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Não utilização de consultas de rotina na Atenção Básica por pessoas com hipertensão arterial

Não utilização de consultas de rotina na Atenção Básica por pessoas com hipertensão arterial

Autores:

Mayckel da Silva Barreto,
Raquel de Deus Mendonça,
Adriano Marçal Pimenta,
Cristina Garcia-Vivar,
Sonia Silva Marcon

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561

Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.3 Rio de Janeiro mar. 2018

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018233.12132016

Introdução

A hipertensão arterial sistêmica (HAS), doença com elevada prevalência na população adulta e idosa, apresenta gênese multifatorial, caráter crônico insidioso e evolução oligo/assintomática, o que contribui para o diagnóstico tardio e para a não adesão do indivíduo ao tratamento, incluindo a não utilização de consultas de rotina e atividades em grupo ofertadas na Atenção Básica (AB)1,2. Entre os principais fatores predisponentes para a não utilização de consultas estão baixo nível socioeconômico3, sexo masculino4, idade mais jovem4, pior auto percepção de saúde4, esquecimento5 e características relacionadas a assistência à saúde, como o tipo de serviço utilizado (SUS/não SUS)4.

Por sua vez, a não utilização das consultas de rotina pode se associar ao surgimento e a manutenção da baixa adesão ao tratamento medicamentoso6 e do descontrole pressórico7, os quais podem acarretar crises hipertensivas8 e complicações cerebrovasculares, como acidente vascular cerebral e infarto agudo do miocárdio9. Tais intercorrências são situações que requerem atenção de urgência e de maior complexidade, desencadeiam hospitalizações, elevados custos aos cofres públicos e intenso sofrimento ao indivíduo e sua família7-10, além de constituírem as principais causas de mortalidade no mundo11.

Estudos anteriores demonstraram que o comparecimento regular às consultas de rotina nos serviços de AB apresenta correlação positiva com a adesão ao tratamento farmacológico e não farmacológico, favorecendo o melhor controle da doença2,7,12. Ademais, o controle pressórico é mais elevado entre os usuários regularmente acompanhados na AB e pelas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), em comparação com outros modelos de atenção a saúde13.

Nesse sentido, a assistência prestada ao indivíduo, por meio de consultas médicas de rotina, permite ao profissional de saúde conhecer aspectos concretos da vida do paciente que influenciam diretamente sobre o tratamento farmacológico e não farmacológico, como, por exemplo, os efeitos adversos da medicação, os hábitos de vida, o grau de apoio familiar e também o controle da pressão arterial. Ao se valorizar esses aspectos, os profissionais podem identificar as lacunas existentes entre a educação ofertada e o autocuidado realizado, reforçando a cada encontro, se necessário, os objetivos e metas a serem alcançados para promover hábitos de vida saudáveis, essenciais para controle da doença10.

Apesar de se reconhecer a importância das consultas de rotina, disponíveis na AB mediante procura espontânea, para o adequado controle da pressão arterial, e de constar nos “Cadernos de Atenção Básica – HAS do Ministério da Saúde” que o paciente, sem riscos adicionais, deve minimamente comparecer às consultas médicas a cada seis meses14, a realidade na prática assistencial brasileira é marcada por uma baixa utilização dos serviços de saúde de maneira regular e preventiva por parte dos usuários15. Isto suscita o surgimento dos seguintes questionamentos: 1) fatores sociodemográficos se associam a não utilização de consultas médicas disponíveis na AB por pessoas com HAS?; 2) as pessoas que não utilizam as consultas disponíveis na AB têm maiores chances de não aderirem à farmacoterapia, apresentarem pior controle pressórico e de serem hospitalizadas em decorrência de complicações da doença?

Conhecer o perfil dos indivíduos com HAS que não utilizam as consultas disponíveis na AB permitirá desenvolver ações concretas que incrementem a busca e utilização de consultas e demais atividades desenvolvidas nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), favorecendo a promoção da saúde e a prevenção de agravos. Desta forma, diante da importância do tema para a saúde pública, delineou-se como objetivos do estudo identificar, entre pessoas com hipertensão arterial, os fatores sociodemográficos associados a não utilização de consultas médicas de rotina disponíveis na Atenção Básica e verificar se a não utilização das consultas interfere na não adesão à farmacoterapia, no descontrole pressórico e na hospitalização.

Métodos

Estudo transversal, analítico, realizado junto a pessoas com HAS, em tratamento ambulatorial na AB, no município de Maringá, Paraná, Brasil.

Maringá, município médio-grande planejado e de urbanização recente, em 2013 apresentava Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de 0,808 – considerado muito alto – e contava com a terceira maior população do estado, aproximadamente 350.000 habitantes, dos quais mais de 40.000 possuíam HAS e estavam cadastrados nas UBS.

Por ocasião da coleta de dados, o município possuía 25 UBS e 65 equipes da ESF, o que conferia uma cobertura de 75% da população por esta estratégia. Para os fins desta pesquisa, utilizou-se, por conveniência, a área de abrangência das 23 UBS localizadas no perímetro urbano. O tamanho da amostra foi calculado com base no total de pessoas com HAS cadastradas no município (40.073). Considerou-se que 50% das pessoas pudessem apresentar a característica de interesse (não utilização das consultas); erro de estimativa de 5%; e intervalo de confiança de 95%. Foi acrescentado mais 10% para possíveis perdas, resultando em uma amostra de 422 indivíduos selecionados de forma aleatória e estratificada, com distribuição proporcional ao número total de pessoas com HAS cadastradas em cada UBS.

Para tanto, inicialmente se identificou o número de indivíduos com HAS em cada estrato (UBS). Em seguida, se calculou o peso relativo de cada estrato no conjunto total da população hipertensa do município. Por fim, utilizando-se de um software para o procedimento de amostragem aleatória simples, foram selecionadas as pessoas com HAS de cada UBS, garantindo representatividade proporcional. Por exemplo, na UBS com menor proporção de indivíduos com HAS foram sorteados 09 participantes, enquanto que na UBS com maior proporção foram sorteados 44 participantes. Nos casos em que a pessoa sorteada não atendia aos critérios de inclusão ou se negava a participar da pesquisa, automaticamente a próxima da lista era convidada a participar do estudo, repetindo-se esta operação por até três vezes.

Os critérios de inclusão do estudo foram: ter idade igual ou superior a 18 anos e ter iniciado tratamento medicamentoso há, no mínimo, um ano. Foram excluídas 17 pessoas, duas mulheres que fizeram uso dos fármacos anti-hipertensivos durante a gestação, mas que, no momento da entrevista, já não era mais indicada sua utilização, e 15 indivíduos com diagnóstico psiquiátrico de transtorno mental em fase aguda, porque, devido às próprias características da doença, podiam não aderir à terapêutica e às consultas médicas.

Após o levantamento, nas UBS, dos endereços e telefones dos indivíduos sorteados, procedeu-se à coleta de dados propriamente dita, que ocorreu durante os meses de dezembro de 2011 a março de 2012, nos domicílios, por meio de entrevista semiestruturada. Também houve consulta ao prontuário para o levantamento de informações referentes aos cinco últimos valores pressóricos registrados.

As variáveis de estudo, escolhidas e ordenadas com base no modelo teórico, estão apresentadas na Figura 1. Considerou-se que a não utilização das consultas médicas de rotina podiam sofrer influência das características demográficas e econômicas das pessoas e do tipo de serviço de saúde utilizado3,4. Ao mesmo tempo, a não utilização das consultas podiam ocasionar baixa adesão ao tratamento farmacológico, descontrole pressórico e hospitalizações2,8. Dessa forma, durante a análise dos dados, a não utilização das consultas médicas disponíveis na AB ora foi considerada como variável dependente, ora como variável de exposição.

Figura 1 Possíveis fatores associados a não utilização das consultas de rotina entre indivíduos com hipertensão arterial e suas consequências no cuidado. 

A partir do autorrelato do entrevistado, considerou-se não utilização das consultas quando o indivíduo referiu não ter comparecido nos últimos seis meses, no mínimo, a uma consulta médica de rotina na AB, conforme recomenda os Cadernos de Atenção Básica – HAS do Ministério da Saúde14. As variáveis independentes foram sexo (masculino, feminino); raça/cor (branco, não branco); estado civil (com companheiro, sem companheiro); idade (< 60 e ≥ 60 anos); presença de comorbidades crônicas (não, sim); escolaridade (< 8 e ≥ 8 anos); classe econômica (A/B e C/D/E); tipo de serviços de saúde que utiliza (apenas SUS/ SUS e privado); não adesão à farmacoterapia; descontrole pressórico e hospitalização.

A classe econômica foi definida com base nos Critérios de Classificação Econômica do Brasil (Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa – ABEP) que tem por referência a escolaridade e os bens de consumo. Sua utilização estima o poder de compra das pessoas e famílias. Neste estudo as oito classes possíveis (A1-A2-B1-B2-C1-C2-D-E) foram agrupadas em dois tipos A/B (alto poder aquisitivo) e C/D/E (baixo poder aquisitivo).

A não adesão à farmacoterapia foi medida pelo Questionário de Não-adesão de Medicamentos da Equipe Qualiaids (QAM-Q), desenvolvido para abordar o ato (se o indivíduo toma e o quanto toma de seus medicamentos), o processo (como ele toma o medicamento no período de sete dias), e o resultado da adesão (no caso, se a PA estava controlada)16. As respostas resultaram em uma medida composta, sendo considerados aderentes somente os indivíduos que relataram ter tomado, de modo adequado, de 80% a 120% das doses prescritas e cuja pressão arterial estava normal na última aferição (desfecho clínico).

A classificação dos valores pressóricos se baseou em diretrizes nacionais2 e internacionais9. Foi considerado como hipertenso não controlado, o indivíduo que, segundo o prontuário, no intervalo máximo de um ano, apresentou, em três das cinco últimas aferições, valores de pressão arterial sistólica (PAS) superiores a 140 mmHg e/ou de pressão arterial diastólica (PAD) superiores a 90 mmHg.

A hospitalização, variável dicotômica (sim/não), também foi autorrelatada pelos entrevistados, sendo considerada, para fins deste estudo, apenas as hospitalizações que ocorreram no ano anterior ao da entrevista e que houvesse decorrido de complicações e/ou agravos da HAS.

As informações foram digitadas em planilha do Excel for Windows 2010® e, posteriormente, analisadas estatisticamente com auxílio do software STATA/SE® versão 12 (Stata Cora, College Station, TX, USA). A associação das variáveis independentes, com a não utilização das consultas médicas na AB, foi estimada pela Odds Ratio (OR) com os respectivos Intervalos de Confiança (IC) de 95%, por meio de regressão logística ajustada em modelo multivariado. Para verificação da associação entre não utilização de consultas de rotina e não-adesão à farmacoterapia, descontrole pressórico e hospitalização, ajustou-se o modelo multivariado também por meio da técnica de regressão logística, tendo como potenciais fatores de confusão as características sociodemográficas, presença de comorbidades, status econômico e tipo de serviço de saúde utilizado.

O estudo observou as diretrizes da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, vigente à época da coleta de dados, e foi aprovado pelo Comitê Permanente de Ética em Pesquisas com Seres Humanos da instituição signatária.

Resultados

Do total de 422 entrevistados, 47 (11,1%) relataram não ter utilizado, mediante procura espontânea, consultas médicas disponíveis na AB nos seis meses anteriores a entrevista. A maior parte deles era do sexo masculino (OR: 2,78; IC95%: 1,45-5,32), de cor não-branca (OR: 3,6; IC95%: 1,83-7,08) e utilizava apenas os serviços do SUS (OR: 2,03; IC95%: 1,01-4,08) (Tabela 1).

Tabela 1 Distribuição dos fatores associados a não utilização de consultas na Atenção Básica por pessoas com hipertensão arterial. Maringá, PR, Brasil, 2012. 

Característica Total Utilização de consultas OR (IC95%)* OR (IC95%)* Multivariado

Sim Não

n % n % n %
Sexo
Feminino 251 59,5 233 62,1 18 38,3 2,64 (1,42 – 4,93) 2,78 (1,45 – 5,32)
Masculino 171 40,5 142 37,8 29 61,7
Raça/cor
Branco 296 70,1 274 73,1 22 46,8 3,08 (1,66 – 5,71) 3,60 (1,83 – 7,08)
Não-branco 126 29,9 101 26,9 25 53,2
Estado civil
Com companheiro 291 69,0 260 69,3 31 66,0 1,17 (0,61 – 2,22) 1,09 (0,55 – 2,17)
Sem companheiro 131 31,0 115 30,7 16 34,0
Idade
< 60 anos 157 37,2 143 38,1 14 29,8 1,45 (0,75 – 2,81) 1,94 (0,89 – 4,21)
≥ 60 anos 265 62,8 232 61,9 33 70,2
Presença de comorbidade
Não 164 38,9 151 40,3 13 27,7 1,76 (0,90 – 3,45) 1,91 (0,95 – 3,86)
Sim 258 61,1 224 59,7 34 72,3
Escolaridade
< 8 anos 326 77,2 290 77,3 36 76,6 1,04 (0,51 – 2,14) 2,39 (0,89 – 6,39)
≥ 8 anos 96 22,8 85 22,7 11 23,4
Classe econômica
A/B 119 28,2 108 28,8 11 23,4 1,32 (0,65 – 2,70) 1,38 (0,57 – 3,35)
C/D/E 303 71,8 267 71,2 36 76,6
Tipo de serviço de saúde
SUS e Privado 176 41,7 163 43,5 13 27,7 2,01 (1,03 – 3,93) 2,03 (1,01 – 4,08)
Apenas SUS 246 58,3 212 56,5 34 72,3

*OR: Odds Ratio e IC: Intervalo de Confiança.

Na Tabela 2 é possível verificar que há maiores chances de não adesão ao tratamento medicamentoso (OR: 2,93; IC95%: 1,50-5,73) e descontrole pressórico (OR: 6,23; IC95%: 2,74-14,19) entre os indivíduos que não utilizaram as consultas de rotina disponíveis na AB.

Tabela 2 Consequências associadas a não utilização de consultas na Atenção Básica por pessoas com hipertensão arterial. Maringá, PR, Brasil, 2012. 

Variáveis Utilização de consultas OR (IC95%)* OR (IC95%)* Multivariado

Sim Não

n % N %
Modelo 1
Não adesão farmacoterápica (n=180) 148 39,5 32 68,1 3,27 (1,71 – 6,25) 2,93 (1,50 – 5,73)
Modelo 2
Descontrole pressórico (n=176) 152 43,7 35 81,4 6,45 (2,91 – 14,32) 6,23 (2,74 – 14,19)
Modelo 3
Hospitalização (n=116) 95 25,3 21 44,7 2,38 (1,28 – 4,43) 1,84 (0,95 – 3,56)

*OR: Odds Ratio e IC: Intervalo de Confiança. Modelos ajustados por sexo, raça/cor, idade, estado civil, classificação econômica, presença de comorbidades, escolaridade e tipo de serviço de saúde.

Discussão

Os resultados deste estudo permitiram verificar que, apesar de ter sido baixa a prevalência de não utilização das consultas de rotina, homens, indivíduos de cor não branca e que utilizavam apenas os serviços do SUS, apresentaram maior chance de não buscarem este tipo de atendimento na AB. Pessoas com tais características necessitam de um olhar diferenciado dos profissionais de saúde, a fim de que possam ser estimuladas a procurarem por consulta médica de forma espontânea e preventiva, com o intuito de acompanhar sua condição de saúde e, assim, ter suas necessidades de saúde melhor compreendidas e atendidas. Isso é relevante porque aqueles que não utilizaram as consultas médicas tiveram maior chance de não aderir à farmacoterapia e de apresentar descontrole pressórico.

Corroborando com a elevada porcentagem de indivíduos com HAS que referiram ter utilizado consultas médicas de rotina na AB neste estudo, dados de uma pesquisa nacional mostraram que dos 257.816 brasileiros entrevistados, 70,6% havia procurado ao menos uma consulta médica no último ano, estando a HAS associada a um maior número de consultas15. Outra investigação realizada no nordeste do Brasil, junto a 340 indivíduos com HAS, identificou que quase metade foi considerada regularmente acompanhada pela AB, contudo, nesse caso, consideraram-se regularmente acompanhados apenas os pacientes que referiam ter realizado três ou mais consultas de rotina no último ano7.

Todos esses achados reforçam que indivíduos que possuem uma condição crônica, como a HAS, utilizam mais frequentemente os serviços de saúde da AB. Com o crescente envelhecimento populacional e a manutenção de um estilo de vida moderno, marcado pelo sedentarismo, alimentação pouco saudável e elevados níveis de estresse, aumenta-se o número de pessoas com condições crônicas. Assim, ofertar assistência de qualidade a esta parcela populacional se revela, em nosso país, como um atual e importante desafio aos gestores e profissionais de saúde17.

É relevante considerar que, mesmo com baixa frequência, o fato de pessoas com HAS não utilizarem, no mínimo, uma consulta de rotina durante o período de seis meses, configura-se como um importante problema de saúde pública. Essa situação pode ser vista e entendida a partir de dois prismas. Os profissionais de saúde podem estar prestando a assistência em desacordo com os protocolos ministeriais – por excesso de atividades ou por não conferirem a devida importância aos agendamentos de consultas a pessoas com condições crônicas –, o que se reflete em limitada explicação aos pacientes da necessidade de acompanhamento individual e sistemático. Deste modo, as pessoas com HAS, por não estarem suficientemente esclarecidas e convencidas, não reconhecem a necessidade e tampouco buscam pela assistência.

Por outro lado, pode ser que os próprios pacientes, embora devidamente orientados sobre a relevância do comparecimento às unidades de saúde para o adequado acompanhamento de sua doença, podem, por vontade própria ou devido a algum impedimento/problema, deixar de procurar por esse atendimento. Logo, os profissionais de saúde de cada UBS devem buscar compreender os fatores que levam os pacientes com HAS a não utilizarem as consultas médicas de rotina em sua área. Sendo que se considera o fato de que nem todas as UBS do município em estudo adotarem a prática de agendar previamente consultas para pacientes com HAS como uma barreira à utilização das consultas na AB. Por isso, acredita-se que o agendamento prévio das consultas médicas, inclusive com horários alternativos, possa constituir uma das estratégias para se aumentar a presença do paciente nas UBS.

De maneira mais específica verificou-se que os homens tiveram maiores chances de não utilizarem consultas na AB. Isto pode advir do fato de historicamente eles possuírem menor conhecimento sobre a doença, seus agravos e o tratamento, o que propicia seguimentos desviantes da terapêutica proposta, enquanto as mulheres procuram de maneira mais precoce e por mais vezes os serviços básicos de saúde18. Estudo de base populacional realizado no Brasil, dividindo os participantes em “hipertensos” e “não hipertensos”, evidenciou que as mulheres nos dois grupos utilizaram com maior frequência as consultas médicas nos últimos 12 meses15.

A razão para a predominância feminina nos serviços básicos de saúde tem sido amplamente discutida na literatura, sendo caracterizada como um reflexo sociocultural, motivada pelas questões de gênero e também pela forma de organização dos serviços (horário de atendimento, perfil dos profissionais de saúde atuantes e localização geográfica das UBS), o que leva os homens a aderirem menos ao tratamento de condições crônicas19. Esse comportamento também é observado em outros países, como aponta estudo sobre as taxas de consultas entre usuários da rede de AB, no Reino Unido20.

Em relação à cor da pele, pode-se observar que os não brancos estavam mais expostos a não utilização das consultas de rotina, fato possivelmente relacionado a outras características sociodemográficas como, por exemplo, renda, escolaridade e moradia. Estudo realizado com 12.402 brasileiros identificou maior utilização das consultas ambulatoriais entre os brancos21. Enquanto que investigação realizada com 200 indivíduos de baixa renda, em uma capital do nordeste do Brasil, observou tendência crescente de não-adesão ao tratamento anti-hipertensivo, conforme a cor da pele, sendo 46,4% entre os brancos, 67,0% entre os pardos e 80,3% entre os negros5.

Os dados destes estudos, ao evidenciarem a relação entre etnia e adesão ao tratamento/utilização de consultas ambulatoriais, ressaltam a importância de análises mais pormenorizadas das suas associações, tendo em vista a possibilidade de que os negros optem mais frequentemente pelo abandono do seguimento terapêutico, inclusive das consultas médicas. É importante destacar também, que a literatura aponta maior risco para eventos cardiovasculares na população não branca18,22. Logo, a ausência desses pacientes nas consultas agendadas pode aumentar ainda mais o risco deste grupo para a não adesão ao tratamento e o descontrole pressórico.

Os indivíduos que tinham acesso apenas aos serviços de saúde do SUS tiveram maiores chances de não utilizarem consultas médicas de rotina quando comparados àqueles que também tinham acesso a planos de saúde ou consultas particulares. Tal achado, é corroborado por estudos realizados na Colômbia23, Estados Unidos24 e Brasil15. Nesse estudo nacional, por exemplo, os indivíduos com HAS que possuíam acesso a planos de saúde apresentavam quase três vezes mais chance de comparecerem às consultas médicas15. Ademais, já foi identificado que no Brasil os exames preventivos são realizados com maior frequência nos convênios de saúde21. Esse cenário talvez decorra, entre outros fatores, do fato de pessoas com melhores condições financeiras para arcar com os gastos privados de saúde, também tenham maior escolaridade, a qual se associa a melhores índices de utilização de consultas médicas4,21.

A não utilização das consultas de rotina disponíveis na AB é influenciada por vários fatores, conforme supracitado, e como consequência desta situação pode ocorrer a não adesão ao tratamento, aos medicamentos, e descontrole pressórico. Analogamente, investigação realizada nos Estados Unidos, junto a 338 indivíduos com HAS, evidenciou que a maior periodicidade de consultas médicas acarretava melhor conhecimento sobre o tratamento e também adequado controle da pressão arterial25. Esta situação parece indicar que a maior preocupação dos indivíduos hipertensos com seu estado de saúde, bem como o acesso e o vínculo com os serviços de saúde e seus profissionais, geram maior conhecimento sobre a condição crônica, o que pode contribuir para um melhor cumprimento da terapia anti-hipertensiva. Logo, acesso aos serviços de saúde e consultas médicas devem ser garantidos aos usuários, visando minimizar os riscos da não adesão ao tratamento25.

Ademais, percebe-se que a utilização mais frequente de consultas médicas pelos pacientes ocupa lugar de destaque entre os preditores do controle pressórico19. A presença do paciente na unidade de saúde é determinante para o adequado manejo da HAS, pois traz motivação individual e esta, por sua vez, leva a atitudes que contribuem para a redução da PA. Destaca-se também que consultas frequentes propiciam melhor monitorização dos níveis pressóricos, assim como a oportunidade de ter mais acesso a informações, que servem de alicerce para o fortalecimento da adesão à terapêutica19,26.

Estudo realizado no nordeste brasileiro evidenciou que o comparecimento dos indivíduos com HAS às consultas de rotina na AB representava fator de proteção para o adequado controle da pressão arterial7. Enquanto que um estudo de coorte conduzido na Alemanha junto a 410 indivíduos com HAS identificou que, após um ano de acompanhamento por meio de consultas de rotina na AB, o controle pressórico dos pacientes passou de 59% para 74%27. Assim sendo, considera-se que o adequado acompanhamento aos indivíduos com HAS reflete-se diretamente na adesão ao tratamento medicamentoso e não medicamentoso, o que, por sua vez, tem potencial para controlar adequadamente os níveis pressóricos.

Entretanto, cabe ressaltar que o trabalho para a adesão ao tratamento medicamentoso e o incremento das medidas não-farmacológicas não podem se restringir às consultas médicas. Com base na prática clínica e nas evidências da literatura19,23, acredita-se que somente a presença dos indivíduos nas consultas não seja suficiente para a adesão ao tratamento e para a redução dos valores da PA. Nesta perspectiva, estudo realizado na Colômbia evidenciou que os indivíduos com HAS valorizavam o método de trabalho aplicado, as atividades desenvolvidas na unidade de saúde, a qualidade da assistência prestada e a qualidade das relações interpessoais e comunicacionais estabelecidas entre profissional e paciente, como principais fatores que impulsionavam a fidelização dos pacientes às consultas23.

Neste sentido, para aumentar as taxas de utilização das consultas de rotina na AB, os profissionais de saúde devem considerar, durante a atuação prática, os aspectos supracitados. A adoção de práticas centradas nos usuários requer a incorporação de atitudes relacionais, como o acolhimento e o vínculo. Ouvir as necessidades dos pacientes faz com que os profissionais de saúde ampliem a capacidade de atendimento e de resolutividade da assistência prestada. Para tanto, a formação do vínculo com os usuários pode ampliar a efetividade das ações de saúde e favorecer sua participação durante a prestação da assistência. Isto lhe propicia exercer seu papel de cidadão, com autonomia, respeito aos direitos de fala, argumentação e escolha, além de permitir sua integração na manutenção de sua saúde e redução dos agravos7.

De fato, as evidências sugerem que o correto seguimento terapêutico diminui a mortalidade, o número de consultas de emergência, de internações e promove o bem-estar do paciente, melhorando, deste modo, sua qualidade de vida e a de sua família3. Ademais, mundialmente se discute a produção e manutenção de sistemas de saúde que sejam financeiramente sustentáveis, com foco na diminuição dos custos médico-hospitalares1. No Brasil, anualmente, o sistema de saúde contabiliza, em média, um milhão de internações por doenças do aparelho circulatório, com um custo aproximado de um bilhão e 800 milhões de reais14. Quando se investe em atividades preventivas e promotoras da saúde, por exemplo, as consultas programadas, e quando a população tem acesso aos serviços básicos de saúde, que apresentam desempenho satisfatório, reduz-se consideravelmente o número de hospitalizações por condições sensíveis à AB, entre elas os agravos das condições crônicas28.

A despeito das possíveis limitações desta investigação cabe destacar que a principal delas se relaciona ao fato de o município em estudo ser médio-grande e do interior da região Sul do país, o que limita a extrapolação das informações e exige cautela na comparação de seus achados. A não utilização das consultas médicas, em outras realidades, pode estar associada a outros fatores e desencadear outras consequências. Ainda, é importante destacar que o estudo foi realizado com pessoas com HAS cadastradas nas UBS. Deste modo, aquelas cujo tratamento era realizado só na rede privada não foram incluídas. Os achados, portanto, se circunscrevem a população de pessoas com HAS cadastradas no SUS do município. Por fim, acredita-se que o elevado percentual de indivíduos que referiram ter utilizado consultas pode decorrer do fato de a informação ter sido autorrelatada, consistindo em um possível viés do estudo, já que o pesquisado pode ter respondido aquilo que acreditava que o pesquisador desejava ouvir como resposta.

Mesmo diante destas limitações o estudo agrega conhecimento a área da saúde pública. Em síntese, evidenciou-se que a não utilização das consultas médicas disponíveis na AB esteve associada a fatores como: sexo masculino, cor da pele não branca e utilização exclusiva dos serviços públicos de saúde. E ainda, aqueles que não utilizam as consultas apresentaram maiores chances de não aderirem ao tratamento medicamentoso e de estarem com a PA descontrolada. Esses achados trazem implicações diretas para a prática assistencial, uma vez que o correto seguimento do paciente pode prevenir o surgimento de agravos e complicações relacionados à doença. Aponta-se para a necessidade de os profissionais de saúde estabelecerem estratégias para estimular a procura e utilização das consultas disponíveis na AB por pessoas com HAS e que especial atenção seja dada aos indivíduos do sexo masculino.

Neste sentido, devem-se elaborar estratégias de intervenção como, por exemplo, campanhas para os homens, relacionada ao câncer de próstata, com priorização dos homens com HAS, já que este tipo de campanha parece ter um impacto positivo na sensibilização de triagem e prevenção de doenças. Sendo assim, os profissionais de saúde da AB, devem estar instrumentalizados e sensibilizados para atuar junto à população com HAS, com o intuito de, na medida de suas possibilidades, aumentar a frequência às consultas e, por conseguinte, a adesão ao tratamento medicamentoso e melhorar o controle pressórico. Isso terá um impacto positivo no gasto sanitário, já que prevenção é menos onerosa que a atividade curativa.

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