versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.29 no.2 São Paulo 2017 Epub 16-Mar-2017
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20172016041
A fala, principal forma de comunicação humana, resulta de uma coordenação eficaz entre vários subsistemas físicos que incluem a respiração, a fonação, a ressonância e a articulação(1). A ressonância da fala sofre influência de fatores como a impedância oferecida pela cavidade oral, os lábios e a permeabilidade nasal que podem torná-la equilibrada, hipernasal ou hiponasal(2).
O principal método utilizado pelos fonoaudiólogos para avaliar a nasalidade da fala é a avaliação perceptivo-auditiva(2,3), método subjetivo, que depende da experiência dos avaliadores, com risco de discordância intra e/ou interavaliadores(4-6). Portanto, a utilização de métodos instrumentais são importantes para complementar essa avaliação clínica, assim como para permitir um melhor planejamento e acompanhamento de resultados dos procedimentos terapêuticos(4,7,8).
Por ser um instrumento não invasivo e de simples manuseio, o nasômetro é amplamente utilizado na literatura, tanto nacional quanto internacional, para avaliar de forma objetiva e direta a ressonância da fala em diferentes amostras populacionais(9-11). O nasômetro calcula, em porcentagem, a relação entre os dados acústicos obtidos por dois microfones, um nasal e um oral, denominada nasalância. A nasalância é o correlato acústico da nasalidade que, por sua vez, corresponde à percepção subjetiva que um ouvinte tem da energia acústica nasal produzida durante a fala(12).
A nasalidade está presente em diferentes línguas e é facilmente identificada na produção de sons nasais. Ela pode variar dentro de uma mesma língua, nos diferentes dialetos que esta apresenta, podendo estar ligada à área geográfica, devido aos efeitos fonológicos da variação linguística nas diferentes regiões do país(13-15), pode sofrer influência também do gênero(14,16-18) e da idade do indivíduo(7,9,19-21).
Estudos que especificam as diferenças dialetais entre mineiros e paulistas são escassos, apesar das evidências da diversidade linguística e do plurilinguismo do território brasileiro. No Estado de Minas Gerais, de acordo com a região, são conhecidas diferentes características como a nasalidade fora da sílaba tônica, o [r] retroflexo e também a redução de ditongos não finais(22).
Considerando que a diferença dialetal pode influenciar a ressonância de fala e que não há clareza em relação a esses aspectos em populações dos estados de São Paulo e Minas Gerais, a hipótese principal do presente estudo é que exista uma diferenciação de nasalância entre essas populações. Este conhecimento facilitará o processo de reconhecimento da produção da fala e da diversidade linguística da nossa região, além de auxiliar em processos de diagnóstico e reabilitação de vários distúrbios de fala.
Por esse motivo, este estudo teve como objetivos obter os valores de nasalância de jovens adultos falantes do português brasileiro, das regiões de São Paulo e Minas Gerais, para verificar se há influência dialetal nas medidas de nasalância entre essas duas populações e se o gênero é também um fator influenciador.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP-USP), pelo Processo nº 2840/2009.
Foram selecionados 36 indivíduos falantes do português brasileiro, alfabetizados, sem distinção de raça e nível socioeconômico. Desses, 20 eram oriundos do Estado de São Paulo, sendo dez homens e dez mulheres, com idades variando entre 18 e 31 anos e média de 23 anos e dois meses (DP= 3,3), e 16 pertencentes ao Estado de Minas Gerais, seis homens e dez mulheres, com idades ente 18 e 35 anos e média de 24 anos e três meses (DP= 5).
Para caracterizar a amostra e selecionar os indivíduos, conforme os critérios de inclusão e exclusão, foi aplicado um protocolo contendo um questionário e uma breve avaliação orofacial, descritos a seguir.
Foram incluídos indivíduos falantes normais do português brasileiro, nativos de ambos os estados, sem restrição de região, e excluídos indivíduos com indícios clínicos de obstrução nasal no momento do exame, histórico de perda auditiva, presença de fissura labial ou de palato ou qualquer outra deformidade craniofacial, em uso de aparelho ortodôntico, com histórico de alterações vocais, com alterações de fala e/ou da linguagem oral e que estivesse morando fora do estado de origem há mais de dois anos.
No quadro abaixo (Quadro 1), pode-se observar a descrição nos participantes em relação à sua região dos estados de São Paulo e Minas Gerais. Ressalta-se que os dados foram coletados na cidade paulista Ribeirão Preto e alguns participantes eram moradores da referida cidade e outros não.
Quadro 1 Número de participantes distribuídos de acordo com as regiões dos estados de São Paulo e Minas Gerais
Estados | |||
---|---|---|---|
São Paulo (N=20) | Minas Gerais (N=16) | ||
Regiões | Regiões | ||
Norte | 14 | Sul/ Sudoeste | 10 |
Noroeste | 2 | Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba | 4 |
Sudeste | 2 | Vale do Rio Doce | 2 |
Leste | 2 |
Depois da concordância em participar da pesquisa e assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, cada voluntário foi submetido individualmente a uma entrevista, contendo dados de identificação, procedência e dados referentes às alterações respiratórias, perda auditiva, realização de cirurgias orofaciais, traumas de face, alterações na alimentação e na voz. Em seguida, foram submetidos a uma avaliação clínica orofacial, que analisou a posição habitual dos lábios e da língua, a morfologia do palato, da úvula e das tonsilas palatinas e a mobilidade do véu palatino; a função respiratória, identificando uma respiração nasal, oral ou oronasal e o fluxo aéreo nasal, e, por fim, foi realizada a investigação perceptiva auditiva da fala, por meio da repetição de frases e conversa espontânea, analisando a inteligibilidade e ressonância da fala.
Todos os voluntários foram orientados a realizar higiene nasal com água e soro fisiológico e, posteriormente, foi avaliado o fluxo aéreo nasal desses indivíduos com o uso do Espelho Nasal Milimetrado de Altmann®, conforme instruções contidas em sua embalagem. A higienização do espelho foi feita com algodão embebido em álcool, antes de cada avaliação.
Depois da avaliação do fluxo aéreo nasal, os indivíduos foram submetidos à medida da nasalância (nasometria) por meio da utilização do Nasômetro II, modelo 6400 (KayPENTAX®, New Jersey, USA). O Nasômetro é equipado com um capacete e dois microfones separados por uma placa horizontal, que deve ser posicionada acima do lábio superior. Esses microfones, um direcionado à boca e o outro ao nariz, captam sinais dos componentes nasais e orais da fala à medida que são lidos textos padronizados, apresentados na tela do computador. Os sinais acústicos são filtrados, digitalizados e analisados por um software específico para nasometria. A nasalância é calculada na faixa de frequência de 300 e 600Hz e equivale à razão numérica entre a energia acústica nasal e a energia acústica total (soma da energia nasal e oral) multiplicada por 100, pois deve ser expressa em porcentagem.
A calibração do nasômetro foi realizada antes de cada exame, utilizando fonte sonora do próprio aparelho, assim como sua higienização, utilizando álcool. Foram considerados para a análise, os valores médios da nasalância da primeira emissão tecnicamente aceitável de cada palavra que constitui cada frase, ou seja, produzidas sem erros e dentro do limite de intensidade aceita do aparelho.
O exame foi realizado durante a leitura de quinze frases do português brasileiro, das quais, cinco contendo alta porcentagem de consoantes nasais (texto nasal1), cinco com alta porcentagem de consoantes nasais e desprovidas de consoantes de pressão (texto nasal2) e mais cinco frases desprovidas de consoantes nasais (texto oral). As provas foram escolhidas baseadas no artigo de Trindade et al.(7), o texto nasal1 corresponde ao NASAL-BR, o nasal2 ao NASAL2-BR e o texto oral, ao ZOO-BR.
Os dados foram computados em tabelas para averiguação estatística. Depois da aplicação do teste de normalidade com resultado positivo, optou-se pelo uso de um teste estatístico paramétrico e, assim, os valores de nasalância dos grupos foram comparados por meio do teste t de Student não pareado, para amostras independentes, considerando que o estudo foi composto por dois grupos experimentais. Foi utilizado o Programa Graph Pad InStat versão 3.0 for Windows 95, considerando as diferenças significativas p < 0,05.
Não houve diferença significativa nos valores de nasalância entre homens e mulheres, tanto para o grupo paulista quanto para o grupo mineiro, nos diferentes textos apresentados (Tabela 1).
Tabela 1 Valores médios e desvio padrão de nasalância (%) dos grupos paulista e mineiro, de acordo com o gênero
Nasalância (%) | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|
Paulistas | Mineiros | |||||
Texto | Feminino (N=10) | Masculino (N=10) | Valor de p | Feminino (N=10) | Masculino (N=6) | Valor de p |
Nasal1 | 50,7 (6,5) | 54,6 (13,5) | 0,42 | 50,3 (7.8) | 46,3 (7,5) | 0,33 |
Nasal2 | 48,5 (5,7) | 50,2 (9,6) | 0,63 | 52,6 (6,1) | 45,5 (7,0) | 0,05 |
Oral | 16,3 (6,3) | 12,2 (6,9) | 0,18 | 10,8 (5,3) | 8,2 (3,2) | 0,29 |
Teste t de Student não pareado - p < 0,05
Legenda: N = números de indivíduos
Os indivíduos paulistas apresentaram valores estatisticamente maiores de nasalância comparados aos mineiros para o texto oral, o que não ocorreu para os demais textos (nasal1 e nasal2). Esses resultados, assim como os valores de referência, para ambos os grupos, estão contidos na Tabela 2.
Tabela 2 Valores médios e desvio padrão de nasalância (%) dos grupos paulista e mineiro
Nasalância (%) | Valor de p | ||
---|---|---|---|
Texto | Paulistas (N=20) | Mineiros (N=16) | |
Nasal1 | 52,7 (10,5) | 48,8 (7,7) | 0,23 |
Nasal2 | 49,6 (7,8) | 49,9 (7,2) | 0,82 |
Oral | 14,3 (6,8) | 9,8 (4,7) | 0,03* |
*Diferença estatisticamente significativa (p < 0,05) - Teste t de Student não pareado
Legenda: N = número de indivíduos
As médias dos valores de nasalância nos textos nasal2 e oral, das duas populações avaliadas, foram 49,6% para os paulistas e 49,9% para os mineiros e 14,3% para os paulistas e 9,8% para os mineiros, respectivamente, estando, portanto, dentro da normalidade considerada para a população brasileira com esse tipo de estímulo de fala(7,23).
A influência dialetal nos escores de nasalância tem sido investigada por diversos autores ao redor do mundo, no entanto, enquanto alguns autores evidenciaram diferenças entre os dialetos(15,24,25), outros relatam que esse não é um fator significante(13,14,20,26).
Nosso estudo revelou valores maiores de nasalância nos indivíduos paulistas comparados aos mineiros para a emissão do texto oral. Os dados mostram que apesar de ambos os grupos apresentarem resultados dentro dos padrões de normalidade, existem diferenças que sugerem uma pequena modificação na dinâmica funcional durante a fala, na região de esfíncter velofaríngeo, possivelmente em decorrência das variações linguísticas de cada dialeto. No dialeto mineiro, por exemplo, observa-se a nasalidade fora da sílaba tônica na região mais ao norte, o [r] retroflexo falado na região mais ao sul e entre essas duas áreas é bastante usada a redução de ditongos não finais e inserção da semivogal [y] em sílabas finais e antecedidas de sibilante(22).
Outros trabalhos, baseados em instrumentos que visualizem a dinâmica da função velofaríngea associados à nasometria, todavia que não influenciem em sua função, poderiam complementar nossos achados.
Na literatura pesquisada, não foi encontrado nenhum estudo com as populações estudadas em indivíduos adultos, no que se refere à influência dialetal. Um estudo realizado com crianças paulistas e mineiras, na faixa etária de seis a dez anos de idade, demonstrou não haver diferença entre a naturalidade dos participantes tanto no texto oral quanto no nasal(13). Alguns autores relatam que os valores de nasalância aumentam de acordo com a idade(7,9,19-21,27), em consequência das mudanças que ocorrem no tamanho e no formato das cavidades de ressonância do trato vocal ocasionadas pelo crescimento(7,20,21,28). Deste modo, o fato de a diferença de nasalância entre paulistas e mineiros não aparecer na idade infantil é justificável.
Muitos trabalhos foram realizados para investigar a influência dos gêneros nos escores de nasalância e alguns não encontraram diferenças significativas(7,24,26), enquanto outros notaram uma tendência de o gênero feminino apresentar maiores escores em relação ao masculino(14,15,17,25). No nosso estudo, não houve diferença entre os gêneros masculino e feminino, em ambos os grupos, para os três textos, como também evidenciado em outros trabalhos da literatura(7,24,26). Entretanto, na inspeção dos dados, foi notada uma tendência de maior nasalância nas mulheres mineiras comparadas aos homens do mesmo grupo, para o texto nasal2, assim como observado em alguns estudos com população adulta(14,17,25,29). Essa tendência pode ser justificada pelas diferenças no mecanismo do esfíncter velofaríngeo e no comprimento do trato vocal existentes entre homens e mulheres(9,14,17,21,24,28). Talvez se o tamanho amostral do nosso estudo fosse maior, essa diferença ficaria mais evidente.
Outros trabalhos também estudaram a influência do dialeto e do gênero nas medidas de nasalância, mas não em brasileiros(14,17,20,24,26). Um estudo comparou os valores de nasalância de jovens adultos falantes normais do flamengo e em outras línguas, durante a leitura de três conjuntos de frases (um oral, um oronasal e um nasal). A análise da nasalância quanto ao gênero indicou diferenças nas frases nasais e oronasais, apontando as mulheres como tendo maior nasalância que os homens no conjunto nasal(17). Assim como um trabalho feito na Arábia Saudita em que foi avaliada a influência da idade e do gênero de pessoas de várias regiões do país e evidenciou-se que, na população adulta, as mulheres tiveram valores de nasalância mais altos(18). Porém, essa diferença não se mostrou tão evidente no presente estudo, talvez pela amostra reduzida, apesar de apontar uma tendência vista pelo valor de p (p=0,05) de escores maiores em mulheres.
Uma pesquisa realizada no Japão mostrou haver diferença significante nos escores de nasalância entre os gêneros, para todas as sentenças e as vogais analisadas, porém não houve diferença significativa entre as regiões em ambos os gêneros(14), o que se mostrou contrário ao nosso estudo. Já em um trabalho realizado na Grécia(24), que avaliou 80 adultos jovens (40 homens e 40 mulheres) saudáveis falantes monolíngues de grego, foi observado que, além de não haver diferença significativa entre os gêneros, o grego obteve valores menores de nasalância do que outras línguas examinadas em trabalhos anteriores. Em outra pesquisa realizada na Bélgica, na qual foi avaliada a influência do gênero e os efeitos de cinco diferentes dialetos da língua flamenca na nasalância, não houve diferenças estatísticas(26).
Esses estudos nos mostram que há variações de acordo com a população e língua estudadas. Portanto, são necessários estudos mais aprofundados para entender como isso acontece na população brasileira. Futuros trabalhos, com um número de indivíduos maior, deveriam ser realizados a fim de confirmar essa diferença encontrada (de maior nasalidade dos paulistas) levando em conta fatores sociolinguísticos e ainda verificar como o tempo de morada em outro estado ou região poderia influenciar a nasalância.
Os valores médios e os desvios padrão da nasalância das populações paulista e mineira foram, respectivamente, 52,7% (10,5%) e 48,8% (7,7%) para o texto nasal1; 49,6% (7,8%) e 49,9% (7,2%) para o texto nasal2; e 14,3% (6,8%) e 9,8% (4,7%) para o texto oral. Referente ao dialeto, a população mineira apresentou valores menores de nasalância que a paulista, sugerindo que a diferença dialetal foi um fator de influência, já o gênero pareceu não influenciar esses valores.
Os resultados preliminares encontrados no nosso estudo contribuem para o conhecimento dos valores de referência para adultos de populações distintas, falantes do português brasileiro, preenchendo uma lacuna nos estudos de nasometria previamente realizados. Contudo, dado que a amostra foi formada por número reduzido de indivíduos, esses achados devem ser interpretados com atenção.