versão impressa ISSN 1414-8145versão On-line ISSN 2177-9465
Esc. Anna Nery vol.21 no.3 Rio de Janeiro 2017 Epub 17-Ago-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0080
A dimensão do fenômeno consumo de drogas nos centros urbanos brasileiros traz para dentro das famílias o medo, a insegurança e a sensação de impotência diante da situação. A experiência de viver em um “ambiente de uso de drogas” afeta as pessoas que compõem o grupo familiar nos aspectos psicológico, financeiro e social e nessas famílias encontram-se como evidências desse impacto o isolamento e a vulnerabilidade social, a sobrecarga familiar e adoecimento dos membros familiares ascendentes e descendentes do usuário de drogas.1-3
O abuso de drogas tem profundo impacto em todas as dimensões sociais e afeta não só o usuário, mas também todos os elementos do núcleo familiar de uma forma afetiva, econômica e social, na medida em que implica um elevado gasto econômico para aquisição da droga e desgasta os afetos e relacionamentos interpessoais e familiares.4 A dependência química atinge o usuário e o sistema familiar, todavia, o tratamento dessa condição, geralmente, é centrado no usuário, com a família em segundo plano.5
Recente estudo de base populacional sobre o consumo de risco de bebida alcoólica - entendido como aquele que pode levar à dependência e a problemas sociais, econômicos e de saúde - e fatores associados e diferenciais entre homens e mulheres mostrou a prevalência de consumo de risco de álcool de 9,5% no território estudado e sinais de dependência e de problemas decorrentes do uso de bebida alcoólica maior em homens.6 No entanto, o consumo de álcool e/ou de outras drogas por mulheres tem sido crescente nas últimas décadas e a presença do consumo de álcool é identificada com crescimento linear.7,8
As mulheres tendem a omitir o consumo de drogas, temendo represálias sociais e estigma e permanecem no anonimato, gerando subnotificação e exclusão nos sistemas de saúde e social.7 Geralmente, elas “demonstram” o seu vício por meio de outros sinais, como depressão e irritabilidade9 e podem ser encontradas em delegacias, cadeias e prisões, devido aos crimes relacionados com a droga ou em hospitais, após envolvimento com atos violentos ou por necessidade de cuidados de saúde para condições relacionadas ou não ao abuso de drogas e em serviços fechados para tratamento da dependência química, em casos graves de dependência.10
A sociedade, de um modo geral, marginaliza os usuários de drogas pela atribuição de estereótipos negativos associados à doença e o adoecimento pelo uso de drogas por mulheres continua a ser um tema tabu, em uma “conspiração de silêncio”, na qual se evita falar das necessidades e angústias que envolvem essas experiências. A problemática do uso de drogas e as repercussões na vida familiar de mulheres, pelo forte elo à saúde materno-infantil, rompem as fronteiras familiares e tornam-se foco primordial para a prática da enfermagem enquanto profissão do cuidado.11,12
A dificuldade para o estabelecimento de uma clínica de enfermagem para a mulher usuária e sua família é proporcional à produção científica sobre a temática de abuso de múltiplas drogas e família: o foco principal está direcionado às repercussões na saúde e nas relações sociais e familiares de homens usuários, pela exuberância epidemiológica da diferença de casos entre os sexos e, as investigadas, geralmente, são suas mães, irmãs e esposas.11-13
Nesse contexto, o presente estudo foi conduzido para a discussão de pontos singulares na trajetória de vida de uma família de mulher usuária de drogas, visto a escassez de estudos sobre o impacto do abuso e as repercussões das drogas na convivência familiar.11 Colocou-se como questão para o estudo que usuários de drogas apresentam uma trajetória social descendente e que o núcleo familiar em que essa pessoa vive tem influência e é influenciado pela consolidação de sua dependência e, para a mulher, essa situação é mais preocupante, considerando a invisibilidade do problema relacionado ao abuso de drogas na população feminina. Assim, esse trabalho torna-se relevante, pois permite dar visibilidade ao fenômeno do uso de drogas, possibilitando pensar estratégias de ações articuladas e focadas no contexto da saúde da mulher.
Considerando a relevância da narrativa como ferramenta para apropriação da vivência familiar de doenças crônicas,14 para responder a questão da pesquisa, foi elaborado o objetivo: apreender as repercussões do uso de drogas na convivência de uma família, a partir da narrativa da filha de mulher usuária de múltiplas drogas.
Trata-se de estudo de caso com abordagem qualitativa15 e desenvolvido com uma família residente em um município da região norte do Paraná, constituída, no momento da abordagem para a construção do caso, por seis pessoas: a mãe; o pai; dois irmãos; uma filha e um neto. Por conta do agravamento da dependência de drogas, a mãe não reside mais com a família.
A história de vida que descreveremos foi narrada pela filha de usuária de múltiplas drogas há vários anos, observadora e informante das relações familiares, convidada a participar do estudo e que atestou sua concordância através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, codificada como “F1”. A mãe foi registrada em um centro de informação e assistência toxicológica denominado Centro de Controle de Intoxicações do Hospital Universitário Regional de Maringá, durante sua internação na Unidade de Pronto Socorro. O caso foi selecionado para o presente estudo por ser o único caso de mulher, internada após ocorrência de trauma físico associado à intoxicação por abuso de múltiplas drogas, com vínculo familiar, registrado entre abril e setembro de 2014 no referido serviço.
O referencial da história oral tem como objetivo apreender e registrar experiências e vivências de pessoas e grupos que estão dispostos a testemunhar ou que são convidados para, pela fala, transformar sua experiência em documentos escritos. Em sua vertente temática, parte de um assunto específico e, por sua objetividade, as particularidades da história pessoal de quem narra somente interessam na medida em que se identificam aspectos que podem ser úteis à informação temática central.14,16 Nesse sentido, o referencial da história oral temática foi utilizado como método de apreensão da narrativa da filha.
A coleta de dados envolveu: análise documental, com compilação de registros da Ficha Epidemiológica de Ocorrência Toxicológica do Centro de Controle de Intoxicações, que contém dados de identificação do indivíduo intoxicado, da ocorrência toxicológica, do tratamento realizado, da evolução clínica e do desfecho do caso, com o objetivo de facilitar o acompanhamento diário dos casos; abordagem telefônica, com vistas à sensibilização da família para sua participação na pesquisa e autorização para transformar sua experiência em documento escrito, bem como para a indicação de um membro para o depoimento e confirmação do endereço predial da família; entrevista narrativa semiestruturada, com roteiro para contextualização e caracterização da usuária, da filha e da família, com questões relacionadas a dados socioeconômicos e demográficos, e a questão geradora: “Como foi para você e sua família conviver com o uso de drogas por sua mãe?” e compilação do diário de campo utilizado como apoio para registro da percepção do pesquisador sobre o contexto social, relações, comportamentos, questionamentos e emoções.17
A narrativa, como recurso metodológico para a pesquisa, constitui-se como instrumento favorável para a compreensão da memória e da história do sujeito envolvido na investigação proposta.18 No campo da enfermagem, a narrativa e a hitória oral temática, como métodos científicos, buscam a elucidação de experiências vividas sob diferentes contextos e permitem compreender a construção de processos de cuidado, de formação, de vida e comunidade assistida pela enfermagem.14
O primeiro contato com a família foi realizado durante a internação da mãe no Pronto Socorro - PS. Os dados clínicos do evento de intoxicação por abuso de múltiplas drogas e do trauma físico, compilados da ficha de atendimento do PS e a história da ocorrência, que resultou na internação hospitalar, por relato de um acompanhante não familiar, foram registrados na Ficha Epidemiológica de Ocorrência Toxicológica. Após 48 dias da alta hospitalar, foi realizado o contato telefônico com a família e a filha foi indicada como informante-chave.
Após a leitura e reconhecimento dos dados da ficha Epidemiológica de Ocorrência Toxicológica, no mês de agosto de 2014, a entrevista com F1 foi realizada, em único encontro, no domicílio da família. Gravada em mídia digital, teve duração de 70 minutos e seguiu os passos: 1. Preparação - exploração do campo de pesquisa; 2. Iniciação - formulação de questões para caracterizar a família; 3. Narração Central - formulação da questão geradora; 4. Fase de perguntas - desenvolvimento de perguntas sobre temas e tópicos trazidos pelo informante e 5. Fala Conclusiva - fechamento da narrativa.19
O tratamento e análise dos dados foi adaptado de Fritz Schütze20 que, além de apresentar a proposta da entrevista narrativa, aponta fases para a sistematização dos dados: transcrição detalhada do material verbal; divisão do texto em material indexado (tem referência concreta a “quem fez o quê, quando, onde e o porquê”) e não-indexado (expressam valores, juízos e toda forma de sabedoria de vida); uso dos componentes indexados do texto para analisar o ordenamento dos acontecimentos; as dimensões não indexadas do texto são investigadas como apreensão/produção do conhecimento, com agrupamento e comparação entre as trajetórias individuais e o contexto.19
A partir de marcadores na narrativa de F1, duas dimensões para análise foram evidenciadas: a) história e trajetória: contextualização dos acontecimentos e b) sentimentos, experiências e reflexões gerados pelos acontecimentos. Além disso, todos os preceitos éticos estabelecidos foram seguidos e o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da Universidade Estadual de Maringá, sob parecer 458.185/2013.
A filha, 19 anos e 11 anos estudados, trabalhava como auxiliar de serviços gerais em um restaurante, com registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social. Apesar de muito jovem, os autores inferiram por meio da observação e registros no diário de campo, que a filha assumiu o “papel materno” e a responsabilidade pelo cuidado familiar. Na adolescência, com 15 anos, teve um filho e frequentava uma igreja católica, localizada próxima a sua residência, uma vez por semana.
Residia, em casa própria, composta por cinco dependências, com o pai, de 51 anos e quatro anos estudados, que trabalhava como ajudante de carga e descarga, com registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social e dois irmãos (uma de 15 e outro de 11 anos), ambos com atraso escolar de três anos e um filho de quatro anos. A renda familiar mensal era de aproximadamente R$ 2.100,00, que correspondia, no período da entrevista, a 2,9 salários mínimos.
Com base nas características da família, pode-se dizer que o perfil é semelhante ao da população geral brasileira, segundo resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que indicou que 74,7% das famílias residem em casa própria e 47,5% têm rendimento mensal per capita de até R$ 678,00, correspondendo a uma renda familiar mensal de aproximadamente R$ 2.000,00.21
No entanto, nessa família, fatores que a caracterizam como família vulnerável chamam a atenção: a) o atraso escolar das crianças, uma vez que o ciclo vicioso da repetência e da evasão escolar pode implicar em menor inserção no mercado de trabalho formal; b) desemprego por parte da mãe; c) menor disponibilidade financeira e, consequentemente, maior vulnerabilidade ao abuso de drogas;22 d) a gravidez na adolescência e o difícil processo de adaptação a essa situação imprevista e inesperada; e) a sobrecarga da filha pela dupla jornada de trabalho e cuidado dos familiares e f) a vizinhança com situações de risco para a iniciação ao uso de drogas, com circulação próxima de drogas percebida pelos pesquisadores que sentiram forte cheiro de maconha ao passarem em frente a uma casa (ao lado), confirmando o relato da filha que afirmou que “sempre usam drogas perto de sua casa”.
A mãe (49), com oito anos de estudo, nunca trabalhou com registro em Carteira de Trabalho e Previdência Social e fazia uso de múltiplas drogas: álcool; tabaco; maconha e crack. Segundo a filha, a mãe faz uso de álcool, tabaco e maconha há 25 anos e, há 10 anos, usa crack.
Não somente aspectos da escolaridade e acesso ao trabalho foram afetados. A filha informou que a mãe apresentava comportamento de risco sexual, com relações fora do casamento, multiparidade e abortos, descontinuidade do vínculo conjugal e saída para situação de rua e gestação de um filho de “pai desconhecido”. Na época da pesquisa, ela estava residindo com um namorado, próximo à casa da família, no entanto, mantinha um padrão de ausência da residência e situação de rua.
O padrão de uso prolongado de múltiplas drogas foi determinante na vida dessa mulher, culminando na desqualificação para o mercado de trabalho, pois nunca conseguiu trabalhar formalmente devido aos efeitos do abuso de drogas. Trata-se de uma mulher adulta que teve sua trajetória de vida determinada pelo uso de drogas.
O padrão de consumo de drogas é uma questão central na vida dos usuários, pois, quando não há controle sobre o consumo, as consequências começam a invadir e afetar várias áreas de sua vida, com piora na qualidade de vida e no relacionamento social, acarretando o estreitamento da convivência social.2 A dependência de múltiplas drogas é uma doença que pode levar a limitações individuais e funcionais, além de outros impactos negativos ao convívio social, seja pessoal ou profissional. Ademais, afeta, significativamente, a saúde e a qualidade de vida dos usuários e de seus familiares.23,24
As mulheres trouxeram mudanças na cultura do uso das drogas, principalmente em relação ao comportamento sexual. A falta de condições financeiras pode levá-las a participar de atividades ilícitas e à prática sexual sem proteção em troca de drogas ou dinheiro, tornando-as sujeitas ao risco de gravidez indesejada e de doenças sexualmente transmissíveis.25
Os registros na Ficha Epidemiológica de Ocorrência Toxicológica apontavam que a usuária foi admitida no Pronto Socorro, transportada pelo Serviço Integrado de Atendimento ao Trauma em Emergência - SIATE, após ter sido encontrada “sentada na calçada” por ter sido vítima de agressão física (com um pedaço de madeira) em um bar próximo a sua residência.
Essa ocorrência foi registrada no Centro de Controle de Intoxicações, tendo como agente tóxico a bebida alcoólica. Os efeitos da intoxicação registrados foram hálito alcoólico e fratura de osso zigomático, como trauma secundário à intoxicação crônica agudizada. A mulher teve alta hospitalar depois de permanecer internada por quatro dias, retornando para a casa no namorado, sem manter contato com os filhos. O trauma foi considerado moderado, porém havia relato de vários episódios anteriores de envolvimento em situações de agressão física.
Embora tenha sido narrado o abuso de múltiplas drogas como padrão de uso de drogas na trajetória de vida, a ocorrência do trauma por agressão física foi associada somente ao uso de bebida alcoólica. O álcool, particularmente, é uma droga que produz um efeito bifásico no ser humano, ou seja, tem ação euforizante e depressora. A principal característica desse consumo é a alteração do estado físico e psíquico, com o surgimento de reações comportamentais que incluem compulsão pela ingestão contínua ou periódica da substância, podendo culminar em situações de violências.24,26
Inicialmente, a narrativa da filha possibilitou a aproximação do contexto de iniciação e continuidade ao uso de drogas. O início do uso se confunde com repetidos episódios de situação de rua, alternando estabilidade, crise e instabilidade, a partir do uso compulsivo de drogas e períodos de abstinência.
A vida dela foi bem bagunçada, a mãe dela a abandonou e ela foi criada pela avó [...] depois de certo tempo a avó se mudou de São Paulo e ela foi morar na rua, na grande cidade. Depois foi morar em abrigo, mas fugiu e voltou para as ruas [...] sofreu muita violência [...]. (F1)
Eu acho que ela começou a usar drogas devido à falta de uma família. Ela usa drogas desde a adolescência. Ela usa crack, maconha, álcool e cigarro. Tem vezes que ela fica semanas sem usar, mas tem vezes que usa todo dia. (F1)
Quando ela bebe, vira uma pessoa muito chata e briguenta. No dia que ela foi internada, ela começou a arrumar confusão, então começaram a partir para cima dela e brigar com ela. Uns falaram uma coisa e outros dizem outras. Eu não sei bem o que aconteceu. Acharam ela caída na rua, desmaiada e levaram para o hospital [...] ela sempre se envolve em brigas, isso aconteceu várias vezes antes. Ela bebe e fica muito chata, então vive arrumando brigas. (F1)
A falta de uma estrutura familiar, marcada pelo abandono dos pais, somada à aproximação com o abuso de drogas pela condição de moradia de rua foram os fatores que contribuíram substancialmente para a iniciação do uso de drogas e as alterações negativas na vida da mãe de F1. A filha relatava determinados eventos da história de vida da mãe como uma forma de justificar e perdoar o uso de drogas, conformando um modelo explicativo sobre o uso das drogas pela mãe, como a infância problemática, os eventos estressores ou traumas na infância, o abandono e o encontro com as drogas.
A complexidade dos fatores que geram o início do uso de drogas e o desenvolvimento da dependência sofrem influências de situações vivenciadas na história pelo indivíduo. Quanto maior o número de experiências desfavoráveis na infância e na adolescência, maior é a proporção de problemas psicossociais na vida adulta.5,27 Além disso, a escassez de suporte social - tratamento de saúde em rede, emprego e apoio para a família - e a dificuldade de acesso e vínculo aos serviços de saúde têm contribuído no agravamento da situação do uso de drogas.28
Sobre a violência na infância e adolescência, como indicador de gravidade do uso de drogas, um número significativo de usuários de drogas, que vivenciou algum evento traumático nos primeiros anos de vida, apresenta precocidade no primeiro uso e na experimentação de diversas drogas em relação a sujeitos que vivenciaram experiências traumáticas somente na idade adulta. Segundo estudos de vertente psicossocial, quanto mais precoce o trauma vivenciado, mais prematuro pode ser o primeiro contato com as múltiplas drogas consideradas “porta de entrada”, como álcool e maconha, ainda que esse efeito possa estar associado igualmente à experimentação de cocaína tipo crack.27,29
A filha narrou a presença de violências e eventos estressores que marcaram negativamente a trajetória de vida de sua mãe e afetaram significativamente a sua família - a alteração comportamental repetida em curtos intervalos pela mãe e sua agressividade e hostilidade, conduzindo à violência intrafamiliar psicológica e física e ao consequente comprometimento da estrutura familiar.
Meu pai a conheceu na rua. Faz uns doze anos que ela é separada do meu pai e ela sempre bebeu [...] eles ficaram juntos somente por causa dos filhos. Eles não têm mais nada juntos, há uns 15 anos, desde quando minha irmã nasceu. (F1)
Meu irmão não é filho do meu pai, ele é de outro relacionamento dela e meu pai pegou para criar. (F1)
Eu sei que o namorado dela também se envolve em brigas por aí [...] eu vi ele na rua e sei que também usa drogas, mas eu nunca conversei com ele. (F1)
A trajetória da família foi marcada por diversos episódios de rompimento da conjugalidade. A narrativa da filha dimensiona que a mãe tem saídas e retornos do ambiente domiciliar e da família como referência segura de moradia. O perfil de uso prolongado, permeado por abstinências e recaídas, com ausência de estratégias de reabilitação, parece determinar a vida afetiva e conjugal da mãe. Três eventos foram relevantes para a descontinuidade do relacionamento com a família: o comportamento agressivo na presença do uso de drogas; recorrência de envolvimento em atos violentos e manobras ilícitas para aquisição da droga.
Antes desse dia (internação no PS), tiveram outras situações [...] muitas outras agressões e internações. Já a vi diversas vezes machucada. Ela sempre arruma briga, não saberia contar quantas vezes ela ficou internada. (F1)
De uns tempos para cá, ela não mora mais com a gente. Só que sempre foi assim: fica um pouco aqui e um pouco na rua, usando drogas [...] eu não sei como ela consegue comprar a droga, mas eu acho que ela rouba. Ela pede dinheiro para o meu pai comprar coisas para ela e para a casa, mas, às vezes, gasta em droga. (F1)
Ela sabe controlar o uso, mas é falta de vergonha [...] ela nunca vendeu nada de dentro de casa [...] eu acho que para ela parar de usar droga, primeiro tinha que querer. Esses dias meu pai quis pagar uma clínica para ela, mas ela não aceitou. Não procuramos ajuda do postinho porque ela não vai. Ajuda ela tem, mas ela que não quer parar, não tem força de vontade, porque no fundo ela sabe que atrapalha a vida dela. (F1)
Estudos com o objetivo de conhecer o significado e as repercussões do uso de drogas por mulheres, a partir de suas histórias de vida, identificaram que essas mulheres sofrem diversos tipos de violência em seu contexto social, o que propicia acontecimentos negativos em suas vidas. No cotidiano das usuárias, a violência social configura-se como um dos elementos que impactam negativamente a saúde dessas pessoas25,28 e a presença de violência anterior podem ser apontados como fatores para a perpetuação do fenômeno.30
A dificuldade econômica em decorrência da drogadição, a dificuldade em manter-se no trabalho e a inevitável ruptura social, leva as usuárias de drogas a utilizarem manobras ilícitas com a família - mentiras recorrentes e roubos - e com a comunidade de convivência - roubo e prostituição. Essas situações são comuns entre os relatos de dependentes químicos, que após o rompimento dos vínculos familiares, passam a viver em situação de rua, em marginalidade e exclusão social.25
Em alguns momentos, houve contradição na narrativa da filha em relação ao uso de drogas pela mãe, pois, ao mesmo tempo que compreende e pretende ajudar a mãe, talvez pelo apoio para o enfrentamento que encontra na religião, a filha não aceita o uso de drogas e os comportamentos de risco da mãe, conduzindo-a a um afastamento, como meio de sobrevivência e proteção das repercussões do uso de drogas pela mãe.
Percebeu-se um sofrimento intenso no relato da filha em relação às condições de vida de sua mãe. Ao afirmar que nunca teve a presença da mãe e que não tem contato com ela, a filha referiu que sofre muito com a situação da mãe, pois não aceita o uso de drogas e acredita que o uso está relacionado somente à sua falta de motivação para cessá-lo, comprometendo ainda mais o relacionamento familiar, por uma culpabilização da mãe pelo abuso de drogas.
Eu cresci vendo minha mãe usar drogas [...] eu não tenho a presença de uma mãe, como eu vejo nas outras famílias por aí [...] eu não tenho a atenção de mãe [...] nunca tive isso. (F1)
Em minha opinião, conviver com o uso de drogas pela minha mãe é muito ruim, porque eu não queria ver ela desse jeito, queria que ela fosse diferente [...] eu não gosto que ela usa drogas, eu sempre sofri com isso [...] os meus irmãos aceitam um pouco mais, mas eu acho que eles também sofrem. (F1)
Faz um ano que ela não mora mais aqui, mas eu sempre a vejo, mas não converso com ela já faz uns cinco meses [...] eu só fiquei sabendo que bateram nela porque os outros vieram me contar. (F1)
Para me sentir melhor diante dessa situação, eu procuro me confortar em Deus e me apego muito ao meu filho. O carinho que eu não tive com ela, eu dou para ele. (F1)
Meu pai é muito fechado e eu nunca pude conversar certos assuntos. Às vezes, ele me dá um apoio [...]. (F1)
Após o último evento traumático, a filha não tentou uma reaproximação, obtendo informações sobre a mãe com familiares e vizinhos. A usuária sempre teve vários conflitos familiares, ocasionando a perda de vínculo com a filha e essa situação se complica a cada novo episódio de agravamento do caso, além disso, não houve mudança no comportamento da mãe após a última hospitalização. As consequências devastadoras do consumo de drogas nessa família contribuíram para o comprometimento do vínculo materno, gerando intenso sofrimento para a filha, que evidencia, com os olhos marejados, a ausência da figura materna em sua trajetória de vida.
Relações familiares saudáveis, desde o nascimento da criança, servem como fator de proteção para toda a vida e essas relações não estão preservadas na família. O vínculo e a interação familiar saudável servem de base para o desenvolvimento pleno das potencialidades dos indivíduos.27 O abuso de drogas não é um fenômeno com consequências apenas para um dos membros da família, mas para todo o grupo familiar, além disso, se dá na perspectiva subjetiva, causando sentimentos negativos, como tensão, estresse, preocupação, estigma, raiva e culpa.
A filha falou sobre as estratégias de enfrentamento diante do uso de drogas pela mãe e foi possível dimensionar a importância da religiosidade, da maternidade e da figura paterna para o ajustamento da família. Esses fatores parecem favorecer uma ótica positiva frente aos problemas enfrentados no cotidiano familiar em decorrência do abuso de drogas pela mãe.
O pai/ex-marido/marido é figura fundamental no processo compreensão e coesão familiar. Ele esteve presente na história de vida da esposa, desde que a conheceu no ambiente de rua, e tem tentado retirá-la das ruas e das drogas, assim como está motivado a buscar ajuda externa à família, para o enfrentamento do uso de drogas, embora a usuária recuse esse tratamento. Ademais, as repercussões no ambiente familiar do abuso de drogas pela mãe fizeram com que o pai assumisse o papel de cuidador e educador dos filhos e do neto. A filha relata que o pai é o “apoio da família”, embora a ausência da figura materna tenha ficado evidente na narrativa.
Os familiares se apoiaram na referência paterna e em entidades religiosas, como rede de apoio informal, isso possibilitou a manutenção dos princípios da instituição familiar, como protetora e responsável por seus membros e o fortalecimento para enfrentar os problemas relacionados ao abuso de drogas no contexto da família. Nesse sentindo, é possível dizer que por mais problemático que seja o uso de drogas para a família, ela consegue encontrar recursos internos para lidar com o problema. Ao escutar a narrativa da filha, ficou evidente que a conversa proporcionou alívio e transmitiu a sensação de acolhimento à filha diante da situação do abuso de drogas de sua mãe.
Apesar de se tratar de caso único, a partir de uma perspectiva individual, o trabalho realizado demonstrou repercussões na estrutura e vivência familiar, em decorrência do longo período de convivência com o abuso de drogas, validando as relações existentes dentro de um contexto familiar mais amplo. Nesse contexto, a narrativa foi construída dialogicamente, para descrever experiências compartilhadas por membros da família. A entrevista, no ambiente domiciliar, possibilitou uma aproximação com o contexto de vida familiar narrado por um de seus membros.
De acordo com as memórias da filha, foi possível perceber os reflexos do uso de drogas no contexto familiar: a convivência da família por longo período com o abuso de drogas; a ausência ou transitoriedade da figura materna no domicílio, com processos de ruptura para situação de rua; o ciclo de rompimento/perdão conjugal dos pais e a presença contínua e apoio do pai.
A singularidade do relato parece desconstruir o paradigma do padrão intergeracional do uso de drogas, de família desestruturada, negligente e causadora da continuidade do uso de drogas, para uma família que poderia ser aliada do cuidado e parceira em um processo de reabilitação, se fosse acessada por políticas públicas inclusivas e inovadoras.
Entre as áreas de conhecimento e as profissões da área da saúde, a Enfermagem destaca-se por desenvolver e produzir atividades relacionadas ao cuidado, à promoção, à prevenção e à recuperação da saúde e o enfermeiro, inserido profissionalmente em todos os níveis de atenção à saúde, tem o importante papel de identificar situações de vulnerabilidade relacionadas ao uso de drogas. Nesse sentido, o enfermeiro, enquanto membro da equipe multidisciplinar de saúde e responsável, em grande parte, tanto por ações de atenção primária à saúde, quanto por ações específicas de saúde mental, deve atuar de forma integral no cuidado com as famílias de usuários de drogas, no sentido de prevenir o agravamento do caso e facilitar o acesso aos dispositivos de saúde e assistência social para o enfrentamento do abuso de drogas na sociedade.