores neste último grupo, considerando os valores mínimos e máximos em mm.
Além disso, pode-se pensar, com esses dados, que, possivelmente, a correlação entre as variáveis de amplitude de abertura e as velocidades de abertura e fechamento mandibular aumente na ocorrência de valores mais discretos nestas variáveis, fato observado no grupo com rinite alérgica. Os achados também podem estar relacionados a alguns fatores limitantes da pesquisa, como o fato de a amostra utilizada ser de caráter não probabilístico, o número de sujeitos participantes ter sido pequeno, além da não avaliação prévia das alterações estomatognáticas dos pacientes estudados, surgindo a importância desta em estudos futuros envolvendo a rinite alérgica. Sugere-se também, em estudos posteriores, a investigação da presença de sinais e sintomas da disfunção temporomandibular, considerando indícios que mostram possíveis modificações existentes nos movimentos mandibulares na fala diante dessa patologia.
Foi possível evidenciar que não houve diferença estatística significativa entre os movimentos mandibulares na presença e na ausência da rinite alérgica, considerando as variáveis estudadas, revelando que a amplitude de abertura de mandíbula e a velocidade dos movimentos mandibulares durante a fala possuem valores semelhantes entre crianças com e sem rinite alérgica. Apesar disso, foi encontrada correlação significativa entre essas variáveis do movimento mandibular, com um nível de correlação maior no grupo de crianças com rinite alérgica.
Observou-se também que as crianças sem rinite alérgica apresentaram maior heterogeneidade nos valores das variáveis estudadas do que as crianças riníticas.
Tais resultados podem indicar a íntima relação entre a dinâmica mandibular e o equilíbrio do sistema estomatognático e fornecem informações adicionais à prática clínica sobre mudanças funcionais orofaciais secundárias à rinite alérgica.