versão impressa ISSN 0101-2800
J. Bras. Nefrol. vol.36 no.4 São Paulo out./dez. 2014
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20140064
A nefropatia induzida por contraste (NIC) é uma das mais graves consequências do uso de agentes de contraste intravasculares, sendo definida como uma redução na taxa de filtração glomerular causada pela contraste iodado.1-3 Quando não impedida, a NIC pode resultar em morbidade significativa e mortalidade.4-16 Apesar de meios de contraste com baixa osmolaridade e iso-osmolaridade serem utilizados há mais de meio século, seus efeitos fisiopatológicos sobre os rins ainda são em grande parte desconhecidos.17 A maioria dos dados sobre NIC tem origem na literatura cardiovascular, que a classificou como o mais consistente fator de risco em condições de pré-insuficiência renal crônica e diabetes mellitus.18 Entretanto, esses estudos limitam suas conclusões a uma população de pacientes mais específica.
A nefropatia por contraste relacionada a tomografia computadorizada (TC) tem sido um alvo de pesquisa menos frequente. Uma recente meta-análise sobre o assunto encontrou apenas cinco ensaios clínicos correlacionando NIC e tomografia computadorizada, nenhum deles em população hospitalar.19 Esses poucos estudos apontaram diversas incidências e fatores de risco para a NIC, possivelmente por conta das diferenças tanto na definição da NIC como nas características dos pacientes.19-22 O objetivo do presente estudo é descrever a incidência de NIC por tomografia computadorizada na população de pacientes internados em um hospital geral terciário, identificando fatores de risco potencialmente evitáveis.
Foi realizado um estudo de coorte com pacientes internados em um hospital terciário submetidos a vários exames de TC com meio de contraste intravenoso. Todos os indivíduos tinham pelo menos 18 anos, permaneceram no hospital por no mínimo 48 horas após a TC e assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE). Foram excluídos do estudo pacientes que haviam sido expostos a meios de contraste nos 30 dias que antecederam a sua inclusão no estudo, pacientes que foram a óbito ou que tiveram alta menos de 48 horas após a TC, e indivíduos que não assinaram o TCLE.
Os dados foram coletados a partir de entrevistas com os pacientes, análise de gráficos e exames laboratoriais. As variáveis avaliadas foram: idade, sexo, diabetes mellitus, hipertensão, insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral, índice de massa corporal (IMC), creatinina sérica, taxa de filtração glomerular (TFG), uso de medicamentos - mais especificamente metformina, ácido acetilsalicílico (AAS), inibidores da enzima conversora da angiotensina (ECA), betabloqueadores, anti-inflamatórios não-esteróides (AINEs) e antibióticos - bem como a adoção de medidas preventivas específicas contra NIC instituídas pela equipe médica (até o momento, não há protocolo padrão para a prevenção da NIC em nossa instituição).
A creatinina sérica foi obtida antes da injeção de contraste e 48 horas após o exame. O mesmo meio de contraste intravenoso (Telebrix 30®, Guebert Laboratories, 1650 mOsm/Kg/H2O) foi utilizado em todos os estudos. Definimos NIC como um aumento absoluto da creatinina sérica de pelo menos 0,5 mg/dL ou um aumento relativo da creatinina sérica de pelo menos 25% em relação ao valor de base, 48 horas após a administração do contraste intravenoso.23 A variável idade foi dicotomizada em menos de 65 anos e 65 anos ou mais. A perda da função renal foi definida por diferentes metodologias; inicialmente, consideramos a definição clássica, mais comumente utilizada para perda da função renal, com taxa de filtração glomerular (TFG) inferior a 60 mL/min/1,73 m2 pela fórmula de Cockcroft-Gault ou creatinina sérica ≥ 1,5 mg/dL.24,25 Em última análise, adotamos a recomendação do KidneyDisease Improving Global Outcomes (KDIGO), que define a perda da função renal através da fórmula do 2009 Chronic Kidney Disease Epidemiology Collaboration (CKD-EPI).26 Para tal, foram obtidos dados adicionais de pacientes, seus familiares e a partir da análise dos gráficos.
Os dados foram digitados duas vezes em um banco de dados Microsoft Excel® (versão 7 para Windows) por dois gestores de dados diferentes e comparados para controlar erros de digitação. As variáveis contínuas foram descritas como média e desvio padrão (SD); variáveis categóricas foram descritas por frequências e percentuais. Foi utilizado o teste t de Student para comparar as variáveis contínuas e os testes do Qui-Quadrado e exato de Fisher para as variávels categóricas e o teste de Kappa. Regressão logística stepwise backward foi utilizada para avaliar a correlação entre as variáveis e o desenvolvimento de NIC. A análise estatística foi realizada com o software SPSS® (Statistical Package for the Social Sciences v. 17.0 para Windows). Diferenças estatisticamente significativas foram denotadas por valores de p inferiores a 5% (p ≤ 0,05).
Foram estudados 410 pacientes de maio de 2007 a fevereiro de 2008, 52% dos quais eram do sexo masculino, 12,7% tinham mais de 65 anos, 80% eram brancos e 19,2% eram negros. Hipertensão arterial esteve presente em 39,5% dos indivíduos, enquanto que a insuficiência renal foi observada em 31% (de Cockcroft-Gault) e 30,2% (CKD-EPI 2009) dos pacientes. Câncer estava presente em 30,5%, diabetes em 14,1% e insuficiência cardíaca em 7,1%. Quanto aos medicamentos em uso ao momento da TC, 23,3% dos pacientes faziam uso de inibidores da ECA, 17,8% de beta-bloqueadores, 15,1% de AAS e 2,2% de AINEs.
As indicações para TC em nosso estudo foram: estadiamento de neoplasias (62,2%), avaliação de tromboembolismo pulmonar (12%), dor abdominal (5,6%), doenças infecciosas (4,4%), doenças hepáticas (2,9%), aneurismas torácicos e de aorta abdominal (3,6%), doenças neurológicas (2%) ou outros (7,3%). O volume médio de contraste utilizado nos exames por TC foi de 139,1 ± 31,2 mL. Após correção pela área de superfície corporal, obtivemos o valor de 81,0 ± 2,1 ml/m2.
Em nosso estudo, 23% dos pacientes foram tratados com soro fisiológico intravenoso antes e após o procedimento, enquanto que apenas 2,5% receberam bicarbonato. No entanto, não houve associação significativa entre tais medidas e redução nos casos de NIC.
No total, 35 pacientes (8,5%) desenvolveram NIC. Houve uma correlação positiva entre NIC e presença de diabetes mellitus, insuficiência cardíaca e insuficiência renal, como mostrado na Tabela 1.
Tabela 1 Variáveis associadas ao desenvo lvimento de NIC (regressão logística backward stepwise)
Variável | Significância | Odds Ratio | IC 95,0% por EXP(B) | |
---|---|---|---|---|
DM | 0,019 | 2,149 | 1,135 | 4,067 |
Insuficiência cardíaca | 0,022 | 3,23 | 1,184 | 8,816 |
AINEs | 0,053 | 5,21 | 0,978 | 27,79 |
Insuficiência renal | 0,002 | 3,36 | 1,574 | 7,174 |
Idade ≥ 65 anos | 0,79 | 0,33 | 0,096 | 1,138 |
Variáveis incluídas no passo 1: sexo, raça, hipertensão, DM, insuficiência cardíaca, câncer, AINEs, beta-bloqueadores, idade de 65 anos ou mais, IMC, protocolo de hidratação, insuficiência renal.
A comparação entre o diagnóstico de insuficiência renal por meio da fórmula de Cockcroft-Gault e pelo teste do CKD-EPI 2009 revelou um valor de 0,954 (pα 0,016; estatística kappa).
O conhecimento atual sobre a real ordem de grandeza da NIC associada a TC tem origem em estudos realizados em diversas populações, nenhuma delas de pacientes internados. Em estudo sobre TC para diagnóstico de doença arterial periférica em população ambulatorial, El-Hajjar et al.1 relataram uma incidência de 1,75% de NIC. Mitchell et al.21 descreveram incidência de 11% de NIC associada a TC (taxa de mortalidade de 2%) em pacientes atendidos em pronto-socorro. Em uma coorte de receptores de transplante renal, Ahuja et al.27 relataram uma incidência de 21,0% de NIC. Lencione et al.20 descreveram uma incidência de 2,5% de NIC em pacientes internados, contudo em um estudo retrospectivo. Nossa incidência de NIC associada a tomografia computadorizada (8,5%) se refere a uma população de pacientes internados em um hospital terciário, em que são tratados indivíduos com uma ampla gama de patologias. Não estudamos pacientes ambulatoriais ou de pronto-socorro, e isso deve ser levado em conta na análise dos resultados. Acreditamos que as diferenças na incidência de NIC verificadas entre estudos se devam principalmente à variabilidade das condições clínicas dos pacientes, e não às disparidades nos critérios para a definição de NIC.
Os fatores de risco mais significativos para NIC associada a TC observados em nosso estudo foram insuficiência renal, DM e insuficiência cardíaca. Tanto insuficiência renal como DM são fatores de risco para NIC estabelecidos na literatura.28 Insuficiência cardíaca, contudo, é vista como possível fator de risco.27,29 A associação entre insuficiência cardíaca e NIC pode se dever a aspectos peculiares a esses pacientes: baixo débito cardíaco e altos níveis de catecolaminas, que acabam por prejudicar a perfusão renal.30
O papel dos AINEs como fator de risco para NIC foi recentemente discutido.23,31 Embora os AINEs tenham sido listados como possíveis fatores de risco para NIC, sua inclusão na lista foi fundamentada principalmente em pressupostos fisiopatológicos, não havendo evidências consistentes para corroborar esta associação.30 Recentemente relatamos ausência de associação entre o uso de AINEs e NIC em uma população submetida a cateterismo cardíaco.23 Outros fatores de risco em potencial para NIC, como mieloma múltiplo, não foram confirmados por estudos clínicos.32 Segundo Goldemberg e Matetzky,33 muitas das condições apontadas na literatura como fatores de risco para NIC foram determinadas por estudos experimentais ou alvos de polêmica. Embora o alfa tenha sido limítrofe, devido à baixíssima frequência de uso de AINEs em nossa amostra (2,2%), não foi possível determinar a real interação entre esses medicamentos e a NIC no presente estudo.
Nosso estudo apresenta limitações que não podem ser subestimadas. Primeiramente, a maioria das TCs realizadas em nosso estudo se prestava ao diagnóstico ou estadiamento de pacientes com câncer, e isso deve ser levado em conta na generalização de nossos resultados. Em segundo lugar, foram avaliados apenas os exames realizados com um tipo de meio de contraste, não sendo portanto avaliado o impacto de agentes supostamente menos nefrotóxicos (agentes não-iônicos de baixa osmolaridade). Em terceiro, embora não tenhamos encontrado uma associação significativa entre o uso de AINEs e NIC, pouquíssimos pacientes estavam usando AINEs durante o estudo. Finalmente, excluímos da análise pacientes com várias exposições a agentes de contraste previamente à sua inclusão no estudo, o que pode em si representar um fator de risco para o desenvolvimento de NIC.
Até onde sabemos, este é o primeiro estudo prospectivo sobre NIC associada a TC em pacientes internados em um hospital terciário. Mais estudos são necessários para avaliar os fatores de risco para NIC associada a TC em diferentes populações de pacientes.