Compartilhar

Necessidade de intervenção breve por uso de álcool, tabaco e outras drogas entre usuários da atenção primária à saúde

Necessidade de intervenção breve por uso de álcool, tabaco e outras drogas entre usuários da atenção primária à saúde

Autores:

Ângela Maria Mendes Abreu,
Gerson Luiz Marinho,
Rafael Tavares Jomar

ARTIGO ORIGINAL

Jornal Brasileiro de Psiquiatria

versão impressa ISSN 0047-2085versão On-line ISSN 1982-0208

J. bras. psiquiatr. vol.66 no.2 Rio de Janeiro abr./jun. 2017

http://dx.doi.org/10.1590/0047-2085000000157

ABSTRACT

Objectives

To track the use of alcohol, tobacco and other drugs among users of primary health care and to identify factors associated with the need for brief intervention for use of these substances.

Methods

Cross-sectional study developed with 1,489 of users of basic unit of health of the city of Rio de Janeiro, Brazil, who responded to the Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test between the years 2013 and 2014. Multivariate logistic regression was used to identify sociodemographic characteristics associated with the need of brief intervention for alcohol and drugs.

Results

The most commonly used substances were alcohol (39.5%), tobacco (20.3%) and among illicit drugs, marijuana (1.9%). In both sexes, a greater chance of need for brief intervention for use of tobacco and alcohol were found among people with low education, high household income and without religion.

Conclusion

The results indicate socioeconomic characteristics as determinants of need of brief intervention for use of alcohol and tobacco.

Key words: Alcohol drinking; smoking; street drugs; prevention and control; primary health care.

INTRODUÇÃO

O uso de álcool, tabaco e outras drogas está entre os vinte maiores fatores de risco para problemas de saúde. A Organização Mundial da Saúde estima que o tabaco seja responsável por 8,7% de todas as mortes e por 3,7% da carga global de doenças – medida pelos anos de vida ajustados por incapacidade (AVAI) – e o álcool seja responsável por 3,8% de mortes e 4,5% de AVAI; já as drogas ilícitas seriam responsáveis por 0,4% de mortes e 0,9% de AVAI1.

De acordo com o II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil2, estudo que envolveu 108 cidades do país com mais de 200 mil habitantes em 2005, o álcool e o tabaco são aquelas de maior prevalência de uso no mês: respectivamente, 38,3% e 18,4%. Entre as drogas ilícitas, a maconha foi apontada por 1,9% dos entrevistados, que tinham idades entre 12 e 65 anos, como aquela de maior prevalência de uso no mês.

A Política do Ministério da Saúde para Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas3 enfatiza que as intervenções de caráter terapêutico ou preventivo direcionadas a pessoas que fazem uso dessas substâncias e seus familiares sejam realizadas prioritariamente na comunidade, estabelecendo que programas dirigidos a essa população tenham a atenção primária à saúde como um de seus principais componentes.

Logo, é necessário não apenas descrever as características da demanda relacionada aos problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas que chegam à atenção primária à saúde, mas também identificar precocemente pessoas com baixo risco de uso dessas substâncias nesse cenário, já que ele é considerado ideal para o rastreamento desse hábito, bem como de problemas dele decorrentes4,5.

A utilização de técnicas terapêuticas concisas e de curta duração tem se constituído parte importante no espectro de cuidados disponíveis para a abordagem e tratamento de usuários de álcool e outras drogas na atenção primária à saúde. Dentre elas, destaca-se a intervenção breve: técnica voltada para modificar a conduta de usuários de substâncias psicoativas em relação àquela mais frequentemente usada que lhe causa problemas, ajudando-os a compreender que tal uso os coloca em risco, servindo, assim, de motivação para que reduzam ou deixem de consumir drogas. Além disso, a intervenção breve possui a vantagem de poder ser aplicada por qualquer profissional de saúde capacitado e treinado4,5.

No Brasil, alguns estudos já foram desenvolvidos com o propósito de rastrear o uso de álcool entre usuários de serviços de atenção primária à saúde6-9, mas poucos foram aqueles que se propuseram a rastrear, além do álcool, o uso de tabaco e outras drogas nesse cenário10,11. Considerando a escassez de estudos sobre o tema, o objetivo do presente estudo foi rastrear o uso de álcool e outras drogas entre usuários da atenção primária à saúde da cidade do Rio de Janeiro e identificar fatores associados à necessidade de intervenção breve por uso dessas substâncias.

MÉTODOS

Estudo transversal realizado com usuários de unidade de atenção primária à saúde, que funciona no modelo da Estratégia Saúde da Família, localizada no Complexo do Alemão, zona norte da cidade do Rio de Janeiro, Brasil. O Complexo do Alemão é composto por 15 comunidades caracterizadas pela pobreza, violência e exclusão social, que apresentam condições insalubres de saneamento básico, crescimento habitacional desordenado, baixo Índice de Desenvolvimento Humano (0,587), baixas expectativa de vida (56,7 anos) e escolaridade, além de alto índice de desemprego. Isso fez com que a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro identificasse essa região como prioritária para a implantação da Estratégia Saúde da Família.

A unidade de saúde em questão era composta por 12 equipes de Saúde da Família, responsáveis pelos cuidados de saúde de cerca de 40 mil pessoas. Nas manhãs de segunda a sexta-feira dos meses de julho de 2013 a julho de 2014, uma amostra não probabilística de 1.489 indivíduos de ambos os sexos e idade ≥ 18 anos, que buscavam atendimento por qualquer motivo na unidade de saúde, foi abordada por acadêmicas de enfermagem devidamente treinadas para a coleta de dados nas salas de espera do cenário em que o estudo foi desenvolvido. Indivíduos com alguma incapacidade mental/cognitiva e gestantes não foram considerados para participação no estudo.

Com vistas ao treinamento das acadêmicas de enfermagem, sob supervisão da autora principal deste estudo, realizaram-se múltiplas simulações de entrevistas em sala de aula até que as acadêmicas demonstrassem segurança para iniciar a coleta de dados, o que foi avaliado e confirmado pela supervisora do treinamento. Além disso, com o objetivo de testar a logística do estudo e aperfeiçoar a desenvoltura das entrevistadoras, estudo-piloto foi conduzido com 24 usuários da unidade de atenção primária à saúde que não compuseram a amostra final.

As entrevistas aconteceram em consultórios da unidade de atenção primária à saúde, após as entrevistadoras prestarem informações sobre a natureza e os objetivos da pesquisa, bem como a participação voluntária dos indivíduos. Os instrumentos utilizados neste estudo foram: um formulário que contemplava informações sociodemográficas (sexo, idade, situação conjugal, escolaridade, renda domiciliar mensal e religião) e o Alcohol, Smoking and Substance Involvement Screening Test (ASSIST)5. Desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde principalmente para identificar pessoas que usam drogas (maconha, cocaína/crack, anfetaminas/ecstasy, hipnóticos/sedativos, alucinógenos, inalantes e opioides), o ASSIST também pode ser utilizado para detectar o uso de álcool e tabaco onde o consumo é alto5.

Validado no Brasil com adequadas qualidades psicométricas11, o ASSIST foi escolhido para ser utilizado no presente estudo por ser direcionado principalmente para uso na atenção primária à saúde. Composto por oito perguntas sobre o uso de nove classes de substâncias psicoativas, ele aborda a frequência de uso (na vida e nos últimos três meses), problemas relacionados ao uso, preocupação a respeito do uso por parte de pessoas próximas, prejuízo na execução de tarefas esperadas, tentativas malsucedidas de cessar ou reduzir o uso, sentimento de compulsão e uso por via injetável5.

Os escores das respostas do ASSIST variam de 0 a 8, podendo a soma total variar de 0 a 39. O somatório final dos escores das respostas classifica o uso de cada substância como de baixo (0 – 10 para álcool; 0 – 3 para outras drogas), moderado (11 – 26 para álcool; 4 – 26 para outras drogas) ou alto risco (≥ 27). Seguindo recomendações da Organização Mundial da Saúde5, os usuários de baixo risco de quaisquer substâncias receberam aconselhamentos gerais em saúde e aqueles classificados como usuários de risco moderado receberam intervenção breve das entrevistadoras que concluíram curso de 20 horas de capacitação em intervenção breve para uso de álcool e outras drogas. Usuários de alto risco foram encaminhados para suas respectivas equipes de saúde da família a fim de que seus profissionais, que também concluíram o mesmo curso de capacitação das entrevistadoras, os acolhessem e providenciassem encaminhamento para um centro terapêutico especializado.

Foram realizadas análises com distribuição de frequências simples para a descrição da população e do uso de álcool e outras drogas nos últimos três meses. Para identificação de fatores associados a necessidade de intervenção breve por uso de álcool e outras drogas nos últimos três meses, foram calculadasodds ratio(OR) e seus respectivos intervalos com 95% de confiança por meio de um modelo de regressão logística múltipla a fim de controlar possíveis variáveis de confusão na relação entre cada variável e a necessidade de intervenção breve por uso de substâncias, segundo o ASSIST. Nessa análise multivariada, a variável dependente (necessidade de intervenção breve) foi classificada de forma dicotômica, utilizando-se como ponto de corte do ASSIST os escores > 10 para uso de álcool e > 3 para tabaco e outras drogas5. Informações faltantes não foram consideradas nas análises dos dados, efetuada no software Stata versão 12.0.

Os procedimentos éticos do presente estudo são representados pela aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil do Rio de Janeiro, sob o protocolo nº 132/2009, e pela assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido pelos sujeitos que aceitaram participar dele.

RESULTADOS

Observa-se na Tabela 1 que a maioria dos entrevistados era do sexo feminino (78,1%), com idade compreendida entre 18 e 34 anos (44,7%), casada (58,8%), com ensino fundamental completo (54,9%), de renda domiciliar mensal inferior a dois salários-mínimos (79,1%) e possuía religião (77,9%).

Tabela 1 Distribuição das características sociodemográficas dos usuários da atenção primária à saúde. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2013/2014 

Variáveis n %
Sexo
Masculino 326 21,9
Feminino 1162 78,1
Faixa etária (anos)
18 – 34 666 44,7
35 – 59 646 43,4
≥ 60 177 11,9
Situação conjugal
Casado/Vive em união 828 58,8
Solteiro 336 23,9
Divorciado/Separado 137 9,7
Viúvo 107 7,6
Escolaridade
Nenhuma 562 38,2
Ensino fundamental 807 54,9
Ensino médio 61 4,1
Ensino superior 40 2,8
Renda domiciliar mensal*
< 2 salários-mínimos 1008 79,1
≥ 2 salários-mínimos 266 20,9
Religião
Possui 1108 77,9
Não possui 316 22,1

* Salário-mínimo no Brasil em 31/12/2013: R$ 678,00.

Conforme a Tabela 2, as drogas que apresentaram maiores frequências de uso nos últimos três meses pelos entrevistados foram álcool (39,5%), tabaco (20,3%) e, dentre as drogas ilícitas, maconha (1,9%). Destaca-se que nenhum deles reportou uso de drogas inalantes, cocaína/crack e anfetaminas/ecstasy.

Tabela 2 Distribuição do uso de álcool, tabaco e outras drogas nos últimos três meses entre usuários da atenção primária à saúde. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2013/2014 

Drogas Uso de drogas nos últimos três meses

Sim Não


n % n %
Álcool (N = 1.489) 589 39,5 900 60,5
Tabaco (N = 1.489) 302 20,3 1.187 79,7
Maconha (N = 1.488) 29 1,9 1.459 98,1
Hipnóticos/Sedativos (N = 1.488) 40 2,7 1.448 97,3
Cocaína/Crack (N = 1.489) - - 1.489 100
Anfetaminas/Ecstasy (N = 1.489) - - 1.489 100
Opioides (N = 1.488) 07 0,4 1.481 99,6
Inalantes (N = 1.489) - - 1.489 100
Alucinógenos (N = 1.489) 02 0,1 1.487 99,9

A Tabela 3 apresenta as características sociodemográficas dos entrevistados, segundo a necessidade de intervenção breve por uso de álcool e de tabaco apenas, já que a frequência de uso de outras drogas nos últimos três meses foi muito baixa ou, até mesmo, inexistente.

Tabela 3 Distribuição das características sociodemográficas dos usuários da atenção primária à saúde, segundo categorias de intervenção por uso de álcool e tabaco nos últimos três meses. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2013/2014 

Variáveis Intervenção em álcool )%) Intervenção em tabaco (%)


Nenhuma Breve Encaminhamento Nenhuma Breve Encaminhamento
Sexo
Masculino (n = 326) 79,8 16,9 3,4 74,5 23,0 2,5
Feminino (n = 1.162) 85,6 10,8 3,5 81,5 15,7 2,8
Faixa etária (anos)
18 – 34 (n = 666) 86,3 11,3 2,4 81,4 17,0 1,7
35 – 59 (n = 646) 82,2 13,0 4,8 78,3 18,0 3,7
≥ 60 (n = 177) 84,7 12,4 2,8 80,8 16,4 2,8
Situação conjugal
Casado/Vive em união (n = 828) 87,1 10,4 2,5 82,9 15,0 2,2
Solteiro (n = 336) 81,0 14,6 4,5 74,1 22,6 3,3
Divorciado/Separado (n = 137) 76,6 17,5 5,8 73,0 23,4 3,6
Viúvo (n = 107) 84,1 13,1 2,8 84,1 14,0 1,9
Escolaridade
Nenhuma (n = 562) 78,8 16,5 4,6 74,4 22,2 3,4
Ensino fundamental (n = 807) 87,6 9,4 3,0 83,1 14,4 2,5
Ensino médio (n = 61) 88,5 9,8 1,6 85,2 14,8 -
Ensino superior (n = 40) 95,0 5,0 - 90,0 10,0 -
Renda domiciliar mensal
< 2 salários-mínimos (n = 1.008) 82,4 12,9 4,7 78,1 18,2 3,8
≥ 2 salários-mínimos (n = 266) 90,6 9,0 0,4 86,1 13,9 -
Religião
Possui (n = 1.108) 76,6 17,4 6,0 68,7 27,2 4,1
Não possui (n = 316) 86,8 10,5 2,7 83,6 14,2 2,3

A Tabela 4 evidencia que a chance de intervenção breve por uso de álcool ser necessária foi maior para pessoas com ensino fundamental completo (OR = 1,92), de renda domiciliar mensal superior a dois salários-mínimos (OR = 2,05) e que não possuíam religião (OR = 1,81). A chance de intervenção breve por uso de tabaco ser necessária foi maior para indivíduos do sexo feminino (OR = 1,48), com ensino fundamental completo (OR = 1,89), de renda domiciliar mensal superior a dois salários-mínimos (OR = 1,80) e que não possuíam religião (OR = 2,08). Estar solteiro apresentou-se como fator de proteção à necessidade de intervenção breve por uso de tabaco (OR = 0,65).

Tabela 4 Associação entre necessidade de intervenção breve por uso de álcool e tabaco nos últimos três meses e características sociodemográficas dos usuários da atenção primária à saúde. Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2013/2014 

Variáveis Intervenção breve em álcool OR* (IC 95%)** Intervenção breve em tabaco OR* (IC 95%)**
Sexo
Masculino 1 1
Feminino 1,38 (0,92 – 2,06) 1,48 (1,03 – 2,13)
Faixa etária (anos)
18 – 34 1 1
35 – 59 0,71 (0,48 – 1,04) 0,75 (0,53 – 1,07)
≥ 60 1,16 (0,62 – 2,18) 1,05 (0,59 – 1,85)
Situação conjugal
Casado/Vive em união 1 1
Solteiro 0,73 (0,49 – 1,09) 0,65 (0,45 – 0,93)
Divorciado/Separado 0,71 (0,41 – 1,22) 0,77 (0,46 – 1,27)
Viúvo 0,86 (0,44 – 1,69) 1,18 (0,61 – 2,28)
Escolaridade
Nenhuma 1 1
Ensino fundamental 1,92 (1,35 – 2,71) 1,89 (1,37 – 2,60)
Ensino médio 1,69 (0,63 – 4,54) 1,91 (0,76 – 4,79)
Ensino superior 3,73 (0,86 – 16,20) 2,43 (0,81 – 7,25)
Renda domiciliar mensal
< 2 salários-mínimos 1 1
≥ 2 salários-mínimos 2,05 (1,23 – 3,42) 1,80 (1,16 – 2,80)
Religião
Possui 1 1
Não possui 1,81 (1,25 – 2,62) 2,08 (1,49 – 2,92)

* Odds ratio ajustado por todas as variáveis da tabela. **Intervalo de 95% de confiança.

DISCUSSÃO

No presente estudo, observou-se que as drogas mais usadas nos últimos três meses pelos entrevistados foram o álcool (39,5%), o tabaco (20,3%) e, ainda que de modo pouco expressivo, a maconha (1,9%). Resultados semelhantes foram encontrados no II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil2, em que álcool, tabaco e maconha foram as drogas de maior prevalência de uso no mês da entrevista: respectivamente, 38,3%, 18,4% e 1,9%. Ainda que em magnitudes distintas, resultados semelhantes também foram reportados pelo estudo de validação do ASSIST no Brasil11, em que álcool, tabaco e maconha foram as substâncias mais usadas nos últimos três meses: 50,9%, 33,3% e 5,5%, respectivamente.

Resultados do I Levantamento Nacional sobre os Padrões de Consumo de Álcool na População Brasileira12 apontam que, em 2005, 52% dos brasileiros eram usuários dessa substância e que metade desses a usava ocasional ou raramente e a outra metade, pelo menos uma vez por semana. Padrões semelhantes também foram observados entre usuários adultos de um serviço de atenção primária à saúde da cidade do Rio de Janeiro, onde 49,5% deles usavam álcool em 201010. Nosso estudo reporta frequência menor (39,5%), provavelmente, por conta de sua amostra não probabilística ser composta majoritariamente por mulheres (78,1%), cujo hábito de beber, no Brasil, é de 41%, frequência menor que a observada entre os homens (65%)12.

No que tange ao uso de tabaco, resultados do presente estudo são semelhantes aos encontrados pela Pesquisa Nacional de Saúde 201313, em que a prevalência do uso atual de tabaco foi estimada em 15% entre brasileiros com idade ≥ 18 anos. Análogo ao resultado aqui reportado, estudo desenvolvido com usuários adultos de um serviço de atenção primária à saúde da cidade do Rio de Janeiro encontrou 18,7% de usuários de tabaco entre os anos 2012 e 201314.

De acordo com o II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas15, desenvolvido nos municípios mais populosos do Brasil entre os anos 2011 e 2012, 7% dos adultos já experimentaram maconha e 3% deles usaram essa droga nos últimos 12 meses. Nosso estudo avaliou o uso de maconha nos últimos três meses por meio de entrevista, o que ajuda a explicar a diferença entre seus resultados (1,9%) e os reportados pelo anteriormente citado (3%), que avaliou o uso de drogas de modo confidencial, pelo preenchimento de uma folha resposta depositada em uma pasta a que o entrevistador não tinha acesso. Nosso método de coleta de informação sobre o uso de maconha pode ter feito os entrevistados ficarem menos confortáveis em responder sobre o uso dessa droga ilícita.

Possuir o ensino fundamental completo, renda domiciliar mensal superior a dois salários-mínimos e não possuir religião foram aqui identificados como fatores associados à necessidade de intervenção breve por uso de álcool. A literatura tem demonstrado maiores prevalências de uso de álcool com necessidade de intervenção breve entre usuários da atenção primária à saúde com baixa escolaridade8,9. Renda mensal elevada também já foi apontada por estudo semelhante a esse como preditor de uso de risco de álcool com necessidade de intervenção7, o que pode ser parcialmente explicado pelo fato de indivíduos com alta renda terem recursos financeiros para comprar quantidades maiores de álcool e manterem um padrão de uso nocivo dessa substância. O álcool é uma droga de uso admitido e até mesmo incentivado pela sociedade. Logo, possuir religião parece funcionar como fator de proteção para o uso dessa substância com necessidade de intervenção breve, o que pode estar relacionado ao fato de algumas religiões, especialmente as de origem cristã, pregarem a abstinência alcoólica8,14.

O tabagismo é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde como doença epidêmica que causa dependência física, psicológica e comportamental1. Considerando que cerca de 30% dos tabagistas brasileiros fumam 20 cigarros ou mais por dia, sugere-se que há elevado grau de dependência física da nicotina – substância psicoativa presente em qualquer derivado do tabaco –, o que requer alguma intervenção16. Ser do sexo feminino, possuir ensino fundamental completo, renda domiciliar mensal superior a dois salários-mínimos e não possuir religião foram identificados pelo presente estudo como fatores associados à necessidade de intervenção breve por uso de tabaco.

A amostra não probabilística deste estudo foi composta majoritariamente por mulheres (78,1%), o que ajuda a explicar o sexo feminino ter sido identificado como um fator associado à necessidade de intervenção breve por uso de tabaco, já que, no Brasil, a prevalência de uso dessa droga entre mulheres é menor que a dos homens (11,2% versus 19,2%)13. Brasileiros com menor escolaridade (nenhuma ou ensino fundamental completo) apresentam maiores prevalências de tabagismo que aqueles com maior escolaridade (ensino médio ou superior completo)13, tal como descrito por estudo conduzido entre pessoas de 16 nacionalidades diferentes17. Portanto, informação e conhecimento obtidos em escolaridades mais altas são importantes aspectos na escolha do comportamento em saúde que pode determinar necessidade de intervenção breve por uso de tabaco.

Apesar de no Brasil o uso de tabaco ser tanto menor quanto maior for a renda domiciliar18, a chance de necessitar de intervenção breve por uso de tabaco encontrada neste estudo foi duas vezes maior entre os que possuíam renda domiciliar mensal mais alta que entre os que possuíam renda menor. Cabe destacar que somente 4,6% dos entrevistados possuíam renda domiciliar mensal de quatro ou mais salários-mínimos, evidenciando alguma homogeneidade de renda na amostra. Diante disso, a interpretação de nossos achados deve ser cautelosa, pois eles retratam a necessidade de intervenção breve por uso de tabaco em uma população de baixa renda.

Tal como no caso de intervenção breve por uso de álcool, é possível que possuir religião funcione como fator de proteção para necessidade de intervenção breve por uso de tabaco porque algumas religiões, especialmente as de origem cristã, pregam a abstinência de substâncias psicoativas, distanciando os indivíduos do uso de tabaco e álcool14. Estar solteiro apresentou-se como fator de proteção à necessidade de intervenção breve por uso de tabaco. Isso pode ser parcialmente explicado pelo fato de, no Brasil, a prevalência de uso de tabaco ser menor entre pessoas mais jovens13 e nosso estudo apresentar elevada frequência de solteiros na faixa etária de 18 a 34 anos (71,8%). Vale ressaltar que brasileiros mais jovens apresentam prevalências menores de uso de tabaco graças às exitosas políticas brasileiras antitabagismo iniciadas no fim da década de 198019.

Convém destacar que a diminuição do uso do álcool e do tabaco constitui uma prioridade de saúde pública, uma vez que impacta na redução de doenças cardiovasculares e câncer. A diminuição do uso dessas substâncias depende principalmente de medidas de regulação adotadas pelos governos, bem como do enfrentamento do poder das indústrias, como o ajuste monetário das bebidas alcoólicas e dos derivados do tabaco, que poderia torná-los mais caros e, consequentemente, menos disponíveis20.

O presente estudo identificou que, independentemente de prescrição médica, 2,7% dos entrevistados usou hipnóticos/sedativos nos últimos três meses. Recente revisão integrativa21 evidenciou que a maioria dos usuários da atenção primária à saúde brasileira que faz uso abusivo dessas substâncias frequenta rotineiramente unidades primárias de saúde e que, apesar de a maioria não ser portadora de transtorno mental que justifique a prescrição, como têm acesso direto ao médico, torna-se fácil exigi-la junto com a prescrição de outros medicamentos para tratar suas doenças de base. O fato de a amostra do estudo ser majoritariamente do sexo feminino (78,1%) ajuda a explicar o expressivo percentual de uso de hipnóticos/sedativos, pois a população que mais consome essas substâncias, fazendo uso abusivo, inclusive, é a do sexo feminino: aquela que mais busca e frequenta unidades de atenção primária à saúde21.

Dentre as limitações deste estudo, apontam-se: o impedimento de serem feitas generalizações para a população-alvo por conta de sua amostra não probabilística; as informações ausentes sobre o uso de maconha, hipnóticos/sedativos e opioides, que podem ter diminuído discretamente a prevalência de uso dessas substâncias nos últimos três meses; a não inclusão de indivíduos com alguma incapacidade mental/cognitiva provocada por dependência grave, o que pode ter diminuído a prevalência de uso de algumas drogas ilícitas; a possibilidade de usuários de drogas ilícitas não frequentaram a unidade de atenção primária à saúde em que o estudo foi conduzido; e a coleta de dados ter sido por meio de entrevista. É possível que esse método de obtenção de dados tenha feito alguns entrevistados negarem o uso de drogas ilícitas nos últimos três meses por constrangimento diante do entrevistador, ainda que este tenha garantido o anonimato das informações prestadas.

Destaca-se também a impossibilidade de construção de um modelo de regressão logística multivariada que identificasse fatores associados a necessidade de intervenção por uso de outras drogas, além do álcool e do tabaco, porque a frequência de uso delas nos últimos três meses pelos entrevistados foi muito baixa ou, até mesmo, inexistente. No que diz respeito ao uso de maconha, especificamente, reconhecemos que, ainda que pouco expressiva, sua frequência (1,9%) merece ser destacada. Isso porque a maconha é a droga ilícita mais consumida em todo o mundo que causa danos à saúde, além de problemas de ordem psicossocial em seus usuários1. Logo, acreditamos que rastreamentos como o aqui relatado, acompanhados de intervenção breve, podem auxiliar na modificação da conduta de usuários dessa substância.

Por fim, acredita-se que os resultados apresentados colaboram para o preenchimento de importante lacuna sobre o uso de álcool e outras drogas entre pessoas que buscam serviços de atenção primária em saúde, além de corroborar achados de outros estudos no que se refere a fatores de risco para necessidade de intervenção por uso de álcool e tabaco.

CONCLUSÃO

Os resultados do presente estudo apontam características socioeconômicas (baixa escolaridade, renda domiciliar elevada e não possuir religião) como determinantes de necessidade de intervenção breve por uso de álcool e tabaco. Logo, profissionais da atenção primária à saúde devem, com o auxílio do ASSIST, rastrear sistematicamente o uso de álcool e outras drogas a fim identificar precocemente pessoas que necessitam de intervenção breve por uso dessas substâncias antes mesmo de elas buscarem serviços de saúde por problemas decorrentes desse hábito.

REFERÊNCIAS

1. World Health Organization. Global Health Risks. Genebra (Swi): World Health Organization; 2009.
2. Carlini EA, Galduróz JCF, Noto AR, Fonseca AM, Carlini CM, Oliveira LG, et al. II Levantamento Domiciliar sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil: estudo envolvendo as 108 maiores cidades do país: 2005. São Paulo (SP): CEBRID Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas: Unifesp – Universidade Federal de São Paulo; 2005.
3. Ministério da Saúde (BR). A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2004.
4. Jomar RT, Abreu AMM. Intervenções breves para uso problemático de álcool: potencial de aplicação na prática do enfermeiro. Rev Enferm UERJ. 2012;20(3):386-90.
5. Humeniuk R, Henry-Edwards S, Ali R, Poznyak V, Monteiro MG. The alcohol, smoking and substance involvement screening test (ASSIST): manual for use in primary care. Genebra (Swi): World Health Organization; 2010.
6. Guidolin BL, Silva Filho IG, Nogueira EL, Ribeiro Junior FP, Cataldo Neto A. Patterns of alcohol use in an elderly sample enrolled in the Family Health Strategy program in the city of Porto Alegre, Brazil. Ciênc Saúde Coletiva. 2016;21(1):27-35.
7. Vargas D, Bittencourt MN, Barroso LP. Padrões de consumo de álcool de usuários de serviços de atenção primária à saúde de um município brasileiro. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(1):17-25.
8. Jomar RT, Abreu AMM, Griep RH. Padrões de consumo de álcool e fatores associados entre adultos usuários de serviço de atenção básica do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(1):27-38.
9. Abreu AMM, Jomar RT, Souza MHN, Guimarães RM. Harmful consumption of alcoholic beverages among users of a Family Health Unit. Acta Paul Enferm. 2012;25(2):291-5.
10. Kassada DS, Marcon SS, Pagliarini MA, Rossi RM. Prevalence of drug abuse among pregnant women. Acta Paul Enferm. 2013;26(5):467-71.
11. Henrique IFS, Micheli D, Lacerda R.B, Lacerda LA, Formigoni MLOS. Validação da versão brasileira do teste de triagem do envolvimento com álcool, cigarro e outras substâncias (ASSIST). Rev Assoc Med Bras. 2004;50(2):199-206.
12. Laranjeira R, Pinsky I, Sanches M, Zaleski M, Caetano R. Alcohol use patterns among Brazilian adults. Rev Bras Psiquiatr. 2010;32:231-41.
13. Malta DC, Oliveira TP, Vieira ML, Almeida L, Szwarcwald CL. Use of tobacco and exposure to tobacco smoke in Brazil: results from the National Health Survey 2013. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(2):239-48.
14. Queiroz NR, Portella LF, Abreu AMM. Association between alcohol and tobacco consumption and religiosity. Acta Paul Enferm. 2015;28(6):546-52.
15. Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas do Álcool e Outras Drogas [Internet]. São Paulo: INPAD; 2013. Acessado em: 17 ago. 2016.
16. Monteiro CA, Cavalcante TM, Moura EC, Claro RM, Szwarcwald CL. Population-based evidence of a strong decline in the prevalence of smokers in Brazil (1989-2003). Bull World Health Organ. 2007;85(7):527-34.
17. Giovino GA, Mirza SA, Samet JM, Gupta PC, Jarvis MJ, Bhala N, et al. Tobacco use in 3 billion individuals from 16 countries: an analysis of nationally representative cross-sectional household surveys. Lancet. 2012;380(9842):668-79.
18. Barros AJD, Cascaes AM, Wehrmeister FC, Martínez-Mesa J, Menezes AMB. Tabagismo no Brasil: desigualdades regionais e prevalência segundo características ocupacionais. Ciênc Saúde Coletiva. 2011;16(9): 3707-16.
19. Silva ST, Martins MC, Faria FR, Cotta RMM. Combate ao Tabagismo no Brasil: a importância estratégica das ações governamentais. Ciênc Saúde Coletiva. 2014;19(2):539-52.
20. Garcia LP, Freitas LRS. Heavy drinking in Brazil: results from the 2013 National Health Survey. Epidemiol Serv Saúde. 2015;24(2):227-37.
21. Moura DCN, Pinto JR, Martins P, Pedrosa KA, Carneiro MGD. Uso abusivo de psicotrópicos pela demanda da Estratégia Saúde da Família: revisão integrativa da literatura. Sanare. 2016;15(2):136-44.