versão impressa ISSN 1414-3283versão On-line ISSN 1807-5762
Interface (Botucatu) vol.22 no.67 Botucatu out./dez. 2018 Epub 06-Ago-2018
http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622017.0333
El objetivo del artículo es comprender las representaciones de motociclistas que sufrieron accidentes de tránsito sobre los riesgos y los diversos medios de transporte. Se adoptó el abordaje cualitativo basado en nociones propuestas por Giami, en el referencial psicosocial de las Representaciones Sociales. Se entrevistaron 16 motociclistas accidentados en el tránsito de Belo Horizonte, Estado de Minas Gerais, Brasil, atendidos en hospitales de referencia para trauma. Los resultados muestran que experiencias cotidianas, atributos observados en los vehículos y, principalmente, el envolvimiento en accidentes de tránsito, se utilizan como estructura para representar los transportes como “seguros” o “inseguros”. La ponderación entre las ventajas y desventajas presentadas por los vehículos se constituyen como fundamentales para predecir la opción por uno u otro vehículo. Aunque la motocicleta sea considerada un vehículo inseguro, su uso es defendido por los entrevistados que continúan imaginándose intocables.
Palabras-clave: Accidentes de tránsito; Motocicletas; Riesgo; Salud Pública; Encuesta cualitativa
Os acidentes de trânsito representam um crescente problema de saúde pública em todo o mundo. Destaca-se o cenário complexo e violento que transcende a magnitude no número de vidas ceifadas e o poderio incapacitante. Aproximadamente 1,24 milhão de pessoas são mortas por ano, e entre 20 e 50 milhões ficam feridas em decorrência de acidentes de trânsito, em todo o mundo 1,2 . A metade das mortes registradas no mundo envolvem os usuários denominados “vulneráveis”: motociclistas (23%), pedestres (22%) e ciclistas (5%) 2 .
O Brasil ocupa a 5ª posição entre os países com maior número de mortes no trânsito, precedido por Índia, China, Estados Unidos e Rússia 3 . As causas externas representam a terceira causa de morte entre a população brasileira 4 , e um terço dessas mortes são referentes a lesões/traumas decorrentes dos acidentes de trânsito 5,6 . O número de óbitos por Acidentes de Transporte Terrestre (ATT) no Brasil, em 2013, foi de 45.099 óbitos 7 . Desse total, aproximadamente 27% ocorreram entre motociclistas 7 .
Apesar dos esforços para reduzir o número de vítimas no trânsito, observa-se o crescimento na frota de veículos, sobretudo o crescimento da frota de motocicletas, que aumentou na ordem de 403,7% entre 2001 e 2014, sendo o maior aumento nas regiões Norte e Nordeste do país 8 . O aumento exacerbado de motocicletas ocorre em vários países, sobretudo entre pessoas mais jovens atraídas, em sua maioria, pela possibilidade de rápido deslocamento, especialmente nos grandes centros urbanos, e em busca das vantagens oferecidas pelo veículo, como baixo custo e economia de combustível 9 .
A supervalorização do transporte individual, traduzida no aumento de carros particulares e de motos que disputam o espaço no trânsito, as dificuldades para a efetivação de transportes de massa de qualidade e a pressão das empresas para a rapidez nas entregas de encomendas, levando a formas perigosas de dirigir pelos motociclistas, além das condições das vias e da organização urbana, são fatores explicativos do aumento de acidentes neste grupo 10-16 . Reichenheim et al. 17 apresentam diversos fatores de risco relacionados a óbitos e lesões ocorridos no trânsito, incluindo os acidentes envolvendo motociclistas, como: fatores humanos (dirigir sob o efeito de álcool, estresse, fadiga e tonteiras); os relativos ao sistema viário (sinais de trânsito deficientes e manutenção ruim das estradas, iluminação insuficiente ou inexistente, falta de acostamento e inclinações, drenagem ineficiente, muros de contenção e curvas inadequadas); os relacionados aos veículos (manutenção inadequada), assim como o excesso de velocidade.
Entretanto, a literatura é escassa sobre aspectos que dizem respeito à subjetividade dos condutores, suas visões de mundo, suas representações em torno do objeto motocicleta e dos riscos possíveis, que podem definir suas escolhas para maior ou menor proteção.
No presente estudo, propõe-se, então, um olhar sociológico sobre o risco que ultrapasse as condições materiais da organização social, centrando-se: nas características singulares das pessoas, nos valores culturais, nas representações e interações sociais que contribuem para a identidade e identificação dos sujeitos, em seus contextos de vida 18 .
O conceito de risco em epidemiologia foi utilizado para delimitar relações causais analíticas e abstratas, na forma de associações de caráter probabilístico com ampla aceitação científica no campo da saúde 19,20 . Ampliou-se com o conceito de vulnerabilidade, que passou a expressar o reconhecimento dos diferentes graus e natureza da suscetibilidade dos indivíduos e coletividade às doenças e aos agravos, formado pelo conjunto integrado de aspectos sociais, programáticos e individuais que colocam os sujeitos em relação com o problema e com os recursos para seu enfrentamento 21 .
A sociologia do risco é uma esfera privilegiada neste sentido, pois aborda tanto a maneira pela qual os indivíduos se sentem ou não em perigo, dão sentido e agem em relação aos riscos, bem como os modos que as sociedades os concebem e os definem 22-23 . Risco é uma noção socialmente construída, variável segundo lugares e épocas distintas. A percepção de risco remete aos modos de vida, aos valores familiares e coletivos introjetados por cada sujeito, refletindo uma moral em ação e uma visão de mundo que fazem parte também da vida intrapsíquica 22 , ao mesmo tempo em que há reconhecimento da existência de um mundo externo, com seus riscos objetivos 24,25 .
Por não ser um decalque da realidade na consciência do indivíduo, o risco se mistura à subjetividade das representações sociais e culturais. Provém de um imaginário, e não de uma falta de reflexão ou de pretensa irracionalidade, é uma representação introjetada 26 .
Considerando a complexidade do enfrentamento do problema, do crescimento da frota de motocicletas e dos acidentes a ele agregado, a promoção da saúde e a prevenção de agravos exigem conhecimentos para além de dados que associam eventos e fatores objetivos, que constituem a base de estudos quantitativos. Destaca-se a necessidade de estudos qualitativos que enfoquem as formas de viver das pessoas, para que se possa dar maior abrangência e profundidade ao conhecimento nesta área importante da saúde coletiva. A dinâmica e a multicausalidade do fenômeno acidentes de trânsito envolvendo motociclistas exigem estudos que enfoquem aspectos psicossociais para a compreensão sobre o que os sujeitos pensam e como enfrentam os possíveis riscos no uso da motocicleta nos espaços urbanos. Nessa perspectiva, o risco, em sua vertente sociológica, aprofunda a reflexão na discussão de vulnerabilidade social, porque acrescenta, à sua conceptualização, as representações, como aspectos psicossociais que condicionam os modos de viver e, por extensão, de promover saúde.
Nesse enfoque, o presente estudo tem o objetivo de compreender representações de motociclistas que sofreram acidente de trânsito em Belo Horizonte, Minas Gerais, acerca dos riscos e os diversos meios de transporte.
Pesquisa qualitativa de abordagem sociológica, com trabalho de campo realizado por meio de entrevistas abertas, iniciadas por uma questão central indireta sobre o objeto de estudo: “gostaria que me falasse sobre o uso de motocicleta por você” e questões de relance que contemplaram seus modos de pensar os riscos e modos de agir no trânsito.
A coleta realizou-se no período de fevereiro a maio de 2014, e foram entrevistados 16 motociclistas com idades entre 18 e 47 anos, em atendimento em hospital de referência para vítimas politraumatizadas, após a ocorrência do acidente de trânsito, em Belo Horizonte (BH), capital de Minas Gerais. Os critérios para inclusão dos sujeitos foram: (a) ser o condutor da motocicleta no momento do acidente; (b) ser maior de 18 anos, por ser a idade mínima prevista pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para aquisição da Carteira Nacional de Habilitação (CNH); (c) residir e ter sofrido o acidente no perímetro urbano da capital; (d) permanecer em atendimento no pronto-socorro ou internado por, no mínimo, 24 horas após admissão via ficha de atendimento do hospital; (e) apresentar condições clínicas para participar da entrevista.
A obrigatoriedade da CNH não foi definida como um critério de inclusão, justamente por ser um evento oportuno para compreensão das noções de riscos dos condutores que trafegam sem a CNH no trânsito de BH.
As entrevistas ocorreram depois de transcorridas 24 horas, pelo menos, da entrada do/a motociclista no hospital, devido ao maior número de atendimento de profissionais da equipe multiprofissional, procedimentos clínicos e exames complementares nestas primeiras horas.
A seleção dos participantes foi iniciada após levantamento dos prontuários para confirmação dos critérios de inclusão e, na sequência, foi realizado contato durante o período de internação com os ‘possíveis participantes elegíveis’ para verificação dos demais critérios de inclusão.
As entrevistas duraram em média 40 minutos cada, foram realizadas nas dependências do hospital, em locais que garantiam segurança e privacidade aos participantes, acertados previamente com a equipe do serviço. A entrevista ocorreu após esclarecimentos e objetivos da pesquisa, o aceite para participar voluntariamente e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para análise.
O processo de coleta dos dados foi realizado em duas etapas. A primeira constou de identificação do perfil sociodemográfico dos participantes, levantamento de informações referentes ao acidente e ao uso da motocicleta, coletadas nas fichas de atendimento, nos prontuários e no relato dos participantes. A segunda etapa consistiu em entrevista aberta e em profundidade 27,28 , para propiciar uma narrativa que desvelasse os modos de pensar e agir dos entrevistados em relação aos acidentes de trânsito, num processo de reflexão sobre os riscos, enfocando sua vivência e contexto de vida, inseridos no acontecimento do acidente ou riscos incorridos.
Não houve definição a priori do número de participantes. O critério para o término da coleta de dados foi o de saturação dos dados, verificado quando houve a existência de repetições de pontos de vista, de julgamentos e sentimentos sobre fatos e experiências relativos aos objetos presentes nas narrativas, o que propiciou segurança para definir a suspensão da coleta com novos participantes e permitiu estabelecer interpretação rigorosa e contextualizada do objeto em estudo 29 .
Durante o processo de revisão dos prontuários para levantamento dos possíveis participantes segundo os critérios de inclusão e confirmação da elegibilidade, houve recusa por parte de sete pessoas. Essas foram substituídas por outras, até que a saturação dos dados qualitativos fosse alcançada, não havendo nenhum prejuízo para a coleta e os resultados. Tal recusa reforçou a importância de aprofundar a discussão das representações, pressupondo-se que há processos de negação dos sujeitos sobre o evento, a exemplo “não quero falar no assunto”.
Foram realizadas 16 entrevistas, sendo oito na Unidade de Pronto-Socorro e oito nos Setores de Internação (ortopedia, clínica cirúrgica e neurologia). Cada entrevistado recebeu uma identificação, com letra E seguida da letra inicial de seu prenome e o número correspondente à ordem crescente de realização da coleta, para preservar o anonimato.
A pesquisa foi aprovada pelos Comitês de Ética da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), parecer nº 471.184, e da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), parecer n° 604.412-0.
A análise dos dados coletados fundamentou-se na proposta de Análise Estrutural de Narrativa (AEN), apresentada por Demazière e Dubar 30 , fundamentada em Greimas 31 , Greimas e Landowski 32 e Barthes 33 , no eixo da Grounded Theory 34: as categorias teóricas surgem após a interpretação das categorias empíricas criadas a partir da análise do conjunto das entrevistas. Nessa linha, considera-se que tudo na fala do sujeito tem sentido, e que a entrevista é uma construção de sentidos pelo entrevistado que narra fatos, histórias e as justificativas, além de apresentar pessoas e instituições envolvidas ao longo de sua fala. Depois de transcritas, cada entrevista foi exaustivamente lida. Inicialmente, por uma leitura vertical, na qual se buscou o sentido global, respondendo à questão: de que fala este texto? Posteriormente, houve a leitura horizontal: o texto foi sequenciado por ordem de aparecimento de cada objeto na fala, e cada sequência foi numerada em ordem crescente (S1, S2, ...). Em cada sequência foram identificados: os fatos (F), as justificativas apresentadas (J) e os personagens (P). Os dois primeiros foram numerados em ordem crescente dentro da sequência, e os personagens receberam o mesmo número ao serem repetidos em outras sequências. Em seguida, as sequências que tratavam de um mesmo assunto abordado em suas confirmações, diferenças e contradições, foram reagrupadas e receberam um título provisório que deram origem a uma categorização provisória da totalidade da entrevista individual. Em uma terceira etapa, buscou-se encontrar as semelhanças e as diferenças no conjunto das entrevistas, em uma leitura denominada transversal, na qual as categorias provisórias encontradas foram comparadas e reagrupadas para a totalidade das entrevistas, definindo-se, em suas conjunções e disjunções, as categorias empíricas sobre os objetos de estudo em pauta. Ao final, os resultados foram cotejados com a literatura pertinente, explicitando-se as categorias teóricas.
A partir da interpretação dos dados, definiu-se a categoria das representações sobre os meios de transporte. O conteúdo desta categoria é sustentado por representações em torno de condutas e riscos vivenciados no cotidiano do trânsito, compreendidas dentro de um contexto material e social, estrutural e conjuntural, de vida dos entrevistados.
Foram entrevistados 16 sujeitos do sexo masculino, com idades entre 18 a 47 anos. Havia mulheres envolvidas em acidentes com motocicleta internadas ou em atendimento no hospital, entretanto, nenhuma delas preencheu, na totalidade, os critérios de inclusão. Em sua maioria, as mulheres eram ‘garupas’ no momento do acidente ou eram provenientes de outros municípios.
Os dados relativos à profissão, tempo de habilitação, tempo de pilotagem, uso da motocicleta (horas/dias), número de acidentes sofridos, motivo da locomoção durante o acidente atual e os diagnósticos secundários mais frequentes, de acordo com a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde 35 , estão dispostos no Quadro 1 .
Quadro 1 Perfil dos Entrevistados
Entrevistado | Idade (anos) | Profissão | Tempo de Habilitação(*) | Tempo de Pilotagem (*) | Uso da motocicleta (horas/dia) | Acidentes Sofridos (n) | Motivo da locomoção – Acidente Atual | Diagnóstico Secundário (CID-10) |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
E1 | 21 | Agente de Serviço | 3a | 3a | 2 | 2 | Passeio | S82.0 |
E2 | 27 | Servente de Pedreiro | Sem habilitação | 14a | 3 | 1 | Passeio | S82.6 |
E3 | 18 | Atendente Chaveiro | 10m | 2a | 5 | 2 | Passeio | - - |
E4 | 37 | Chefe Pizzaiolo | 12a | 10a | 4 | 10 | Trajeto casa/trabalho | S82.2 |
E5 | 22 | Impressor | 2a 6m | 2a 6m | 1 | 2 | Trajeto casa/trabalho | S62.3 |
E6 | 47 | Supervisor de Pessoal | 25a | 25a | 1 | 1 | Passeio | S72.0 |
E7 | 38 | Pedreiro | 3a | 3a | 3 | 3 | Passeio | S82.1 |
E8 | 35 | Ajudante Lojista | 13a | 5a | 6 (fim de semana) | 1 | Passeio | S06 |
E9 | 46 | Marceneiro | 6a | 6a | 1 | 3 | Trajeto casa/trabalho | S82.1 |
E10 | 24 | Mecânico Suspensão | Sem habilitação(**) | 14a | 3 | 2 | Passeio | S81.9 |
E11 | 40 | Motorista Carreteiro | 15a | 15a | 1 | 1 | Trajeto casa/trabalho | S00.0 |
E12 | 29 | Motoboy | 5a | 15a | 12 | 6 | Trabalho | S82.3 |
E13 | 36 | Motoboy | 15a | 15a | 10 | 3 | Trabalho | S81 |
E14 | 20 | Autônomo | 1a 3m | 1a 3m | 4 | 3 | Passeio | S62.6 |
E15 | 24 | Motoboy | 2a 6m | 10a | 8 | 3 | Passeio | S82.2 |
E16 | 45 | Representante comercial | 26a | 3m | 6 | 2 | Trajeto casa/trabalho | S92.4 |
(*) a: anos; m: meses (**) Perdeu após primeiro acidente
O eixo central dessa categoria foi construído pelas representações acerca da segurança ofertada pelos diversos meios de locomoção. Inicialmente, os motociclistas classificam os meios de transportes em seguros e inseguros, apesar de haver uma representação corrente de que todos os meios de transporte apresentam riscos porque nenhum deles é totalmente seguro.
A maioria dos entrevistados baseou-se nas experiências cotidianas, nos atributos observados nos veículos e, sobretudo, no envolvimento em acidentes de trânsito para considerar quais meios de transportes são seguros ou não. Em geral, são listadas vantagens e desvantagens para qualificar o meio de transporte na categoria de seguro ou inseguro. Cabe aqui ressaltar que essa dicotomia foi representada como fundamental na hora de o entrevistado optar por este, e não aquele meio de transporte. Verificou-se, ainda, que há um balanceamento entre a lista de vantagens e aquela das desvantagens, para que, finalmente, a opção seja feita, agregando aos valores objetivos – esses definidos de acordo com as necessidades e possibilidades do indivíduo –, valores sentimentais e psicológicos, dentro de um conjunto de representações sobre os meios de transporte.
Aspectos ligados à estrutura e ao porte do veículo preponderam entre os relatos e são desvelados como base para representações sobre meios de transporte seguros: “O carro é um dos mais seguros, né? Se você tiver cuidado... Mesmo assim... Mas o mais seguro, eu acho que é o carro ainda” (E11). Proteções físicas, como a existência de lataria fechada e o porte maior dos veículos são descritas como capazes de conferir maior sensação de proteção e segurança para os indivíduos. Concomitantemente, a representação de transporte seguro torna-se ainda mais evidente ao ser comparado com a motocicleta. Para os motociclistas, embora o prazer seja reconhecido no uso da motocicleta, a segurança é avaliada como baixa, sendo os veículos de quatro rodas ou o trem de ferro, aqueles que garantem melhor a segurança para o condutor.
A possibilidade de sofrer lesões em eventuais acidentes é determinante para assegurar tal definição. Sendo assim, o ponto de partida para explicar o transporte seguro é a existência de estruturas físicas, presentes nos veículos, que servem como barreira e garantem, ao mesmo tempo, maior sensação de segurança.
Ao introjetar a existência de proteções inerentes à estrutura de veículos como carros, ônibus e metrô, os entrevistados a reconhecem como algo concreto e objetivo que será capaz de assegurar mais segurança e proteção física em caso de envolvimento em acidentes. A imagem da motocicleta é, então, de um veículo aberto e sem proteção física.
Por outro lado, os veículos citados como seguros ou que agregam outras vantagens foram representados também como desvantajosos em vários aspectos. Nos deslocamentos realizados no trânsito em Belo Horizonte, destaca-se a dificuldade de efetivação do transporte coletivo como principal barreira, na opinião de motociclistas, para suprir as necessidades de seus usuários. A lotação do transporte coletivo, demora na realização dos trajetos e a opção restrita de deslocamento (quilometragem) percorrida pela malha ferroviária, dentre outros, são apontados como problemas no transporte público. Por outro lado, o excesso de veículos e a consequente falta de espaço no trânsito para consumação dos deslocamentos são descritos como elementos que impedem a opção por automóveis. A segurança torna-se um critério superado em face das desvantagens dos transportes considerados seguros: “O carro, trânsito muito agarrado, não anda. Ônibus, além de cheio, o trânsito muito ruim. Metrô leva a gente, tipo, de nenhum lugar a lugar nenhum” (E5).
Muitos motociclistas utilizam o argumento da qualidade insatisfatória dos transportes coletivos para explicar a escolha pela motocicleta como meio de transporte:
Eu mesmo comecei a andar de moto por causa de transporte mesmo, muito trânsito. De ônibus é muito ruim, eu não consigo andar de ônibus, eu acho muito difícil se locomover de ônibus do serviço pra casa, de casa para o serviço, a gente perde muito tempo, chega muito estressado. (E9)
Embora as representações de transporte seguro excluam a motocicleta, observa-se que o elemento crucial para escolhê-la como meio de transporte é a sua representação de rapidez e eficiência: ‘pode ser inseguro, mas resolve o problema’.
A caracterização da motocicleta como um transporte inseguro remete a aspectos observados pelos entrevistados no cotidiano das interações estabelecidas no trânsito, devido, sobretudo, ao design da motocicleta. A ausência de proteção física é, de certa maneira, preocupação evidente nos deslocamentos com motocicleta. Essa preocupação se torna ainda maior nos momentos em que os entrevistados ficam diante da possibilidade de envolver-se em acidentes: “[Moto] é um veículo que não tem muita segurança. Para falar a verdade, pra ser sincero, não tem segurança nenhuma. Os acidentes podem ser horríveis” (E12).
A consciência acerca da periculosidade da motocicleta, na maioria das vezes, é orientada pela probabilidade de sofrer um acidente e, sobretudo, pelas lesões que dele podem decorrer, como se a motocicleta tivesse vida própria e todo acidente ocorresse devido a fatores externos ao condutor. Dessa forma, a representação do risco pelos motociclistas não está nunca contida em suas condutas ou riscos decorrentes dos modos de usar o veículo, ou, mesmo, da situação das vias, mas realçados somente nos possíveis danos à integridade física que se pode sofrer: “A moto é tipo o para-choque... O peito da gente é tipo o para-choque do carro e a gente sofre direto o choque e pode ser o fim, né?” (E10).
À probabilidade de ocorrência de acidentes, explicita-se aqui o risco real de morte. Ele passa a ser dimensionado como muito maior quando comparado ao risco do carro, em função da ausência de proteções físicas nas motocicletas, como a “lataria” nos automóveis. O fato de não ter uma barreira protetora em eventuais acidentes, deixa o motociclista vulnerável e sem segurança – o que foi apresentado por todos os entrevistados, com mais ou menos gravidade das lesões, sendo os riscos percebidos de forma mais evidente por motociclistas que as utilizam como instrumento de trabalho. A jornada de trabalho para esses profissionais pode durar entre oito e 12 horas, perfazendo um tempo de exposição superior ao dos demais entrevistados. Sendo assim, a possibilidade de não retornar para casa após a jornada de trabalho é destacada como ameaça real: “A gente sai de casa pra poder trabalhar, pra poder ir ganhar o ganha pão da gente e talvez não volte” (E13). Porém, a utilização diária da motocicleta evidencia vantagens constatadas na prática, pelos motociclistas, como representações que preponderam sobre os riscos, expressas de forma pragmática sobre rapidez e redução de tempo entre os deslocamentos, aspectos considerados fundamentais para escolher a motocicleta como meio de transporte. A capacidade que o motociclista tem de driblar o trânsito e, consequentemente, de mover-se com agilidade entre os veículos, devido ao tamanho reduzido da motocicleta, é a base das ambíguas posturas em relação a esse meio de transporte: “A moto é muito ágil. Você tem o trânsito agarrado, você consegue passar, ser mais ágil do que os carros. É mais rápido, mais fácil. O motoqueiro, não quer ficar preso nem no corredor nem no trânsito e nem lembra que existe perigo. Por isso, a agilidade da moto” (E5).
Paralelamente às representações de rapidez, quando comparadas às de outros meios de transporte, a motocicleta é descrita também como uma oportunidade de facilitar o deslocamento pela calçada quando o ‘retorno está muito longe’, o que configura uma conduta transgressiva, mesmo que considerada, aparentemente, somente como um “drible ao trânsito”: “Qualquer canto você passa, às vezes você sobe até no passeio, saí do outro lado. Facilita, ganha tempo. Talvez você vai estar numa via, você passa do lugar que você tem que ir e o retorno é muito longe” (E15).
Outro aspecto considerado vantagem está na economia da motocicleta, mensurada no baixo custo de aquisição, no gasto com combustível e nas manutenções do equipamento, comparando-a tanto com o transporte individual como com o coletivo: “É mais prático e é mais econômico, mais barato” (E12).
Assim, a opção por este meio de transporte é cada vez mais frequente. Seduzidos por vantagens como economia e diminuição de tempo entre os trajetos, os motociclistas optam por incorrer em riscos e perigos diariamente.
No estudo atual, ao se analisarem representações dos condutores de motocicletas relacionadas aos acidentes de trânsito, encontrou-se, na categoria sobre os meios de transporte, seu conteúdo sustentado no reconhecimento de que o transporte coletivo (ônibus e metrô) e o transporte individual (carro) proporcionam maior segurança. Entretanto, esses meios de transporte não se configuram como opção real de transporte para esses motociclistas. A motocicleta, mesmo sendo um transporte inseguro, é representada como a alternativa para solucionar os percalços vividos no trânsito, para deslocamentos com rapidez e versatilidade, para não ficar “preso no trânsito”, controlando-se o tempo e ‘fazendo a vida fluir’, além de ser um veículo econômico.
Fatores relacionados ao veículo que influenciam na segurança dos motoristas estão associados ao desempenho do veículo nas manobras de trânsito e à ergonomia/conforto do motorista 36 . Concomitantemente, ressalta-se a influência do design do veículo sobre essas duas variáveis 37 . Sendo assim, experiências cotidianas e os atributos observados na composição dos diversos veículos e, sobretudo, a possibilidade de envolver-se em acidentes são os construtos que determinam a caracterização como transporte seguro ou inseguro.
Conforme descrito por Veronese 16 , “o domínio do conhecimento sobre o cotidiano resulta numa sensação de segurança”. Nesse sentido, ao introjetar a existência de proteções inerentes à estrutura de veículos como carros, ônibus e metrô, os entrevistados a reconhecem como algo concreto e objetivo que será capaz de assegurar mais segurança e proteção física em caso de envolvimento em acidentes. A imagem da motocicleta é, então, de um veículo aberto e sem proteção física.
Todavia, a qualidade insatisfatória dos transportes coletivos fez com que muitos indivíduos optassem por meios de transportes individuais, o que piorou os problemas de trânsito nas grandes cidades 10,17 . Muitos motociclistas utilizam este mesmo argumento para explicar a escolha pela motocicleta como meio de transporte individual. Destaca-se que, além da versatilidade e do baixo custo de aquisição, a vantagem econômica, frente ao custo de usar o transporte coletivo, foi um dos motivos importantes para o aumento no uso das motocicletas 10 . Como consequência, a motocicleta tornou-se o meio de transporte individual mais popular do Brasil 16 e, também um dos meios de transporte mais perigosos 12,38 . Entretanto, as motocicletas oferecem maior mobilidade e vantagens na utilização do espaço quando comparadas aos automóveis, bem como permitem o deslocamento em espaços reduzidos de forma eficiente, garantindo mobilidade e acessibilidade mesmo em ambientes congestionados 12,36,39,40 . A redução de permanência em engarrafamentos foi apontada como vantagem para os motociclistas 12 . Além da possibilidade de redução do tempo de viagem, é um meio mais econômico de se deslocar e um meio de trabalho para algumas pessoas 40 .
A ênfase na ausência de segurança ou proteção confere aos motociclistas maior possibilidade de se envolverem em circunstâncias nas quais as situações de perigo ocasionem lesões a sua integridade física. O perigo ocorre, sobretudo, por causa da convivência com veículos de grande porte, pela dificuldade de esses condutores verem a motocicleta e pela falta de proteção física dos motociclistas, tornando-os especialmente vulneráveis 10 . Pesquisa 41 realizada na Nova Zelândia e Austrália revelou que motociclistas são vulneráveis a lesões mais graves pela falta de proteção do veículo. Além disso, em situações semelhantes de um mesmo acidente, as consequências são mais severas para os motociclistas do que para os motoristas de carros 41 . Nas motocicletas, um grande desafio para a melhoria da segurança está associado à tecnologia de frenagem e aos dispositivos de segurança mais eficazes, como coletes infláveis, capacetes e melhor proteção para membros 42 .
Os benefícios advindos do uso da motocicleta no cotidiano superam os riscos que são vislumbrados como probabilidade de acontecer, e não como certeza de que, de fato, ocorreram, como foi o caso dos entrevistados.
Toda percepção de risco implica forte conotação afetiva e intervenção de um discurso social e cultural. O medo parece estar menos relacionado à objetividade do risco e mais ao imaginário produzido e induzido por ele, incluindo-se certo fatalismo em relação aos perigos. A representação de risco não é uma fantasia do sujeito, mas sua medida pessoal do perigo, não havendo erro ou deformação no momento da decisão, e sim busca de uma significação própria 26 . É resultado de uma paixão singular, de um prazer que inaugura um modo de vida, ou é considerado como exterior ao sujeito 23 . Se, coletivamente, o risco ganha, por vezes, proporções de ameaça muito maiores do que o real, na esfera individual o sujeito sente-se, muitas vezes, atraído por ele e o vivencia como ato proibido ou transgressão desejada, seja pelo prazer que sente pela conduta e seu enraizamento em sua identidade, seja pela recusa que lhe ditem seus atos ou porque considera que os outros não são ele, e, no que lhe diz respeito, nada teme porque se considera mais forte que a morte 26 .
Riscos construídos ‘mentalmente’ e aqueles que surgem como ameaças ‘reais’ foram desvelados pelos entrevistados ao remeterem às vantagens e desvantagens decorrentes do uso de motocicletas, amparados tanto no conceito de risco como algo distante ou como de risco sendo sinônimo de perigo 43 , seja ele imponderável, fora do controle do sujeito, ou desejado e assumido para se reforçarem identidades 18 . A percepção dos riscos no trânsito parte, então, da disposição do sujeito para vislumbrar possibilidades de um tipo de acidente acontecer e de gerar consequências 44 , assim como à sua subjetividade para não querer entrar neles, ou, ao contrário, acreditar que vale a pena vivê-los, fundados em valores, crenças e significados sociais correntes da contemporaneidade, como a crença em ser diferente, por usar um meio de transporte que oferece “maior liberdade” e, por isso, maior possibilidade de infringir regras, de não ter de cumprir as normas instituídas 45 .
Os resultados da pesquisa corroboram achados anteriores que apontam que quanto mais o motociclista está habituado a condutas arriscadas, mais ele comete infrações, e, ao enxergar benefícios, arrisca-se a cometê-las 46 ; além de que aquele condutor que se sente mais inseguro em relação à motocicleta, tende a cometer menos violações 47 . Quebrar a lógica pragmática da sociedade, que leva a representações de desvalorização da vida em detrimento de benefícios imediatos, parece fundamental para um trânsito com menor risco aos motociclistas, no qual uns e outros se reconheçam como iguais, inclusive em relação às leis e punições.
A opção pela abordagem teórico-metodológica utilizada nesta pesquisa possibilitou desvelar as posturas e des(caminhos) dos motociclistas no cenário multifacetado do trânsito, numa trama complexa de representações sustentadas e imbricadas em torno dos riscos vivenciados no cotidiano do trânsito.
Transportes seguros são retratados, pelos sujeitos, como capazes de conferir proteção em caso de acidente. A presença de “lataria” fechada e o “porte do veículo” são representados como elementos que agregam maior sensação de segurança e produzem menor possibilidade de ocasionar lesões, descritos, sobretudo, para automóveis e ônibus. Porém, dificuldades observadas no cotidiano para efetivação do transporte coletivo ou individual – como a lotação, a demora, o tempo de deslocamento, o excesso de veículos e o trânsito – são representadas como entrave, pelos motociclistas, para optar por estes meios de transportes no dia a dia. Embora as representações de transporte seguro excluam a motocicleta, observa-se que o elemento crucial para escolhê-la como meio de transporte é uma visão pragmática da vida social, expressa nas representações de rapidez e eficiência. Além disso, os riscos significam também prazer e identidade, sendo a infração de normas considerada com naturalidade.
Optou-se, nesse estudo, por desvelar sentidos atribuídos às experiências e condutas desempenhadas no trânsito pelos motociclistas, ao se considerar que compreender suas formas de pensar o mundo é fundamental para se interpretar o fenômeno dos acidentes de trânsito que tanto mal fazem à sociedade.
Os resultados suscitam discussões e maior aprofundamento acerca de aspectos importantes a serem pesquisados na abordagem do fenômeno de saúde coletiva. Aspectos, por exemplo, que aprofundem a análise das representações aqui explicitadas, porém com delimitação também por: gênero, idade, relações familiares, condições clínicas, tempo de internação, outros atores no trânsito e rede social, além de acrescentar cotejamentos com representações de condutores de outros veículos sobre o tema. Estudos que busquem aprofundar aspectos subjetivos dos sujeitos acerca do ‘trânsito’ ainda são pouco frequentes e, certamente, podem contribuir para que as políticas públicas de saúde sejam mais voltadas para a valorização da vida.