versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.38 no.4 São Paulo out./dez. 2016
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20160062
Os contrastes iodados são amplamente indicados e utilizados na prática médica e o seu potencial deletério à função renal é reconhecido na literatura. A incidência de nefropatia induzida por contraste (NIC) varia de 10 a 30%, conforme a definição utilizada para o seu diagnóstico e de acordo com as características da população estudada.1,2
A NIC é tradicionalmente definida por uma elevação absoluta da creatinina sérica igual ou superior a 0,5 mg/dl ou um aumento relativo de 25% ou mais após 48h ou 72h da infusão endovascular de contraste iodado e que se mantém por 2 a 5 dias na ausência de outras causas identificáveis. Historicamente, o diagnóstico de NIC se confunde com o de injúria renal aguda associada ao uso de contraste (IRA-AC); enquanto a NIC pressupõe causalidade, a IRA-AC pode significar NIC ou IRA concomitante ao uso do contraste e não determinada pelo seu uso. A grande maioria dos estudos clínicos publicados sobrepõem as duas terminologias e não incluem grupos controles em sua casuística, permitindo o questionamento da real incidência de NIC e do impacto agudo e crônico da utilização de contrastes iodados na função renal.
Nos últimos anos, o diagnóstico de NIC tem sido revisitado em estudos clínicos prospectivos e controlados objetivando melhor entender essa causa potencialmente evitável de IRA. Em uma meta-análise recente, McDonald et al.3 identificaram apenas 13 de 1489 estudos controlados, representando 25.950 pacientes. A incidência de IRA, a necessidade de diálise e o óbito foram semelhantes no grupo que recebeu contraste iodado e no que não recebeu. Em um estudo prospectivo observacional controlado, Hemmett et al.4 observaram uma incidência em torno de 11% de IRA em 843 pacientes hospitalizados. No entanto, a sua incidência foi semelhante no grupo que recebeu contraste comparado com o que não recebeu contraste iodado endovenoso. Dados recentes demonstram que a NIC é rara em pacientes com taxa de filtração glomerular estimada (TGFe) superior a 45 ml/min/1,73m2, embora a doença renal crônica nos estágios IV e V seja um dos principais fatores de risco para o seu desenvolvimento.1,5,6
Outros fatores de risco para NIC incluem: diabetes, insuficiência cardíaca congestiva, idade acima de 70 anos, hipovolemia, uso concomitante de agentes nefrotóxicos e anti-inflamatórios não hormonais.1,2
Se por um lado o diagnóstico clínico de NIC e a determinação exata dos fatores de risco ainda são um desafio na prática clínica, por outro a sua fisiopatologia não é completamente entendida. A maior parte dos mecanismos descritos derivam de modelos experimentais que podem não traduzir exatamente o quadro clínico, mas que são extremamente necessários para um melhor entendimento dessa patologia, propiciando possíveis formas de evitá-la e aos seus potenciais efeitos deletérios em longo prazo.
Com o intuito de esclarecer alguns aspectos fisiopatológicos em diferentes populações susceptíveis à NIC, o estudo intitulado "Impact of gender in early structural changes of contrast induced nephropathy in rats" de Carraro-Eduardo et al.7, publicado nesse volume do Brazilian Journal of Nephrology, é, portanto, muito bem-vindo.
Os autores demonstraram, corroborando dados de literatura, que o uso endovenoso de contraste iodado hiperosmolar em ratos Wistar nefrectomizados e privados de água resulta em lesão renal estrutural precoce, por meio do aumento significativo do número de células tubulares renais proximais vacuolizadas, e, com isso, levantam três importantes questões:7
O modelo animal, considerado adequado e bem estabelecido na literatura é dependente de pré-sensibilização com nefrectomia unilateral e privação de água. Existe um paralelo entre a necessidade de pré-sensibilização no modelo experimental para a demonstração de NIC e os dados mais recentes de literatura, que consideram rara a NIC em pacientes com TFGe acima de 45 ml/min/1,73m2 sem a presença de outros fatores de risco?1,5
O tipo de contraste (hiperosmolar) utilizado no estudo impacta nos resultados observados? Em ratos Wistar a injeção endovenosa de contrastes com características físico-químicas semelhantes podem causar alterações de intensidade e duração diferentes,8 no entanto, em culturas de células tubulares epiteliais renais proximais humanas a alta osmolaridade do contraste tem papel fundamental na sobrevida, crescimento e proliferação das mesmas9 e na prática clínica, embora ainda haja debate sobre a vantagem de utilização os contrastes de baixa osmolaridade e isoosmolares na população com TFG normal, esses vêm sendo utilizados amplamente com o objetivo de reduzir os efeitos negativos da osmolaridade na hemodinâmica renal, principalmente em grupos de risco para NIC.1,10
O desenho do estudo objetiva apenas a análise de lesões estruturais precoces, mas essas podem persistir? Qual é o seu potencial de cronificação?
Por fim, o estudo demonstra que os ratos Wistar fêmeas são significantemente mais susceptíveis à infusão endovenosa de contraste iodado hiperosmolar. Esse resultado encontra substrato clínico em alguns estudos observacionais nos quais o sexo feminino foi um fator de risco independente de IRA-AC,11 embora essa evidência não tenha sido abordada como altamente relevante.
O estudo esclarece pontos importantes e fornece subsídio para o aprofundamento necessário à investigação da fisiopatologia da NIC e de seus impactos clínicos sobre a função renal. Nos permite dar mais um passo rumo à utilização segura do contraste iodado endovascular com o objetivo maior de nos beneficiarmos das informações relevantes que a sua utilização proporciona na prática clínica.