versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.40 no.3 São Paulo jul./set. 2018 Epub 18-Jun-2018
http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2018-0015
A síndrome nefrite tubulointersticial e uveíte (TINU) é uma entidade rara,1,2 caracterizada por inflamação ocular e renal na ausência de outras doenças sistêmicas, sendo um diagnóstico de exclusão.1,3,4 As manifestações podem não ser concomitantes,2 o que dificulta o diagnóstico.
Representa aproximadamente 5% dos casos de nefrite tubulointersticial5 e menos de 2% dos casos de uveíte, sendo responsável por um terço dos casos de uveíte anterior bilateral pediátricos.1,2
Descrevemos três casos de TINU em idade pediátrica.
Adolescente de 13 anos, sexo feminino, recorreu ao Serviço de Urgência por visão turva e hiperemia e dor ocular à direita. Negava febre, astenia, anorexia, artralgias, mialgias, úlceras, dor abdominal, lombalgias e queixas urinárias. Diagnosticou-se uveíte anterior, não granulomatosa, bilateral, sem outras complicações (Tabela 1). Detetou-se hipertensão arterial, elevação dos parâmetros inflamatórios (proteína C reactiva 2,6 mg/dL; velocidade de sedimentação 96 mm/1ªhora), taxa de filtração glomerular (TFG) 48 ml/min/1,73m2, hipocaliemia, acidose metabólica, leucocitúria, glicosúria, hematúria, proteinúria não nefrótica e elevação da β2-microglobulinúria. Excluíram-se hepatite B e C, toxoplasmose, brucelose e infeção a Epstein-Barr (EBV) e citomegalovírus (CMV). Radiografia de tórax normal. Enzima de conversão da angiotensina (ECA) normal e anticorpos antinucleares (ANA) e anticorpos anti-citoplasma dos neutrófilos (ANCA) negativos. Ligeiro aumento das dimensões dos rins na ecografia renal. Foi realizada biópsia renal, que revelou infiltrado intersticial difuso de células mononucleares, compatível com nefrite tubulointersticial aguda (Tabela 2). Foi tratada com dexametasona e midriáticos oculares, prednisolona oral (5 mg/m2/dia), amlodipina e citrato de potássio, com normalização da pressão arterial, da creatinina e da função tubular e remissão da uveíte em três meses. Por recorrência da uveíte, dois meses depois iniciou metotrexato (10 mg/m2/semana). Posteriormente, teve duas recorrências, sem envolvimento renal, que ocorreram um e três anos depois do diagnóstico, com necessidade de ajuste da dose de metotrexato (12,5 mg/m2/semana) e de corticoides tópicos, respetivamente. Cinco anos após o diagnóstico, encontra-se assintomática sob metotrexato.
Tabela 1 Descrição dos três casos apresentados
Caso 1 | Caso 2 | Caso 3 | ||||
---|---|---|---|---|---|---|
Sexo | Feminino | Feminino | Feminino | |||
Idade ao diagnóstico | 13 anos | 12 anos | 12 anos | |||
Apresentação clínica | Uveíte anterior, não granulomatosa bilateral, e hipertensão arterial | Uveíte anterior e intermédia bilateral | Astenia, anorexia, poliúria, noctúria e uveíte anterior e intermédia, não granulomatosa bilateral, com sinequias | |||
Tratamento | Dexametasona e midriáticos oculares, prednisolona oral, metotrexato, amlodipina e citrato de potássio | Dexametasona, prednisolona e midriáticos oculares, deflazacorte oral e metotrexato | Dexametasona, prednisolona e midriáticos oculares, prednisolona oral e metotrexato | |||
Evolução | Normalização da pressão arterial, recuperação da função renal e remissão da uveíte em 3 meses | Normalização da função renal em 6 semanas | Remissão da uveíte em 3 semanas e melhoria da função renal | |||
Tempo de follow-up | Cinco anos | Dezoito meses | Cinco meses | |||
Follow-up | Três recorrências da uveíte | Sem recorrências | Uma recorrência da uveíte |
Tabela 2 Resultados dos exames complementares de diagnóstico realizados nos casos descritos
Caso 1 | Caso 2 | Caso 3 | Valores de referência | |
---|---|---|---|---|
Avaliação analítica | ||||
Hemoglobina (g/dL) | 12,9 | 10,8 | 11,1 | 12-15,3 |
VS* (mm/1ªhora) | 96 | 120 | 9 | 3-13 |
Leucócitos (/uL) - Neutrófilos (/uL) - Eosinófilos (/uL) - Basófilos (/uL) - Linfócitos (/uL) - Monócitos (/uL) |
14890 11500 400 40 2340 540 |
9800 4900 800 100 3200 800 |
6380 3710 240 30 1810 590 |
4000-11000 1900-7500 0-500 0-200 1000-4800 100-1000 |
PCR* (mg/dL) | 2,6 | - | 3,19 | < 0,5 |
Ureia (mg/dL) | 41 | 36 | 61 | 16-49 |
Creatinina (mg/dL) | 1,4 | 1,2 | 1,48 | 0,44-0,68 |
TFG* (ml/min/1,73m2) | 48 | 47 | 47 | > 90 |
Sódio (mmol/L) | 138 | 137 | 140 | 135-145 |
Potássio (mmol/L) | 3,0 | 4,0 | 4,1 | 3,5-5,1 |
Cálcio (mg/dL) | 9,4 | 9,5 | 9,4 | 8,6-10,2 |
Fósforo (mg/dL) | 3,1 | 4,2 | 4,3 | 2,5-6,0 |
AST* (U/L) | 14 | 19 | 22 | 0-32 |
ALT* (U/L) | 11 | 14 | 30 | 0-33 |
Proteínas totais (g/dL) | 8,7 | 8,7 | 7,1 | 6,4-8,2 |
Albumina (g/dL) | 3,9 | 4,4 | 3,4 | 3,5-5,2 |
Gasimetria | ||||
pH | 7,30 | 7,38 | 7,33 | 7,35-7,45 |
Bicarbonato (mmol/L) | 21 | 22,5 | 22,6 | 22-26 |
Análise sumária de urina | ||||
pH | 6,5 | 6,0 | 5,0 | 5,0-8,0 |
Densidade | 1,010 | 1,013 | 1,018 | 1,015-1,025 |
Leucócitos (/uL) | 125 | 25 | 25 | Negativo |
Eritrócitos (/uL) | 10 | 10 | 250 | Negativo |
Glicose (mg/dL) | 250 | 100 | 100 | Normal |
Proteínas (mg/dL) | 100 | 75 | 75 | Negativo |
Proteinúria de 24 horas (mg/m2) | 366 | 240 | - | Negativo |
Excreção de β2-microglobulina na urina (mg/L) | 19,83 | - | 12,51 | 0,03-0,10 |
Histologia renal | Interstício com infiltrado difuso de células mononucleares. Imunofluorescência negativa. |
Não realizada |
Interstício com infiltrado linfoplasmocitário. Imunofluorescência negativa. |
*VS: velocidade de sedimentação; PCR: proteína C reativa; TFG: taxa de filtração glomerular; AST: aspartato aminotransferase; ALT: alanina aminotransferase.
Adolescente, 12 anos, sexo feminino, com fotofobia e hiperemia ocular havia quatro semanas. Diagnosticou-se uveíte anterior e intermédia bilateral (Tabela 1). Normotensa, com anemia ferropênica, VS 120 mm/1ªhora, TFG 47 ml/min/1,73m2, leucocitúria, glicosúria, hematúria e proteinúria não nefrótica (Tabela 2). Excluíram-se doenças infeciosas e autoimunes. Radiografia de tórax e ecografia renal sem alterações. Iniciou terapêutica com midriáticos e corticoides tópicos e deflazacorte oral. Recuperou a função renal em 6 semanas e ocorreu remissão da uveíte em 2 meses, tendo suspendido o corticoide sistêmico e iniciado metotrexato (10 mg/m2/semana).
Dezoito meses após o diagnóstico, mantém-se assintomática, sem alterações da função renal ou recorrência da uveíte, sob terapêutica com metotrexato.
Adolescente, 12 anos, sexo feminino, com astenia, anorexia, noctúria, polidipsia, anemia normocítica normocrômica e TFG 59 ml/min/1,73m2. Referenciada dois meses depois, com dor e hiperemia ocular à direita, sendo diagnosticada uveíte anterior e intermédia, não granulomatosa bilateral, complicada de sinequias (Tabela 1). Apresentava PCR de 3,19 mg/dL, TFG de 47 ml/min/1,73m2, leucocitúria, glicosúria, hematúria, proteinúria não nefrótica e elevação da β2-microglobulinúria (Tabela 2). Excluíram-se doenças infeciosas e autoimunes. Radiografia de tórax normal. A histologia renal revelou infiltrado intersticial linfoplasmocitário, compatível com nefrite tubulointersticial aguda (Figura 1). Foi tratada com corticoides e midriáticos oculares, prednisolona oral (12,5 mg/m2/dia) e metotrexato até 15 mg/m2/semana. Remissão da uveíte três semanas após o diagnóstico e melhoria da função renal. Dois meses depois, teve recorrência da uveíte, tendo reiniciado corticoides tópicos. Atualmente, está em remissão sob metotrexato.
Descrevemos uma série de três doentes com síndrome TINU, uma doença rara, com poucos casos publicados.1,3,6
A incidência é superior no sexo feminino (3:1),7 afetando predominantemente pessoas mais jovens, com idade mediana de 15 anos ao diagnóstico,7,8 à semelhança do que se verificou nesta série.
A patogênese permanece por esclarecer.4 A associação com fármacos e infeções foi estabelecida em alguns casos, incluindo anti-inflamatórios não esteroides, antibióticos e infeções por Mycobacterium tuberculosis, Toxoplasma gondii, Epstein-Barr e Varicela Zoster.3,8 Recentemente, foi descrita a presença de autoanticorpos contra uma proteína C reativa modificada localizada no rim.9
Os critérios de diagnóstico de TINU permitem estabelecer um diagnóstico definitivo na presença de uveíte anterior, com ou sem envolvimento dos segmentos intermédio ou posterior, de aparecimento até 2 meses antes ou 12 meses depois de nefrite tubulointersticial. A nefrite pode ser diagnosticada por critérios clínicos, que incluem redução da TFG, alterações na análise de urina (aumento da β2-microglobulina, hematúria, proteinúria não nefrótica, glicosúria, piúria, eosinófilos na urina ou cilindros leucocitários e alterações sistêmicas (febre, astenia, perda de peso, exantema, dor abdominal ou no flanco, artralgias ou mialgias e alterações laboratoriais, como anemia, eosinofilia, aumento da velocidade de sedimentação ou alterações da função hepática).1 A biópsia renal, não sendo obrigatória, permite confirmar o diagnóstico.1,4
A uveíte geralmente é anterior, não granulomatosa e bilateral,2,4 tal como nos casos descritos. O envolvimento do vítreo também pode ocorrer,2,4 como nas doentes 2 e 3.
A nefrite tubulointersticial pode ser assintomática ou associar-se a sintomas sistêmicos, artralgias, mialgias, dor abdominal e lombar, poliúria e nictúria.1,2,3 Precede a uveíte em 65% dos casos.4,7 Nas doentes 1 e 2, a avaliação da função renal foi realizada apenas após o diagnóstico de uveíte, sendo então estabelecido o diagnóstico de nefrite tubulointersticial.
A excreção urinária de β2-microglobulina encontra-se aumentada em 87% dos casos, por defeito na sua reabsorção tubular. O doseamento da β2-microglobulina urinária é um teste não invasivo, com sensibilidade de 88% e especificidade de 70% no diagnóstico. A combinação da diminuição da TFG e da elevação da β2-microglobulinúria aumenta significativamente o valor preditivo positivo desse teste.1
A biópsia permite a confirmação da nefrite,1 tendo sido realizada nas doentes 1 e 3. No entanto, o diagnóstico da síndrome TINU pode ser estabelecido mesmo sem biópsia, desde que estejam presentes critérios clínicos de nefrite tubulointersticial, como se verificou na doente 2.
O diagnóstico diferencial inclui outras doenças que podem cursar com nefrite tubulointersticial e uveíte, nomeadamente sarcoidose, lúpus eritematoso sistêmico, poliangeíte granulomatosa, doença de Behçet, sífilis, tuberculose e brucelose.1,3,4
O diagnóstico definitivo de síndrome TINU foi estabelecido nas três doentes, após exclusão de outras doenças sistêmicas.
O tratamento da uveíte inclui inicialmente e na ausência de complicações do segmento posterior, midriáticos e corticoides tópicos, sendo necessária a terapêutica com corticoides orais e/ou outros imunossupressores caso haja doença refratária ou recorrência.2,4 A terapêutica com imunossupressores, nomeadamente metotrexato, micofenolato de mofetila, azatioprina ou ciclosporina, está indicada nos casos de resistência à terapêutica com corticoides, recorrência da uveíte ou efeitos adversos associados aos corticoides.4,10
A uveíte pode ser crônica ou apresentar recorrências em 50% dos casos,1,2,4 como se verificou nas doentes 1 e 3. Podem verificar-se recorrências até dez anos após o diagnóstico,11 sendo essencial o seguimento oftalmológico desses doentes. Complicações oculares, nomeadamente sinequias, edema do disco óptico, cataratas e glaucoma foram descritas em 21% dos casos.7
A doença renal geralmente é autolimitada e resolve espontaneamente ou após o tratamento com corticoides.2 No entanto, 10% progridem para doença renal crônica, por vezes com necessidade de técnicas de substituição da função renal.7 Associa-se o atraso na instituição da terapêutica com corticoides sistêmicos à progressão para doença renal crônica.12
Os autores consideram assim essencial um elevado grau de suspeição e a avaliação de um eventual compromisso renal em todos os casos de uveíte, para um diagnóstico correto e instituição atempada da terapêutica, de modo a evitar a progressão da doença renal e prevenir as complicações oculares.