versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.39 no.4 São Paulo out./dez. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20170084
Nefrite intersticial granulomatosa (NIG) é uma condição rara e, dentre suas possíveis etiologias, estão medicamentos, agentes infecciosos, vasculites e sarcoidose.1
A sarcoidose é uma doença de etiologia desconhecida, cuja característica é a formação de granulomas nos tecidos, principalmente no trato respiratório inferior. Lesão renal é incomum, sendo descrita em 0,7 a 4,3% dos casos. As principais formas de acometimento renal estão relacionadas à alteração no metabolismo do cálcio, manifestando-se como nefrocalcinose e nefrolitíase.1
O objetivo desta descrição é relatar um caso de NIG em paciente com disfunção renal de causa desconhecida, cuja biópsia renal, associada com as manifestações clínicas sistêmicas, contribuiu para o diagnóstico de sarcoidose.
Trata-se de paciente do sexo masculino, com 65 anos e ascendência oriental, divorciado, metalúrgico, aposentado. Foi admitido no Pronto-Socorro, referindo náuseas e mal-estar há uma semana. Apresentava parotidite bilateral há 15 dias, e no início tomou nimesulida por três dias, sem melhora. Negava febre, perda de peso e outras queixas. Como antecedentes patológicos, apresentava: hiperuricemia, gastrite e dislipidemia, em uso crônico de alopurinol, ranitidina e sinvastatina para tratamento de cada uma dessas condições, respectivamente. Ao exame físico, na admissão, persistia com aumento de parótidas bilateralmente, e essas eram indolores à palpação.
Foram solicitados os seguintes exames laboratoriais inicialmente: hemograma, que revelou anemia normocítica e normocrômica (Hb 9,8g/dl e Ht 28,7%), 8.140 leucócitos/mm3 com 7,6% de eosinófilos e plaquetas normais; creatinina sérica de 8,65 mg/dl e ureia de 118 mg/dl; os eletrólitos encontravam-se dentro dos limites da normalidade, exceto por cálcio total de 12,5 mg/dl. Na urinálise, foram observados 11.000 leucócitos/ml, 1.000 eritrócitos/ml e proteínas 0,5 g/l.
Diante do quadro de hipercalcemia e disfunção renal, foi prescrita hidratação venosa vigorosa, com boa resposta (Tabela 1), ou seja, houve diminuição progressiva de ureia e creatinina, além da normalização do cálcio, sem necessidade de outras medidas para hipercalcemia.
Tabela 1 Evolução laboratorial durante internação
D1 | D2 | D3 | D4 | D5 | D6 | D7 | D8 | D9 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Creatinina(mg/dl) | 8,65 | 7,94 | 7,54 | 7,56 | 7,2 | 6,41 | 5,3 | 4,92 | 4,58 |
Ureia (mg/dl) | 118 | 114 | 111 | 103 | 100 | 92 | 81 | 72 | 71 |
Cálcio total/iônico (mg/dl) | 12,5 | 12 | 9,7/1,28 | 8,6 | 9,3 | 8,9 |
Outros exames complementares disponíveis neste momento mostraram fósforo 5,3 mg/dl, PTH 7,7 pg/ml, 25-OH-vitamina D 4 ng/ml, albumina sérica 3,9 g/dl.
Foi realizada ultrassonografia de rins e vias urinárias, que mostrou rim direito de 10,6 cm e rim esquerdo de 10,8 cm, com parênquima renal de espessura e ecogenicidade preservadas. Havia cálculo de 0,5 cm no grupamento calicinal inferior direito, sem sinais de dilatação do sistema pielocalicinal.
A ultrassonografia cervical mostrou parótidas de dimensões aumentadas, ecotextura heterogênea, à custa de múltiplas lesões císticas de permeio, associadas a alguns linfonodos intraparotídeos proeminentes. As glândulas submandibulares estavam com aspecto preservado e não havia linfonodomegalia.
Vale ressaltar que as parótidas retornaram ao tamanho habitual progressivamente ao longo da internação.
A radiografia de tórax evidenciou discreto infiltrado intersticial bilateral. Na sequência, a tomografia computadorizada de tórax mostrou aumento de linfonodos mediastinais, infiltrado em vidro fosco difuso, predominante em bases, e pequenos granulomas intercisurais (Figura 1).
Figura 1 Tomografia do tórax: infiltrado difuso em padrão vidro fosco, principalmente nas bases pulmonares, e espessura septal aumentada.
O ecocardiograma transtorácico revelou fração de ejeção de 47%, disfunção diastólica moderada de ventrículo esquerdo e PSAP de 38 mmHg, além de derrame pericárdico mínimo.
Ao longo da evolução, observou-se estabilização da função renal, com queda da creatinina sérica a níveis em torno de 3,5 mg/dl e, a fim de elucidar a etiologia da lesão renal, optou-se por realizar biópsia renal (Figuras 1 a 4).
Figura 2 Fragmento de biópsia renal (coloração por HE), exibindo alargamento intersticial por infiltrado inflamatório (HE - 40x).
Figura 3 Biópsia renal (impregnação com prata) exibindo alargamento intersticial com áreas nodulares. Coloração negativa, correspondendo a granulomas (prata de Jones - 40x).
Figura 4 Seção histológica renal com aglomerado intersticial de histiócitos epitelioides e célula gigante multinucleada (PAS - 100x).
No fragmento da biópsia destinado à microscopia ótica, foram identificados 22 glomérulos, três globalmente esclerosados, os demais com celularidade conservada e alças capilares periféricas de contornos regulares. Os túbulos apresentavam alterações epiteliais regenerativas, sinais de atrofia, circundados por interstício alargado por edema e infiltrado inflamatório de células linfoides. Havia agregados de histiócitos de permeio, com características epitelioides e células gigantes multinucleadas, além de fibrose moderada. O exame por imunofluorescência revelou ausência de depósitos de imunoglobulinas, frações do complemento e fibrinogênio. Pesquisa para BAAR e fungos no tecido renal resultou negativa.
Diante da constatação de lesão granulomatosa não caseosa em rim, alterações radiológicas bastante sugestivas e das manifestações clínicas sistêmicas, excluindo-se causas medicamentosas e infecciosas, firmou-se o diagnóstico de sarcoidose e foi iniciado o tratamento com prednisona, 40 mg/dia, por via oral.
Foi dosada a enzima conversora de angiotensina I sérica, que se mostrou elevada; o resultado foi 87,72 mmol/ml/min (valor de referência 25-30).
O paciente ficou em acompanhamento ambulatorial nos Serviços de Nefrologia e de Pneumologia (Doenças Intersticiais) da UNIFESP e, após oito semanas de tratamento, apresentava níveis séricos de creatinina de 2,5 mg/dl e Cai de 1,38 mg/dl.
NIG é uma causa rara de lesão renal aguda. É diagnosticada em 0,5 a 0,9% das biópsias de rim nativo e tem diversas possíveis causas, entre as quais se destacam as medicamentosas, infecciosas e autoimunes2 (Tabela 2). Joss et al.2 analisaram uma série de 18 casos ao longo de 15 anos e constataram que nove casos eram idiopáticos, cinco relacionados à sarcoidose e dois ao uso de medicação. Os pacientes tinham graus variados de insuficiência renal e proteinúria.
Tabela 2 Causas de nefrite intersticial granulomatosa
Medicamentosas | Alopurinol, omeprazol, furosemida, captopril, analgésicos (paracetamol, AINEs), antibióticos (penicilinas, quinolonas, aciclovir, vancomicina, rifampicina) |
---|---|
Infecciosas | Tuberculose, hanseníase, toxoplasmose, candidíase, criptococose |
Inflamatórias | Granulomatose com poliangeíte, granulomatose eosinofílica com poliangeíte, sarcoidose |
Miscelânea | Pigmento de ácido úrico, heroína, nefrite tubulointersticial com uveíte (TINU) |
Dentre as causas medicamentosas, os antibióticos representam uma das principais classes que podem levar à NIG. Shah et al.3 relataram um caso de NIG relacionado à exposição à doxiciclina em um paciente de 69 anos de idade que, além de insuficiência renal, apresentava rash cutâneo e alteração mental.
Outras drogas relacionadas à NIG são analgésicos, diuréticos e alopurinol.3
A principal etiologia infecciosa é a tuberculose. O envolvimento renal é insidioso e muitas vezes é diagnosticado post-mortem.3 Outros agentes importantes são fungos e bactérias atípicas.3
Em pacientes pediátricos deve ser considerado o diagnóstico de artrite granulomatosa pediátrica (AGP), que pode ser uma condição familiar (síndrome de Blau), ou esporádica (sarcoidose de início precoce). Ao contrário da sarcoidose, AGP tem herança autossômica dominante e é causada por mutações no gene NOD2, também conhecido como CARD15, localizado no cromossomo 16.10 Nessa entidade há infiltração granulomatosa não caseosa nos tecidos afetados, rash cutâneo, artrite e uveíte.11
O diagnóstico de NIG na sarcoidose é raro. A inflamação granulomatosa no parênquima é mais comumente encontrada em séries post-mortem em até 40% dos casos. Isso ocorre porque esse tipo de acometimento não costuma levar à disfunção renal. A maioria dos pacientes com esse tipo de lesão também apresenta manifestações extrarrenais (como ocular, pulmonar e cutânea), mas ela também pode ocorrer de forma isolada.2
O envolvimento renal na sarcoidose ocorre mais comumente devido às desordens no metabolismo do cálcio, consequente à produção desregulada de 1,25-dihidroxivitamina D3 pelos macrófagos ativados no granuloma. Hipercalcemia é detectada em 10% dos pacientes, enquanto hipercalciúria é mais comum, sendo vista em até 60%.1
Na sarcoidose há produção de enzima conversora de angiotensina pelos granulomas e sua dosagem pode estar elevada em 60% dos casos.7 Seus níveis podem ainda ser influenciados por polimorfismos genéticos.7 No estudo de Mahévas et al.,8 55% dos pacientes estudados apresentavam essa alteração.
A enzima encontrava-se aumentada no caso apresentado, porém, ressalta-se que sua dosagem não é específica, podendo ser encontrada em doenças como tuberculose, hanseníase, linfoma, diabetes, hipertireoidismo, entre outras.9 Seu acompanhamento ao longo da evolução da sarcoidose não tem papel bem estabelecido.4
Alterações glomerulares também podem ser encontradas, como a doença de lesões mínimas, a glomerulopatia membranosa e a glomeruloesclerose segmentar e focal.3 No presente caso, a avaliação histopatológica renal evidenciou glomérulos dentro da normalidade, com importante acometimento túbulo-intersticial.
Corticoterapia é o pilar do tratamento, sendo usados 20 a 40 mg de prednisona por 6 a 12 semanas, com posterior redução da dose.4 Em casos com comprometimento neurológico, renal, cardíaco ou oftalmológico, recomenda-se a administração de 1 mg/kg/dia de prednisona, por via oral. Em casos de falha de resposta à corticoterapia ou de existirem contraindicações, podem ser usados agentes imunossupressores no tratamento dessa condição, como azatioprina e micofenolato mofetil.4 Nos últimos anos, tem sido utilizado o antagonista de TNF-alfa infliximab com boa resposta nos casos refratários.4
No presente caso, os dados clínicos, laboratoriais, radiológicos e patológicos em conjunto contribuíram para firmar o diagnóstico de sarcoidose, entidade passível de tratamento com resposta ao corticoide. O paciente recuperou parcialmente sua função renal e apresentou melhora clínica sistêmica.