versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.3 São Paulo jul./set. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160058
A doença por IgG4 é uma condição fibro-inflamatória sistêmica recentemente descrita, caracterizada por lesões tumefativas, denso infiltrado linfo-plasmocitário com plasmócitos expressando IgG4, fibrose estoriforme e frequentemente níveis séricos elevados de IgG41. A reação autoimune pode acometer virtualmente qualquer órgão, porém tem maior ocorrência no pâncreas, trato biliar, glândulas salivares e lacrimais, retroperitônio e linfonodos.1-7 Sua fisiopatologia permanece pouco clara, porém diversas condições previamente identificadas isoladamente, como tireoidite de Riedel, tumor de Kuttner e síndrome de Mikulicz, hoje se mostram parte do espectro da doença por IgG4.1-3 Neste relato de caso descrevemos a apresentação clínica e a evolução de um paciente com nefrite túbulo-intersticial (NTI), insuficiência renal grave e manifestações sistêmicas da doença relacionada a IgG4.
Homem de 45 anos, branco, motorista, tabagista moderado, com um ano de evolução de inapetência, perda involuntária de 10 kg, cansaço aos médios esforços e indisposição. Ao exame físico, apresenta regular estado geral, emagrecido, com linfoadenomegalias inguinais de 1,5 cm à direita, móveis, elásticas, indolores. Abdome depressível, com desconforto à palpação do epigástrio. Não havia outros achados relevantes.
Achados laboratoriais significativos incluíam anemia normocítica e normocrômica, eosinofilia periférica (12%), proteína C reativa 33,3 mg/L, creatinina sérica 5,18 mg/dL (filtração glomerular estimada 12 mL/min/1,73 m2) e proteinúria de 24 h 1,34 g. No sedimento urinário 3 leucócitos/µL e 29 hemácias/µL. A imunoeletroforese de proteínas séricas e urinárias revelou um pico biclonal na região gama, e na imunofixação foi identificado IgG-lambda. A dosagem de IgG total sérica foi 6132 mg/dL (referência: 700-1600 mg/dL).
A tomografia de tórax mostrou linfonodomegalias mediastinais, a maior medindo 2,7 x 1,2 cm, e de abdome (Figura 1) revelou aumento do tamanho renal bilateralmente (rim direito com 14 cm, rim esquerdo com 15,7 cm), sinais de pancreatite crônica com calcificações grosseiras em cauda e corpo do pâncreas e várias adenomegalias abdominais medindo até 1,3 cm de diâmetro; presença de adenomegalias no hilo hepático, junto do tronco celíaco, periaórticas, e em cadeias ilíacas.
Figura 1 Tomografia computadorizada de abdome total sem contraste. A. Calcificações em tecido pancreático e presença de linfoadenomegalia periaórtica. B. Aumento do tamanho renal, bilateralmente.
Foram realizadas biópsias de medula óssea, pele, rim e linfonodo inguinal. Todas as amostras foram negativas para a coloração vermelho congo. A biópsia de medula óssea mostrou medula hipocelular e hipoproliferativa, com imunofenotipagem normal. A biópsia cutânea apresentava inflamação crônica moderada, predominantemente plasmocitária, em artéria de médio calibre.
A biópsia renal evidenciou parênquima renal com expansão de matriz mesangial e leve hipercelularidade mesangial e presença de denso infiltrado plasmocitário policlonal e eosinófilos caracterizando uma NTI aguda, com fibrose estromal em padrão estoriforme e atrofia tubular extensas, e reação giganto-celular intraluminal focal (Figura 2). A porcentagem estimada de fibrose interstiticial e atrofia tubular foi 70%. A imunofluorescência não revelou depósitos imunes. A análise imunohistoquímica do tecido renal para a pesquisa de células positivas para IgG4 foi inconclusiva e, por desgaste da amostra, não foi possível a repetição.
Figura 2 Nefrite túbulo-intersticial aguda com fibrose em padrão estoriforme. A. Presença de infiltrado inflamatório intersticial com predomínio de plasmócitos, fibrose intersticial e atrofia tubular, expansão de matriz mesangial glomerular (HE, magnificação 200x). B. Atrofia tubular e fibrose intersticial em padrão estoriforme (PAS, magnificação 400x). C. Extenso infiltrado plasmocitário associado a fibrose estromal (HE, magnificação 100x). D. Imunohistoquímica com marcação positiva para plasmócitos CD138+ no tecido renal (DAB, magnificação 200x).
A biópsia linfonodal mostrava expansão da região paracortical às custas de abundantes plasmócitos, e áreas de fibrose. A imunohistoquímica do linfonodo revelou uma população linfoide mista, com positividade para linfócitos B CD20+, linfócitos T CD3+, cadeias leves Kappa e Lambda, plasmócitos CD138+, imunoglobulinas classe IgG e IgG4. Dentre os plasmócitos, foi detectada presença de > 100 células positivas por campo, grande aumento para IgG4+, com uma relação IgG4+/IgG+ > 80% (Figura 3).
Figura 3 Biópsia de linfonodo com marcação positiva para IgG4. A. Expansão parafolicular apresentando população linfoide mista e diversos agregados de plasmócitos policlonais, com áreas de fibrose. A marcação imunohistoquímica realizada posteriormente revelou positividade para linfócitos B CD20+, linfócitos T CD3+, cadeia leve Kappa e Lambda e plasmócitos CD138+. B. Imunohistoquímica com marcação positiva para imunoglobulina classe IgG. C. Imunohistoquímica com marcação para imunoglobulina classe IgG4, com > 100 células positivas/campo de grande aumento. A relação IgG4+/IgG+ foi > 80% (Cortesia do Laboratório Bacchi, São Paulo).
O diagnóstico final com base nos achados clínicos e testes laboratoriais foi doença relacionada à IgG4 com extenso acometimento renal, linfonodal e pancreático. Foi iniciado tratamento com prednisona na dose de 60 mg/dia. Aos dois meses, a creatinina havia reduzido para 3,02 mg/dL e aos 5 meses para 2,59 mg/dL, com índice proteinúria/creatininúria de 0,3 (Tabela 1). Como a resposta ao corticosteroide foi parcial, foi iniciado tratamento com micofenolato sódico, na dose de 720 mg 2x/dia. Atualmente, encontra-se clinicamente estável, com doença renal crônica estágio 4.
Tabela 1 Evolução dos exames laboratoriais durante a internação hospitalar e no último seguimento ambulatorial do paciente
12/02/15 | 24/02/15 | 14/03/15 | 06/04/15 | 11/05/15 | 21/07/15 | 24/08/15 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
Hemoglobina (g/dl) | 12,0 | 11,3 | 10 | 11,6 | 12,7 | 12,6 | 12,1 |
Leucócitos totais ( x103 uL) | 13800 | 13500 | 10900 | 10880 | 16600 | 16650 | 13100 |
Plaquetas (x 103 uL) | 316.000 | 374.000 | 333.000 | 298.000 | 296.000 | 285.000 | 355.000 |
Creatinina (mg/dl) | 5,18 | 4,88 | 4,60 | 2,94 | 3,02 | 3,39 | 2,59 |
TFGe CKD-EPI (ml/min/1,73 m2) | 12 | 13 | 14 | 24 | 23 | 21 | 29 |
Proteína/creatinina em amostra urina | 1,34 | 0,3 | 0,7 | 0,3 | |||
Albumina sérica (g/dl) | 2,3 | 2,1 | 3,8 | 4,0 | |||
TGO/TGP (UI/L) | 28/21 | 22/18 | 30/23 | 30/22 | |||
IgG total sérica (700-1600 mg/dL) | 6132 |
A doença por IgG4 é multissistêmica, com espectro de apresentação clínica variável de acordo com o acometimento do órgão ou sistema afetado. Múltiplos órgãos podem ser envolvidos, como o trato biliar, glândulas salivares, tecidos periorbitais, rins, pulmões, retroperitôneo, tireoide, mediastino, linfonodos, meninges, aorta, próstata, pele e pericárdio, entre outros.1,3-12 Pacientes frequentemente apresentam massas de crescimento subagudo, muitas vezes pronunciado, como pseudotumor orbital, fibrose retroperitoneal,1,3,8 nefromegalia,10,11 ou, raramente, destruição óssea13.
Muitos pacientes com envolvimento extrarrenal terão um acometimento multissistêmico, com evolução subaguda para disfunção orgânica, como insuficiência renal6 e hepática7 em alguns meses. Neste caso, o paciente foi submetido à extensa investigação por suspeita de neoplasia oculta, particularmente hematológica, antes de se estabelecer o diagnóstico final.
A elevação da concentração sérica e tecidual de IgG4 é útil para o diagnóstico da doença, mas não constitui um marcador específico. A característica mais importante é o padrão histopatológico clássico, que consiste em um denso infiltrado linfo-plasmocitário organizado em padrão estoriforme, flebite obliterativa e um infiltrado eosinofílico leve a moderado.1 O diagnóstico requer a presença de pelo menos dois desses achados, associados à estreita correlação clínica-patológica.9
Esse padrão, entretanto, pode sofrer variações dependendo do órgão afetado; o rim, por exemplo, pode apresentar NTI aguda e outros padrões de lesão glomerular, principalmente glomerulonefrite membranosa com anticorpo anti-PLA2R negativo,14 como enfatizado em revisões recentes.1,3,9,10 O padrão histológico da NTI pode estar relacionado ao estágio evolutivo da doença, como (a) NTI aguda com mínima fibrose, (b) padrão inflamatório mais celular com fibrose estoriforme e (c) padrão fibrótico e pauci-celular.10 No caso relatado, o segundo padrão ficou caracterizado na histopatologia, sugerindo um estágio intermediário da evolução da doença, embora com fibrose já extensa.
Apesar de não ser um achado patognomônico ou de não excluir a doença quando ausente, a imunohistoquímica do tecido mostra positividade para IgG4, sendo a relação IgG4/IgG total > 40%, ou a presença de 10 ou mais células produtoras de IgG4 por campo de grande aumento (CGA), o que auxilia no diagnóstico da doença.1,3,9,10 Cheuk et al.12 sugerem que a presença de achados morfológicos característicos associados a um número absoluto de células IgG4+ > 50/CGA e uma relação IgG4/IgG > 40% seriam compatíveis com o diagnóstico. Estes pontos de corte para o diagnóstico, entretanto, podem variar entre os órgãos afetados.3 Em casos avançados, nos quais há predomínio de fibrose extensa e presença de poucos plasmócitos, o diagnóstico pode ser mais difícil.
Outros achados podem incluir eosinofilia periférica, IgE elevada e manifestações de atopia. A IgG4 sérica pode estar aumentada (> 135 mg/dL) em 70% dos casos, com hipergamaglobulinemia policlonal em 61% dos pacientes.1,3,9,10 O aumento dos níveis séricos de IgG4 pode predizer atividade da doença durante o tratamento,2 mas a sua acurácia ainda não foi definida.1 Parece haver correlação entre a concentração sérica de IgG4 e o número de órgãos acometidos.9 A citometria de fluxo pode mostrar aumento de plasmablastos; fator antinuclear e fator reumatoide serão reagentes em 20-30% dos casos.3
O tratamento da doença relacionada a IgG4 depende do tipo de acometimento tecidual. Enquanto alguns pacientes apresentam doença indolente (particularmente adenopatias e parotidites), outros têm envolvimento multiorgânico grave.1,2,10 Recentemente, foi publicada uma diretriz internacional sobre o tratamento da doença relacionada a IgG4.2 Quando órgãos vitais são afetados, o tratamento deve ser instituído de maneira imediata e agressiva pelo risco de falência orgânica, mesmo em casos subclínicos. Em casos nos quais já existe fibrose extensa, o impacto do tratamento na recuperação funcional do órgão pode ser pequeno.1,2 Além disso, a recidiva da doença é frequente, e deve ser retratada com imunossupressores.1
Diversos esquemas de tratamento têm sido propostos. Corticosteroides têm bom efeito sobre a doença inflamatória aguda. Um esquema inicial propõe o uso de 0,6 mg/kg/dia de prednisona por 2-4 semanas, com redução para 5 mg/dia em 6 meses e dose de manutenção de 2,5-5 mg/dia por 3 anos. Antiproliferativos, como micofenolato mofetil ou azatioprina, e metotrexate podem ser usados para evitar ou diminuir os eventos adversos dos corticosteroides,1,2,10,11 mas a sua eficácia não foi testada em ensaios clínicos. Em casos refratários, rituximabe tem sido indicado,1,2 havendo relatos isolados de sucesso em longo prazo.15 Em ensaio clínico aberto, Carruthers et al.16 demonstraram a eficácia do rituximabe em 30 pacientes com doença relacionada a IgG4, com 47% de remissão completa aos 6 meses e 40% em remissão aos 12 meses, após duas doses de 1000 mg de rituximabe sem uso concomitante de corticosteroide.
Existe a observação de que não há correlação entre o padrão histológico, o grau de fibrose e a resposta à terapia. Mesmo pacientes com fibrose extensa na biópsia mostram resposta ao tratamento com corticosteroide e outros imunossupressores.1,10 No presente caso, apesar do elevado grau de fibrose renal, o paciente aumentou a filtração glomerular de 12 para 29 ml/min/1,73 m2 após 6 meses de tratamento.
Em conclusão, a importância do reconhecimento desta entidade clínica reside em sua descoberta recente pela comunidade médica e nas implicações da falência de órgãos acometidos caso o diagnóstico não seja precoce. Deve-se enfatizar o caráter multissistêmico da doença e suspeitar clinicamente deste diagnóstico quando sintomas e sinais estiverem presentes em diversos órgãos. O diagnóstico e o tratamento precoces melhoram o prognóstico dos pacientes afetados.