versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.4 São Paulo 2017 Epub 10-Ago-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172017012
O Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal – TEAF refere-se a um conjunto de manifestações decorrentes da exposição pré-natal ao álcool, devido ao consumo materno durante a gestação(1). O termo TEAF engloba diferentes subgrupos clínicos, a depender do quadro de manifestações e do grau de comprometimento, sendo a Síndrome Alcoólica Fetal – SAF o subgrupo mais comprometido desta condição clínica(2,3), caracterizada em função da tríade diagnóstica: (1) déficits no crescimento, (2) características faciais e (3) alterações no Sistema Nervoso Central (SNC), associada sempre à exposição gestacional ao álcool.
Os danos causados pelo álcool comprometem variavelmente diferentes aspectos do neurodesenvolvimento. Nos indivíduos com TEAF, frequentemente são reportados prejuízos nas habilidades de resolução de problemas, abstração e elaboração de conceitos(4), funções executivas, principalmente viso-espaciais(5), prejuízos de memória de trabalho verbal e não verbal(6,7), comprometimento sociocomportamental variável(8,9) e prejuízos significativos nas habilidades sociais e de linguagem que tendem a ser persistentes ao longo da vida(10).
Os prejuízos de linguagem descritos na literatura em estudos com indivíduos com TEAF são bastante heterogêneos, tanto em relação ao tipo, quanto ao grau de comprometimento(11). Tal comprometimento caracteriza-se frequentemente por significativos déficits de compreensão(12-15).. Os estudos que investigaram a produção da linguagem dos indivíduos com TEAF reportaram prejuízos no componente fonológico(15), vocabulário expressivo reduzido para a idade(12,16-19), produção de enunciados vagos, irrelevantes e imprecisos(17); dificuldades na elaboração de conceitos e produção de enunciados ambíguos(13,14), bem como a frequência aumentada de disfluências do tipo hesitação e pausa silente, que reportam dificuldades significativas na organização do esquema narrativo de história e no uso de estruturas sintáticas e semânticas adequadas ao longo da narração(19).
As alterações de linguagem oral, mais especificamente os componentes sintático e semântico, têm sido descritas como as mais afetadas no TEAF(2). Estas alterações foram descritas nos estudos que se detiveram na avaliação da linguagem falada por meio de testes padronizados de linguagem(16) bem como aqueles que priorizaram amostras naturalísticas da linguagem falada, como a narração de história(13,14,17,19).
Estudos com narrativa oral na população com TEAF têm sido conduzidos e mostrado a relevância que o desempenho narrativo tem para discussões prognósticas e, inclusive, para identificar indivíduos com TEAF em idade escolar, a partir de medidas específicas para análise da coerência e coesão narrativa(13). Dentre os aspectos microestruturais da narrativa, erros de regência nominal e de coesão referencial estão entre as dificuldades narrativas recorrentes aos indivíduos com TEAF e que ajudam a diferenciar o desempenho narrativo de seus pares, com desenvolvimento típico(14,20). Além disso, com base em estudo realizado, ao que parece, manifestações do fenótipo do TEAF apresentam associação forte com os erros de coesão referencial observados na narrativa oral desses indivíduos. Na análise dos dados, o aumento de problemas coesivos na narração apresentou associação com a gravidade dos itens diagnósticos específicos investigados (presença de características faciais e de alterações no SNC) pelo sistema “4-Digit Diagnostic Code”(20).
Conforme apresentado, nota-se que, apesar de alguns estudos terem reportado manifestações que sinalizam as dificuldades apresentadas pelos indivíduos com TEAF na narrativa oral, quanto aos aspectos microestruturais da narrativa(13,14,17) e da fluência da linguagem falada(19), pouco ainda se sabe sobre os aspectos que remetem a dimensão macroestrutural e a coerência global da narrativa. Também, apesar da associação entre os aspectos microestruturais (coesão referencial) da narrativa e itens do sistema “4-Digit Diagnostic Code” (características faciais e alterações do SNC) terem sido reportados como parte do fenótipo do TEAF(20), tais achados foram ainda pouco explorados.
Desta forma, o objetivo do estudo foi investigar e comparar a narrativa oral de indivíduos com Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal (TEAF) e de indivíduos com desenvolvimento típico de linguagem (DTL) e correlacionar o desempenho na narrativa oral com a pontuação do “4-Digit Diagnostic Code” (déficit no crescimento, características faciais, alterações no SNC e consumo de álcool na gestação).
Participaram deste estudo 20 indivíduos com diagnóstico de Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal (TEAF) que foram comparados a 20 indivíduos com Desenvolvimento Típico de Linguagem (DTL). Os indivíduos eram semelhantes quanto ao gênero, idade cronológica e nível socioeconômico. Cada grupo (TEAF e DTL) foi composto por 12 indivíduos do gênero feminino (60%) e oito indivíduos do gênero masculino (40%), com idade cronológica entre seis e 16 anos (M=10,7; DP= 3,33). A classificação socioeconômica dos participantes foi semelhante, variando de A2 a D.
Para a classificação diagnóstica dos participantes com TEAF, foi aplicado por geneticista clínico o “4-Digit Diagnostic Code”(21). Trata-se de uma ferramenta desenvolvida pela “University of Washington FAS Diagnostic and Prevention Network” para auxiliar no diagnóstico dos quadros de TEAF. Este instrumento propicia maior precisão do diagnóstico clínico com base em uma escala quantitativa dos sinais de risco, estruturada em função da tríade diagnóstica, acrescentando a confirmação de uso de álcool materno, ou seja: (1) déficits no crescimento; (2) características faciais; (3) alterações no SNC; e (4) consumo de álcool na gestação.
Os critérios de inclusão estabelecidos para os participantes do grupo TEAF foram: (1) apresentar confirmação diagnóstica de TEAF realizada por geneticista clínico; (2) não apresentar histórico de uso de drogas concomitante ao consumo de álcool no período gestacional; (3) apresentar classificação diagnóstica a partir da aplicação do “4-Digit Diagnostic Code”(21); (4) apresentar limiares auditivos dentro dos parâmetros de normalidade, abaixo de 25 dBNA; (5) apresentar inteligibilidade de fala que garantisse ao avaliador o acesso ao conteúdo da narrativa oral (palavras ou enunciados); (6) apresentar amostra de narrativa oral que atendesse aos critérios mínimos estruturais de uma narrativa de história para que pudesse ser avaliada quanto aos aspectos macroestruturais previstos neste estudo.
Adotou-se como conceito de narrativa do tipo história apresentação de um cenário (referência ao espaço, ao tempo e uma introdução aos personagens) e um ou mais episódios. Um episódio formado por três elementos básicos: um problema, as tentativas de resolução do problema e uma consequência do problema(22). Presença de marcadores convencionais que sinalizam o início da história (e.g. Era uma vez...) e sua finalização (e.g. E foram felizes para sempre) e, portanto, um começo, um meio e um final(23) .
Os critérios de inclusão para compor o grupo DTL foram ausência de: (1) sinais clínicos sugestivos de condição sindrômica de etiologia genética ou ambiental (e.g. rubéola, toxoplasmose, álcool, drogas); (2) histórico de alterações psiquiátricas ou neurológicas; (3) alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, cognitivo e de linguagem; e (4) apresentar amostra de narrativa oral que atendesse aos critérios mínimos de narrativa de história.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa-CEP (Processo no 0442/2012) e a participação dos indivíduos foi autorizada mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, pelos pais e/ou responsáveis.
Para eliciar a narrativa oral de história foi utilizado o livro “Frog, where are you?”(24). Este livro é composto por 24 cenas em preto e branco sem escrita. Todas as narrações foram gravadas por meio do software “Praat” (versão 5.2.01), sendo que todas as narrativas foram integralmente transcritas para posterior análise dos aspectos macro e microestruturais adotados neste estudo.
As medidas referentes aos aspectos macroestruturais da narrativa incluíram a presença de elementos estruturais e marcadores linguísticos típicos do esquema de histórias, segundo a Gramática de Histórias(22). As narrativas foram pontuadas e analisadas a partir da presença de informações referentes à cinco elementos estruturais: (1) cenário, (2) tema, (3) enredo, (4) desafios e (5) resolução, segundo proposto por Rossi et al.(25), para estabelecer um escore parcial para cada um dos elementos analisados e um escore global. O escore global da narrativa foi estabelecido a partir da soma dos escores parciais, com possibilidade máxima de 31 pontos.
Para análise da coerência global da narrativa foi utilizada a proposta de Spinillo e Martins(26), que considera como parâmetro de análise a manutenção dos personagens principais, manutenção do tema/tópico ao longo da narração, evento/trama principal ou situação-problema e desfecho. A partir destas informações, as narrativas foram classificadas em quatro níveis crescentes de complexidade que informam o nível de coerência global da história.
Os aspectos microestruturais analisados foram definidos com base nas propostas de Justice et al.(27) e Miller e Iglesias(28), que incluem: medidas de produtividade linguística da narrativa, referentes ao número total de palavras, número total de palavras diferentes e número de unidades comunicativas de palavras; e medidas de complexidade linguística da narrativa, que incluem diversidade lexical, extensão média de unidades comunicativas em palavras e número de unidades comunicativas complexas.
Para fins de análise dos aspectos de produtividade e de complexidade linguística envolvendo enunciados, adotou-se neste estudo a segmentação da narrativa em unidades comunicativas denominadas “Communication Units - C-units”, que corresponde a uma oração principal (sintaticamente independente) e todas as suas dependentes presentes ao longo de toda a amostra(28).
Os dados obtidos foram tratados estatisticamente. Para comparação entre as variáveis de natureza contínua que não atenderam à normalidade, foi utilizado o teste não paramétrico de “Mann-Whitney” para comparação de duas amostras independentes (TEAF e DTL). Para a análise de correlação entre duas variáveis 4 dígitos, foi utilizado o teste de Coeficiente de Correlação de “Spearman” para variáveis ordinais. Adotou-se neste estudo o nível de significância de 5% (0,050), tanto para as análises de comparação quanto de correlação.
O resultado da análise comparativa da narrativa oral dos grupos TEAF e DTL apontou para diferenças estatisticamente significantes entre os grupos, tanto para os aspectos macroestruturais (Tabela 1) quanto para os aspectos microestruturais da narrativa oral (Tabela 2). Nota-se na Tabela 1 que, dentre os elementos típicos de história analisados, apenas os marcadores linguísticos que sinalizam a abertura e o fechamento da história não apresentaram diferença estatisticamente significante entre os grupos. Em relação aos aspectos microestruturais, diferença estatisticamente significante foi encontrada apenas para o item “diversidade lexical” (Tabela 2).
Tabela 1 Comparação do grupo TEAF e DTL nos aspectos macroestruturais da narrativa oral
Aspectos macroestruturais | Grupo | M | DP | Md | Mín. | Máx | p |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Elementos típicos de história | |||||||
Cenário | GA | 3,45 | 0,69 | 3,00 | 2,00 | 5,00 | 0,017* |
GC | 4,25 | 1,12 | 4,00 | 3,00 | 7,00 | ||
Tema | GA | 1,55 | 0,69 | 2,00 | 0,00 | 2,00 | 0,004** |
GC | 2,00 | 0,00 | 2,00 | 2,00 | 2,00 | ||
Enredo | GA | 1,95 | 1,70 | 2,00 | 0,00 | 6,00 | <0,001** |
GC | 4,95 | 1,50 | 5,00 | 2,00 | 8,00 | ||
Desafios | GA | 2,80 | 1,61 | 3,00 | 0,00 | 6,00 | <0,001** |
GC | 5,95 | 1,67 | 6,00 | 3,00 | 8,00 | ||
Resolução | GA | 0,80 | 0,77 | 1,00 | 0,00 | 2,00 | <0,001** |
GC | 1,90 | 0,31 | 2,00 | 1,00 | 2,00 | ||
Marcadores | GA | 0,35 | 0,59 | 0,00 | 0,00 | 2,00 | 0,364 |
GC | 0,50 | 0,61 | 0,00 | 0,00 | 2,00 | ||
Escore global | GA | 10,90 | 4,22 | 11,00 | 4,00 | 18,00 | <0,001** |
GC | 19,55 | 2,19 | 19,00 | 17,00 | 24,00 |
Teste de Man Whitney;
*p<,05;
**p<,005
Legenda: M = Média; DP = Desvio Padrão; Mín. = Mínimo; Máx. = Máximo
Tabela 2 Comparação do grupo TEAF e DTL nos aspectos microestruturais da narrativa oral
Aspectos microestruturais | Grupo | M | DP | Md | Mín. | Máx. | p |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Produtividade linguística | |||||||
Total de Palavras | TEAF | 256,70 | 103,04 | 251,50 | 94,00 | 510,00 | 0,636 |
DTL | 239,50 | 74,27 | 233,00 | 138,00 | 401,00 | ||
Total de palavras diferentes | TEAF | 92,70 | 28,45 | 86,00 | 46,00 | 162,00 | 0,213 |
DTL | 99,75 | 21,63 | 94,00 | 68,00 | 146,00 | ||
Total de “C-Units” | TEAF | 41,10 | 15,94 | 39,50 | 14,00 | 74,00 | 0,490 |
DTL | 38,70 | 11,49 | 36,50 | 21,00 | 62,00 | ||
Complexidade linguística | |||||||
Diversidade Lexical | TEAF | 0,38 | 0,10 | 0,36 | 0,28 | 0,76 | 0,010* |
DTL | 0,43 | 0,07 | 0,41 | 0,28 | 0,55 | ||
Extensão Média “C-Units” | TEAF | 6,37 | 1,07 | 6,64 | 4,85 | 9,50 | 0,298 |
DTL | 6,17 | 0,44 | 6,26 | 5,12 | 6,93 | ||
Nº “C-Units” Complexos | TEAF | 3,65 | 3,42 | 3,50 | 0,00 | 10,00 | 0,191 |
DTL | 5,05 | 3,56 | 4,50 | 0,00 | 14,00 |
Teste de Man Whitney;
p<,05*; p<,005
Legenda: M = Média; DP = Desvio Padrão; Mín. = Mínimo; Máx. = Máximo
Outro aspecto analisado a partir das narrativas orais apresentadas pelos indivíduos do grupo TEAF e do grupo DTL foi a ocorrência de “C-Units” incompletos, que foi superior para o grupo TEAF quando comparado ao DTL (MdGA=4,0, MdGC=0,5, p=0,003).
Quanto à classificação do nível de coerência global da narrativa oral verificou-se que 45% das narrativas do grupo TEAF receberam classificação Nível II e 30% Nível I. Os níveis mais complexos foram observados em apenas 20% (Nível III) e 15% (Nível IV) da amostra. Por outro lado, metade dos indivíduos do grupo DTL receberam classificação Nível III e a outra metade, Nível IV.
A Tabela 3 mostra os resultados das análises de correlação entre os quatro itens que compõem o diagnóstico do“4-Digit Diagnostic Code” (déficit no crescimento, características faciais, alterações no SNC e consumo de álcool na gestação) e os aspectos macro e microestruturais da narrativa oral. Foi possível verificar que os itens “características faciais” e “alterações no SNC” foram os que apresentaram correlação estatisticamente significante, principalmente com os aspectos macroestruturais da narrativa.
Tabela 3 Correlação entre os elementos típicos de história, coerência global da narrativa e as características do “4-Digit Diagnostic Code” apresentadas pelo TEAF
Elementos típicos de história | Déficit no Crescimento | Características Faciais | Alterações no SNC | Consumo de álcool | |
---|---|---|---|---|---|
Cenário | Coef. Correl. (r) | +0,125 | -0,104 | -0,023 | -0,048 |
Sig. (p) | 0,601 | 0,664 | 0,924 | 0,840 | |
Tema | Coef. Correl. (r) | -0,047 | -0,370 | -0,492 | -0,129 |
Sig. (p) | 0,845 | 0,109 | 0,028* | 0,589 | |
Enredo | Coef. Correl. (r) | -0,239 | -0,458 | -0,572 | -0,067 |
Sig. (p) | 0,311 | 0,042* | 0,008* | 0,780 | |
Desafios | Coef. Correl. (r) | -0,034 | -0,123 | +0,083 | +0,264 |
Sig. (p) | 0,888 | 0,605 | 0,728 | 0,260 | |
Resolução | Coef. Correl. (r) | +0,164 | -0,506 | -0,357 | 0,000 |
Sig. (p) | 0,489 | 0,023* | 0,123 | > 0,999 | |
Marcadores | Coef. Correl. (r) | +0,013 | +0,075 | -0,078 | -0,270 |
Sig. (p) | 0,957 | 0,753 | 0,744 | 0,249 | |
Escore global | Coef. Correl. (r) | -0,032 | -0,371 | -0,349 | -0,076 |
Sig. (p) | 0,895 | 0,107 | 0,131 | 0,749 | |
Nível de coerência | |||||
Coerência global | Coef. Correl. (r) | -0,095 | -0,445 | -0,339 | +0,127 |
Sig. (p) | 0,691 | 0,049* | 0,143 | 0,593 |
Correlação de Spearman
p<,05*; p<,005
Legenda: Coef. Correl. (r) = Coeficiente de correlação; Sig. (p) = Valor-p
Destaca-se que as correlações encontradas foram todas de natureza negativa, sinalizando que quanto maior o nível de comprometimento apresentado para o item diagnóstico em questão, pior foi o desempenho apresentado pelos indivíduos nos aspectos macroestruturais analisados. Não foram observadas correlações com significância estatística com as quatro características que compõem o diagnóstico do TEAF (Tabela 3).
Neste estudo, foi proposto investigar e comparar a narrativa oral de indivíduos com Transtorno do Espectro Alcoólico Fetal (TEAF) e de indivíduos com desenvolvimento típico de linguagem (DTL). Os resultados encontrados apontaram para diferenças significativas entre os grupos TEAF e DTL tanto nos aspectos macro (Tabela 1) quanto microestruturais da narrativa oral (Tabelas 2).
As diferenças encontradas nos aspectos macroestruturais investigados foram marcadas por desempenho inferior do grupo TEAF nos escores parciais, atribuídos aos elementos estruturais “cenário”, “tema”, “enredo”, “desafios”, “resolução”, escore global e no nível de coerência global da narrativa (Tabela 1).
É válido destacar que as informações relativas ao cenário são umas das primeiras a serem utilizadas pela criança na narração, possivelmente porque tais informações são apresentadas logo na primeira parte da narração, para situar o ouvinte quanto à noção temporal, de lugar e dos personagens da história. No entanto, esse item apresentou baixa pontuação até mesmo para os adolescentes com TEAF que participaram desse estudo. Assim, uma vez existindo dificuldades para os indivíduos com TEAF apresentarem informações do início da história, era também esperado que fossem encontradas dificuldades nas demais partes da narração, nas quais era necessário apresentar não somente o problema da história, como as ações dos personagens em prol da resolução desse problema, numa sequência lógica e temporal coerente. Tais prejuízos ficaram evidentes não somente pela baixa pontuação apresentada pelos indivíduos com TEAF nos itens “tema”, “enredo”, “desafios” e “resolução”, como na análise global da narrativa para classificação do nível de coerência.
Neste estudo, tanto o grupo TEAF quanto o DTL apresentaram uso restrito de marcadores linguísticos convencionais, principalmente de abertura de histórias. Esse achado justifica a semelhança encontrada entre os grupos para esse item de análise na narrativa, conforme apresentado nos resultados (Tabela 1). Uma possível explicação para esse achado, mas que se aplica apenas ao grupo DTL, pode ser em função da idade dos participantes. Com o passar dos anos, na medida em que o indivíduo alcança níveis mais organizados e complexos de história, esses marcadores podem deixar de ser formalmente usados sem prejudicar a estrutura e coerência narrativa. No entanto, essa mesma especulação não pode ser atribuída ao grupo TEAF, já que os indivíduos apresentaram dificuldades para introduzir e finalizar a narrativa oral e níveis inferiores de coerência.
A respeito do nível de coerência da narrativa, verificou-se que a narração dos indivíduos com TEAF apresentou pouca linearidade temática e dificuldade para sequencializar os eventos narrados, prejudicando, assim, a compreensão da história por parte do avaliador. Conforme apresentamos, a maioria dos indivíduos com TEAF teve suas histórias classificadas nos níveis mais inferiores de coerência (Nível I, 30%, Nível II, 45%). Em contrapartida, metade dos indivíduos do grupo DTL apresentou narrativa categorizada no Nível III (50%) e a outra metade, no Nível IV (50%).
O método de classificação adotado neste estudo (ver Spinillo e Martins(26)) parte do princípio que a coerência é determinada, em grande medida, pela presença e organização dos elementos típicos de história em meio à organização de um tema, assim, considerando que foram encontrados escores narrativos inferiores para os indivíduos com TEAF, também era esperado que apresentassem níveis inferiores de coerência da história, em relação aos seus pares.
Conforme apresentado, este estudo também propôs investigar a correlação entre o desempenho na narrativa oral e a pontuação dos itens que compõem o diagnóstico dos “4-Digit Diagnostic Code” (déficit no crescimento, características faciais, alterações no SNC e consumo de álcool na gestação). As correlações encontradas foram todas de natureza negativa, sinalizando que quanto maior o comprometimento no SNC ou mais evidente os dismorfismos faciais, menor foi a pontuação obtida pelo participante, tanto nos escores para o esquema narrativo quanto ao nível de classificação da coerência da narrativa. As correlações com significância estatística foram encontradas apenas para os elementos estruturais “tema”, “enredo” e “resolução”. Esses elementos são considerados centrais no sistema de classificação do nível de coerência proposto por Spinillo e Martins(26), o que justifica as correlações encontradas.
Quanto aos resultados obtidos na comparação entre os indivíduos com TEAF e com desenvolvimento típico (DTL) nos aspectos microestruturais da narrativa oral de história, foram observados valores inferiores para o grupo TEAF em relação ao grupo DTL nos itens “total de palavras”, “total de C-Units” e “extensão média dos C-Units”. Porém observou-se que os grupos diferiram apenas para diversidade lexical da narrativa (Tabela 2), que é uma medida linguística que estima a proficiência lexical ou a variedade de diferentes palavras faladas pelo indivíduo em unidades comunicativas(17).
Por meio dos dados da diversidade lexical, observou-se que os indivíduos com TEAF apresentaram menor desempenho na proficiência lexical, ou seja, utilizaram palavras diferentes menos frequentes em relação ao total de palavras emitidas quando comparados aos indivíduos com DTL. O repertório semântico reduzido foi descrito em estudos anteriores sobre a linguagem de crianças expostas ao álcool durante a gestação(12,16-19).
Observou-se também que, com o aumento do número de enunciado da amostra, as palavras tendem a se repetir, diminuindo a taxa de diversidade lexical. Esse achado foi observado tanto no grupo TEAF quanto no grupo DTL, o que corrobora estudo realizado com crianças com desenvolvimento típico de linguagem(29).
Outro aspecto analisado a partir das narrações de história apresentadas pelos indivíduos do TEAF e do DTL foi a ocorrência de “C-Units” incompletos. O número de “C-Units” incompletos não é uma medida formal de análise dos aspectos microestruturais, mas uma característica do tipo de enunciado produzido ao longo da narração. Observou-se que essa característica foi recorrente na narração dos indivíduos de ambos os grupos (TEAF e DTL), no entanto em número significativamente superior para o TEAF. Especula-se que a maior ocorrência de enunciados incompletos na narração dos indivíduos com TEAF possa ser um indicativo da dificuldade que os indivíduos frequentemente apresentam no planejamento e elaboração dos enunciados, seja na seleção lexical como na organização semântica das palavras que compuseram o enunciado em curso como de enunciados posteriores, que deveriam estar relacionados entre si de modo a manter o sentido da narrativa.
Prejuízos sintáticos e semânticos têm sido reportados nos estudos que investigaram o desempenho de indivíduos com TEAF, nos testes de linguagem(12,15,16,18) ou nas amostras mais naturalísticas de linguagem, como a narrativa oral(11,13,14,19), uma vez que os indivíduos com TEAF necessitaram de revisões e reformulações dos enunciados ao longo da narrativa oral.
Uma questão importante a ser considerada neste estudo e que pode refletir nos achados referentes aos aspectos microestruturais investigados é o material utilizado para eliciar a narrativa oral. O livro de figuras “Frog, where are you?”(24) favorece produções com sequência lógica e temporal, resultante do repertório semântico visual oferecido pelas figuras. Desta forma, os indivíduos, tanto do grupo TEAF quanto do grupo DTL, apresentaram mais estruturas descritivas ao longo das narrações, com estruturas sintáticas menos complexas, o que acaba por encobrir os aspectos microestruturais que poderiam ou não estar prejudicados.
Outro aspecto investigado neste estudo foi a existência de possível relação entre os aspectos macroestruturais da narrativa oral de história e o nível de comprometimento dos indivíduos com TEAF, a partir dos quatro itens-chave que compõem os critérios diagnósticos do “4-Digit Diagnostic Code”(21). Conforme descrito, quanto maior o número de características faciais e de sinais de alterações dos SNC pior foi o desempenho na narrativa nos aspectos mais estruturais e de organização do esquema narrativo de história, os quais estão inseridos na dimensão macroestrutural da narrativa. Nossos resultados não apresentaram associação com aspectos microestruturais, diferentemente do que foi encontrado em estudo anterior(20). No entanto, é importante ressaltar que os aspectos microestruturais contemplados neste estudo foram diferentes do estudo anterior(20), já que a presente investigação não contemplou uma análise de recursos coesivos.
É sabido que para narrar uma história estruturada e coerente é necessário o acesso a uma forma de representação mental do que é e de como se estrutura uma narrativa do tipo história. Esse esquema narrativo, com seus elementos constituintes, é aprendido de forma gradual ao longo dos anos, na medida em que a criança tem contato com o modelo do esquema de história(23) e, também, pela maturação do SNC(30). Os achados de estudos de ressonância funcional têm mostrado que, tanto para a compreensão quanto para a produção da narrativa, é necessária a ativação de diferentes grupos neurais, que não se restringem a um único hemisfério cerebral(30). Deste modo, dada a complexidade da tarefa de narrar oralmente uma história, era esperado que os indivíduos com TEAF deste estudo, com achados clínicos positivos e mais severos para as alterações do SNC, apresentassem, também, mais dificuldade para desempenhar a narração da história.
O estudo mostrou que indivíduos com TEAF apresentaram desempenho diferente dos seus pares com desenvolvimento típico de linguagem, caracterizado pelo uso restrito de elementos estruturais típicos do esquema narrativo de história com níveis inferiores de coerência e vocabulário reduzido. Pode-se dizer que a análise da diversidade lexical foi a medida, dentre as contempladas nos aspectos microestruturais, que melhor discriminou os indivíduos com TEAF dos seus pares, o que corrobora estudos anteriores sobre a presença de déficits significativos de natureza semântica nesta condição.
Conclui-se também que a presença de enunciados incompletos na narração dos indivíduos com TEAF foi uma característica importante e relevante para discutir os déficits semânticos e sintáticos apresentados por esses indivíduos e que tal característica deve ser considerada como parte dos itens de investigação da narrativa oral e intervenção, junto às demais dificuldades narrativas.
Estudos futuros poderão explorar se a associação encontrada entre o desempenho narrativo e os itens diagnósticos do 4-Digítos (características faciais e a alteração do SNC) apresentam valor preditivo no desempenho narrativo dos indivíduos com TEAF.