versão impressa ISSN 1679-4508versão On-line ISSN 2317-6385
Einstein (São Paulo) vol.13 no.3 São Paulo jul./set. 2015 Epub 19-Maio-2015
http://dx.doi.org/10.1590/S1679-45082015RC2829
A terapia anticoagulante é frequentemente prescrita na prática médica, sendo que uma das mais utilizadas é a varfarina sódica.
Uma complicação extremamente rara é a necrose de pele e subcutânea, com incidência variando de 0,01% a 0,1%. As áreas mais afetas são as mamas, nádegas e coxas.(1) O primeiro caso de necrose de pele afetando a mama foi relatado por Flood et al. em 1943.(2) Desde então, quase 200 casos de necrose de pele foram relatados, porém menos de 40 envolveram o tecido mamário.(3)
Tal ocorrência tem curso de ação irreversível, e o diagnóstico precoce e desbridamento cirúrgico são recomendados para prevenir morbidade significativa e mortalidade.(4)
Paciente de 62 anos internada no Hospital das Clínicas, em São Paulo (SP), devido à dor na mama direita, inchaço e escurecimento iniciados 3 dias antes da internação. Os sintomas iniciaram no mamilo e se espalharam ao longo da mama direita. Seis dias antes das queixas, a paciente iniciou tratamento com varfarina sódica 2,5mg/dia para trombose venosa profunda da perna esquerda, porém sem uso simultâneo de heparina. A trombose ocorreu em razão de complicação na primeira sessão de braquiterapia para tratamento de câncer cervical avançado. A paciente também recebia inibidores da enzima de conversão de angiotensina (captopril 150mg/dia) para hipertensão arterial e fenobarbital 50mg/dia para epilepsia. Ela negou consumo regular de álcool ou tabagismo.
Na internação, o estado geral da paciente era regular, com ausência de febre, pressão sanguínea de 130x90mmHg e índice de massa corporal de 32. Os exames abdominais, pulmonares e cardiológicos estavam normais. A mama esquerda estava normal, porém a direita apresentava inchaço e ulceração extensa com base necrótica envolvendo a área do mamilo e central (Figura 1).
Os testes laboratoriais revelaram hematócrito de 29%, hemoglobina de 9,8mg/dL, contagem de glóbulos brancos de 6.450 e contagem de plaquetas de 142.000/mL. O tempo de protrombina foi de 14,7 segundos (normal: 11 segundos) com taxa internacional normalizada (INR) de 1,3 e tempo tromboplástico parcial normal. A fibrinogenemia também foi normal, e os produtos de desintegração de fibrina estavam altos (578μg/mL). A hipótese do diagnóstico foi necrose da mama direita induzida pelo uso da varfarina. Administraram-se altas doses de heparina e vitamina K. Após 4 dias, como não houve curso favorável, a paciente foi submetida a mastectomia simples. Não foi observada intercorrência, e a administração de heparina foi reiniciada 12 horas após a cirurgia. A paciente teve boa evolução pós-operatória e recebeu alta. A dose de terapia anticoagulante de 2,5mg/dia de varfarina foi readequada, sem o aparecimento de outras complicações.
A necrose de pele é uma complicação incomum da terapia anticoagulante, e o envolvimento da mama ocorre em apenas 10 a 15% de casos.(3) A maioria das lesões necróticas aparece em áreas com excesso de tecido subcutâneo. Essas lesões geralmente afetam mamas, coxas, braços, nádegas, mãos, pontas dos dedos, pernas, pés, nariz, face, abdômen, costas e pênis.(5) As mulheres são mais afetadas do que os homens. Lesões múltiplas têm sido relatadas em 35% dos casos, algumas vezes simetricamente.(3,5)
Uma revisão da literatura de artigos publicados em língua inglesa incluindo 25 manuscritos localizou 38 relatos de necrose de mama após uso de varfarina. A média de idade relatada nesses estudos foi de 16 a 93 anos.(3,5) Não houve diferença significativa entre o envolvimento da mama direita ou esquerda, sendo que necrose bilateral também foi relatada.(5,6) Geralmente, essa condição é observada em mulheres obesas de meia idade e que recebem terapia com varfarina para trombose venosa profunda ou outras doenças tromboembólicas, tal como ocorreu com a paciente deste relato de caso.(1,2)
A lesão inicial consiste em eritematosa bem demarcada e área dolorosa, que aparece entre 3 e 6 dias após o início da anticoagulação.(6,7) Essa área pode desenvolver aspecto em peau d’orange (“casca de laranja”).(5) A área afetada evolui para equimose escura, progredindo para tecido necrótico.(5,6) A histologia mostra infartos cutâneos, hemorragias, obstrução das arteríolas pré-capilares e depósitos fibrinosos, e não evidencia inflamação vascular ou perivascular.(1,6,7) Alguns casos avançados podem imitar carcinoma inflamatório e, portanto, a realização de biópsia precocemente ajuda no diagnóstico diferencial.(1)
A etiologia exata e o motivo para sua predileção para tecido adiposo permanecem incertos, mas muitos autores acreditam que é uma condição multifatorial, que pode incluir trauma, perfusão sanguínea inadequada e variação de temperatura.(1,5,7) O provável mecanismo que desencadeia tal complicação é a pequena trombose das veias cutâneas, devido à inibição da proteína C e S, e da vitamina K-dependente de anticoagulante endovenosos. Tal situação ocorre antes da inibição de outros fatores e leva à tendência trombolítica entre indivíduos que apresentam deficiências homozigota, heterozigota ou de absorção de proteínas C e S.(8,9) Por esta razão, muitos autores recomendam administração concomitante de heparina nos primeiros dias de terapia anticoagulante.(9)
Uma vez diagnosticado, a administração de alta dose de heparina deve ser iniciada, além de vitamina K para restauração dos níveis de proteínas C e S.(1,6) O tratamento inclui a suspensão da varfarina, porém tal questão não tem demonstrado alteração no resultado. Sucesso tem sido relatado no reinício cauteloso da terapia com varfarina, cujo início deve ser sempre associado à anticoagulação parenteral.(6) Morbidade significativa e diversas mortes têm sido relatadas.(1,6,10) Todavia, o tratamento conservador deve ser considerado. Embora o tratamento conservador deva ser considerado e metade dos casos demande o desbridamento,(1,2,7) a mastectomia eventualmente é necessária.(1,7) Não foi observado risco de necrose cutânea induzida por inibidores da enzima de conversão de angiotensina, assim como como por fenobarbital. Além disso, os medicamentos antiepilépticos tendem a reduzir a ação anticoagulante.(8)
O caso descrito neste relato corrobora as características comuns descritas na literatura, apesar da complicação específica deste caso: mulher, 62 anos, obesa, com ocorrência de necrose no 6 dia após introdução de anticoagulante oral para trombose venosa. Apesar de a medicação ter sido reduzida e suspensa no diagnóstico, foi necessário realizar mastectomia simples, em razão da rápida evolução da necrose da pele.