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Níveis de TSH sérica associados a fatores de risco cardiovascular em adolescentes acima do peso e obesos

Níveis de TSH sérica associados a fatores de risco cardiovascular em adolescentes acima do peso e obesos

Autores:

Luciana Lopes de Souza,
Erika Paniago Guedes,
Patrícia Fátima dos Santos Teixeira,
Rodrigo Oliveira Moreira,
Amelio Fernando Godoy-Matos,
Mario Vaisman

ARTIGO ORIGINAL

Jornal de Pediatria

versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782

J. Pediatr. (Rio J.) vol.92 no.5 Porto Alegre set./out. 2016

http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2016.01.011

Introdução

A incidência de obesidade na infância e adolescência está aumentando em países em desenvolvimento e desenvolvidos.1 No Brasil, país em desenvolvimento, os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) mostraram que o percentual de indivíduos acima do peso entre 10 e 19 anos passou de 3,7% (1974-1975) para 21,7% (2008-2009) em meninos e de 7,6% para 19,4% em meninas.2

A associação bem estabelecida entre a obesidade e as disfunções do metabolismo lipídico/da glicose, hipertensão e aumento dos riscos cardiovasculares (RCV) é frequentemente mencionada como síndrome metabólica (SM).3 Os indivíduos na faixa etária pediátrica também podem apresentar maior morbidez relacionada à SM.3-5

Os hormônios da tireoide (HT) têm um papel fundamental na regulação do metabolismo por meio da modulação da termogênese e do gasto energético. As relações putativas entre os HT, o peso corporal e a homeostase do tecido adiposo têm sido o foco de diversos estudos nos últimos anos, porém as relações causais entre esses parâmetros não foram bem estabelecidas.6-12 Uma análise8 destacou diversos estudos de base populacional que revelaram uma correlação entre o aumento nos níveis de tireotrofina sérica (TSH) e o aumento do IMC.

As doenças da tireoide têm sido associadas com a doença cardiovascular aterosclerótica.13-16 Embora essa associação tenha sido documentada conclusivamente com relação ao hipotireoidismo clínico, continua a ser controverso se ela também está presente no hipotireoidismo subclínico (HSC).17,18 A associação de doenças da tireoide com a doença cardiovascular aterosclerótica pode ser parcialmente explicada pelos papéis do HT na regulação do metabolismo lipídico e da pressão arterial (PA). De fato, diversos estudos recentes de base populacional revelaram correlações positivas entre os parâmetros TSH e lipídios e entre a TSH e a PA, mesmo em populações eutireoideas.6-18 Nosso objetivo foi investigar a relação entre a função da tireoide, a obesidade, os lipídios, a resistência à insulina e os componentes da SM em uma amostra de adolescentes acima do peso. Também visamos a investigar as diferenças metabólicas e antropométricas de pacientes eutireoideos com TSH no limite superior da normalidade (≥ 2,5 µIU/mL) em comparação com pacientes com níveis mais baixos.

Pacientes e métodos

Indivíduos

Este estudo avaliou 199 adolescentes púberes acima do peso e obesos de ambos os sexos com 11 a 17 anos (estágio II de Tanner ou estágio pós-puberal) que buscaram tratamento para a obesidade no Ambulatório de Metabolismo do Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia Luiz Capriglione (IEDE), Rio de Janeiro, Brasil, sequencialmente de março de 2011 a fevereiro de 2013. O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do IEDE e um consentimento informado por escrito foi obtido dos participantes, bem como de seus representantes legais.

Os critérios de exclusão deste estudo incluíram os seguintes: pacientes pré-púberes, diagnóstico anterior de diabetes mellitus tipo 1 ou tipo 2 (DMT2), pacientes que recebiam medicação contra diabetes e/ou obesidade, diagnóstico de doença endócrina, diagnóstico de doença da tireoide (uso de levotiroxina [LT4] ou tionamidas), níveis de creatinina e ureia acima dos valores normais, aspartato aminotransferase (AST) e/ou aspartato aminotransferase (AST) três vezes acima do limite superior da normalidade, uso de álcool ou drogas, uso simultâneo crônico ou de dose constante de betabloqueadores, beta-agonistas, diuréticos, antidepressivos, neurolépticos, bromocriptina, ergotamina e derivados, atropina, esteroides sistêmicos, inibidores de apetite ou medicamentos que interfiram com a atividade das aminas ou sejam usados para tratar transtornos psiquiátricos nos últimos três meses, meninas grávidas e lactantes ou histórico de neoplasia nos últimos cinco anos.

Exame antropométrico

Todos os participantes foram submetidos a anamnese e exame físico completo. Os parentes e/ou responsáveis ajudaram a fornecer informações após assinar o consentimento informado. Foram avaliados os seguintes parâmetros: peso (kg), estatura (m), IMC (kg/m2), circunferência da cintura (CC), razão cintura/quadril (RCQ), PA (mmHg) e fatores demográficos (sexo e idade). O peso foi medido por uma balança digital Filizola® (Filizola®, SP, Brasil), com cada paciente descalço e com roupas leves. A estatura de cada paciente foi medida com um estadiômetro Harpenden® (Harpenden®, Reino Unido), com o indivíduo descalço. A CC foi medida no ponto médio entre a crista ilíaca e o arco costal. A circunferência do quadril (CQ) foi obtida com a medida do maior diâmetro sobre os trocânteres maiores. Para calcular a RCQ determinou-se a razão entre a CC e a CQ. O IMC foi calculado pela divisão do peso (kg) pela estatura ao quadrado (m2).

As tabelas americanas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do Centro Nacional de Estatísticas de Saúde (CDC-NCHS) foram usadas para avaliar o IMC (http://apps.nccd.cdc.gov/dnpabmi/) de acordo com o sexo e a idade. Indivíduos com IMC para a idade entre o 85° e o 95° percentis foram classificados como "acima do peso" e aqueles com IMC para a idade a partir do 95° percentil, como "obesos". A PA foi obtida com o paciente em posição supina após cinco minutos de descanso. Todas as medições de PA foram obtidas pelo mesmo examinador com o mesmo equipamento. Para as medições de PA, foi usado um esfigmomanômetro de coluna de mercúrio padronizado e calibrado com o manguito ajustado às dimensões corporais. Todas as medidas antropométricas foram avaliadas pelo mesmo examinador e o estágio de maturação sexual foi determinado com a classificação de desenvolvimento puberal de Tanner.

Avaliações laboratoriais

As amostras de sangue foram coletadas após jejum de 12 horas e os resultados dos exames de sangue foram avaliados: glicemia de jejum, glicemia de duas horas após sobrecarga de glicose com 75 g de Dextrosol, hemograma completo, ureia, creatinina, sódio, potássio, colesterol total, colesterol de lipoproteína de alta densidade (HDL-C), colesterol de lipoproteína de baixa densidade (LDL-C), triglicerídeos, alanina aminotransferase (ALT), aspartato aminotransferase (AST), TSH, T4 livre (T4l) e insulina basal. Com os resultados de glicemia de jejum e insulina basal, o índice do modelo de avaliação da homeostase de resistência à insulina (HOMA-IR) de cada paciente foi calculado pela seguinte fórmula: HOMA-IR = [glicose (mMol) x insulina (µU/mL)]/22,5. O Estudo Brasileiro de Síndrome Metabólica (BRAMS) avaliou uma população de aproximadamente 2.000 pacientes, incluindo adultos obesos e com diabetes tipo 2, e definiu a resistência à insulina (RI) como um valor de HOMA-IR maior do que 2,71 em indivíduos com IMC normal.19 Esse ponto de corte do HOMA-IR provavelmente representa a população brasileira, considerando o número de pacientes avaliados.

Para avaliar os níveis de TSH, foi usado um método de eletroquimioluminescência. A eletroquimioluminescência consiste em um imunoensaio que determina quantitativamente os níveis de TSH a partir de amostras de soro e plasma humanos. A faixa normal de valores relatada com esse kit é de 0,5-5,0 µIU/mL. Os níveis de T4 livre (T4l) dos pacientes também foram avaliados por eletroquimioluminescência e os valores de referência variaram entre 0,8 e 1,9 ng/mL. Os valores de T4l foram usados para excluir pacientes apenas caso fossem obtidos valores fora da faixa normal.

Para diagnosticar HSC em adolescentes, seria necessário usar valores específicos de acordo com o sexo, a idade e o estágio de Tanner. Contudo, esses dados não estão disponíveis para a população brasileira. Portanto, o diagnóstico de HSC teve como base a Recomendação 14.1 das Diretrizes de Prática Clínica com Relação a Hipotireoidismo em Adultos, patrocinadas conjuntamente pela Associação Americana de Endocrinologistas Clínicos e pela Associação Americana de Tireoide.20 A faixa de referência de determinado laboratório deve determinar o limite superior da normalidade em um ensaio de TSH da terceira geração. Portanto, o diagnóstico de hipotireoidismo subclínico (HSC) foi definido como T4l normal associado a TSH acima de 5,0 µIU/mL.

Os pacientes eutireoideos também foram divididos em dois grupos, de acordo com os níveis de TSH. Existe uma discussão sobre reduzir o limite superior de TSH para 2,5 µIU/mL. Essa discussão tem como base alguns dados que indicam que pacientes com TSH ≥ 2,5 podem ter perfis diferentes daqueles com TSH < 2,5 µIU/mL.21,22

Análise estatística

Os dados foram analisados com o software GraphPad® InStat 3.00 (GraphPad® Software, EUA). As comparações entre grupos diferentes foram feitas com o teste t de Student para as variáveis paramétricas e com o teste de Mann-Whitney para as não paramétricas. Com relação às variáveis paramétricas, os dados são apresentados como média ± desvio padrão. Com relação às variáveis não paramétricas, os dados são apresentados como a mediana dos valores máximo e mínimo. Foram feitas análises de correlação com o teste de Pearson para as variáveis paramétricas e com o teste de Spearman para as não paramétricas. Todos os testes foram bicaudais e o nível de relevância foi estabelecido em p = 0,05 para todas as análises.

Resultados

Foram consecutivamente avaliados 199 adolescentes examinados no IEDE. Todos os pacientes estavam acima do estágio II de Tanner de desenvolvimento púbere. A frequência de sobrepeso foi 6,97% de acordo com a tabela do CDC-NCHS e a obesidade estava presente em 93,03% dos pacientes. A tabela 1 apresenta os dados antropométricos e metabólicos da população estudada.

Tabela 1 Dados antropométricos e metabólicos da amostra estudada 

Dados antropométricos e laboratoriais Mediana Variação (mínimo a máximo)
Idade 14 11 a 17
IMC (kg/m2) 34,5 23,4 a 52,6
Sexo feminino (n, %) a 130 (65,3)
CC (cm) 102 81 a 147
RCQ b 0,90 ± 0,07
PAS (mmHg) 120 60 a 150
PAD (mmHg) 70 50 a 100
HDL-C (mg/dL) 41 20 a 79
TG (mg/dL) 130 93,5 a 334,0
Glicose (mg/dL) 86,5 68,0 a 323,0
Glicemia de 2 h (mg/dL) 100 42 a 252
HOMA-IR 3,4 0,3 a 30,6

CC, circunferência da cintura; IMC, índice de massa corporal; PAD, pressão arterial diastólica; PAS, pressão arterial sistólica; HDL-C, colesterol HDL-C; HOMA-IR, modelo de avaliação da homeostase; RCQ, razão cintura/quadril; TG, triglicerídeos.

aOs dados do sexo feminino são apresentados como número de indivíduos e percentual.

bOs dados da RCQ são expressos com a média ± desvio padrão porque a amostra tem distribuição paramétrica.

A respeito do metabolismo da glicose, 13,56% da amostra (27 de 199) apresentaram níveis anormais de glicemia de jejum (ou seja, entre 100 e 125 mg/dL). Além disso, 6,03% (12 de 199) apresentaram um nível de glicemia de duas horas após uma carga de 75 g de Dextrosol entre 140 e 200 mg/dL e, assim, foram classificados como tendo tolerância à glicose prejudicada. Por fim, quatro pacientes (2,02%) receberam um diagnóstico de DMT2. Usando o ponto de corte da RI obtido do estudo brasileiro mencionado (valor de HOMA-IR acima de 2,7), 61,19% (122 de 199) dos pacientes apresentaram RI. Não foi observada alteração na glicemia de jejum ou no teste oral de tolerância à glicose (TOTG) em pacientes acima do peso.

A função da tireoide foi avaliada por meio da medição dos níveis de TSH (faixa normal: 0,5-5,0 µIU/mL). Dois (1,0%) indivíduos apresentaram níveis de TSH abaixo da faixa normal (hipertireoidismo subclínico) e 27 (13,56%) apresentaram níveis de TSH acima do nível normal (HSC). Todos esses pacientes apresentaram T4l dentro dos limites normais. Nenhum paciente foi diagnosticado com hipotireoidismo clínico (T4l baixo e TSH acima de 5,0 µIU/mL). Os pacientes com hipertireoidismo subclínico (n = 2) não foram incluídos na análise.

A tabela 2 apresenta uma comparação dos parâmetros antropométricos e metabólicos de adolescentes diagnosticados com HSC e eutireoideos. Os pacientes com HSC apresentaram CC significativamente maior do que pacientes com função da tireoide normal. Não foram observadas diferenças significativas entre esses grupos em qualquer dos parâmetros metabólicos examinados.

Tabela 2 Comparação de parâmetros metabólicos e antropométricos entre adolescentes com HSC e com função da tireoide normal 

Normal (n = 170) HSC (n = 29) p
Idade (anos) 14 (11-17) 14 (12-18) 0,33
IMC (kg/m2) 34,2 (23,4-52,6) 37,2 (25,8-51,9) 0,046
CC (cm) 102 (72-148) 111 (81-134) 0,0027
RCQ 0,91 ± 0,08 0,93 ± 0,05 0,22
PAS (mmHg) 120 (80-160) 120 (90-160) 0,48
PAD (mmHg) 70 (50-100) 80 (50-100) 0,34
Glicose (mg/dL) 87 (68-323) 91 (75-268) 0,087
Glicemia de 2 horas (mg/dL) 102 (42-252) 107 (72-200) 0,38
HOMA-IR 3,4 (0,2-50,7) 3,7 (1-30,5) 0,19
AST (mg/dL) 19 (7-67) 21 (13-39) 0,18
ALT (mg/dL) 16 (6-80) 20 (9-54) 0,09
TG (mg/dL) 95 (30-356) 100 (30-210) 0,26
HDL-C (mg/dL) 41,5 (20-74) 40 (26-79) 0,11
LDL-C (mg/dL) 94,1 ± 25,3 99,8 ± 24,8 0,26

ALT, alanina aminotransferase; AST, aspartato aminotransferase; CC, circunferência da cintura; HOMA-IR, modelo de avaliação da homeostase; HDL-C, colesterol HDL-C; IMC, índice de massa corporal; LDL-C, colesterol LDL-C; PAD, pressão arterial diastólica; PAS, pressão arterial sistólica; RCQ, razão cintura/quadril; TG, triglicerídeos;Dados apresentados como mediana (mínimo-máximo).

Após excluir os pacientes com HSC, os 170 pacientes restantes (níveis de TSH acima da faixa normal) foram analisados separadamente. A tabela 3 mostra as correlações entre os níveis de TSH e os diversos parâmetros antropométricos e metabólicos em indivíduos com função da tireoide normal.

Tabela 3 Correlações entre os níveis de TSH e os diversos parâmetros antropométricos e metabólicos em 170 adolescentes com função da tireoide normal 

Correlação valor de p
Idade (anos) -0,11 0,13
IMC (kg/m2) 0,14 0,068
CC (cm) 0,11 0,13
RCQ 0,05 0,49
Glicose (mg/dL) 0,13 0,077
Glicemia de 2 horas (mg/dL) 0,06 0,44
HOMA-IR 0,16 0,03
TG (mg/dL) 0,16 0,028
HDL-C (mg/dL) -0,14 0,055
LDL-C (mg/dL) 0,03 0,64

CC, circunferência da cintura; HDL-C, colesterol HDL-C; HOMA-IR, modelo de avaliação da homeostase; IMC, índice de massa corporal; LDL-C, colesterol LDL-C; RCQ, razão cintura/quadril; TG, triglicerídeos.

A análise de regressão linear múltipla foi usada para avaliar a relação entre TSH e os parâmetros metabólicos. Nesse primeiro modelo, a TSH e o IMC foram usados como variáveis independentes e cada parâmetro metabólico, como dependente. Após a regressão, os níveis de TSH continuaram associados de forma independente ao HOMA-IR (p = 00001), ao HDL (p = 0,046) e aos níveis de TG (p = 0,007). A mesma análise também foi usada para investigar se a relação entre TSH e os parâmetros metabólicos continuaria estatisticamente significativa independentemente da idade e do sexo. Nesse segundo modelo, a idade, o sexo e os níveis de TSH foram usados como variáveis independentes e cada parâmetro metabólico, como dependente. Após a regressão, a TSH continuou relacionada de forma independente ao HOMA-IR (p = 0,0015) e aos triglicerídeos (p = 0,0092). Uma relevância de tendência foi encontrada ainda para o colesterol HDL (p = 0,0508) e a glicemia de jejum (p = 0,0706).

A tabela 4 apresenta uma comparação de parâmetros antropométricos e metabólicos de indivíduos com função da tireoide normal com base em um valor de corte de TSH de 2,5 µIU/mL. Indivíduos com níveis de TSH > 2,5 apresentaram maior RCQ e HOMA-IR e tendência a maior CC.

Tabela 4 Comparação de parâmetros antropométricos e metabólicos em adolescentes de acordo com o nível de corte de TSH 

TSH < 2,5 (n = 60) TSH ≥ 2,5 (n = 110) p
Idade (anos) 14,0 (12-17) 14 (11-17) 0,024
IMC (kg/m2) 34,1 (23,4-50,2) 34,5 (23,9-52,6) 0,11
Cintura (cm) 100,9 ± 13,6 105,3 ± 14,3 0,054
RCQ 0,89 ± 0,08 0,92 ± 0,07 0,04
Glicose (mg/dL) 87 (72-323) 87,0 (68-133) 0,55
Glicemia de 2 horas (mg/dL) 101 (43-166) 102,5 (42-252) 0,53
HOMA-IR 2,71 (0,37-17,22) 3,51 (0,20-50,70) 0,028
TG (mg/dL) 93 (36-214) 95 (30-356) 0,25
HDL-C (mg/dL) 45 (27-74) 40 (20-68) 0,023
LDL-C (mg/dL) 92,1 ± 25,2 95,1 ± 25,4 0,46

Dados apresentados como mediana (mínimo-máximo), exceto cintura, RCQ e LDL-C, que são apresentados como média ± DP.IMC, índice de massa corporal; HDL-C, colesterol HDL-C; HOMA-IR, modelo de avaliação da homeostase; LDL-C, colesterol LDL-C; RCQ, razão cintura/quadril; TG, triglicerídeos.

Discussão

Nesta amostra de adolescentes obesos e acima do peso, 85% dos pacientes apresentaram função da tireoide normal e 13,63% apresentaram HSC. A frequência de HSC observada nesta amostra parece maior do que a relatada na literatura, mesmo com um valor de corte de 5,0 µIU/mL. Na população pediátrica em geral, a prevalência de HSC é inferior a 2%, porém é importante observar que os estudos epidemiológicos nessa faixa etária são escassos.

Diversos estudos revelaram uma correlação positiva entre o peso e os níveis de TSH em crianças. Esses estudos também demonstraram que 10-23% das crianças obesas apresentam níveis moderadamente elevados de TSH (4-10 µIU/mL), associados a níveis normais de T4l ou níveis levemente elevados de T4l e/ou T3l. Os níveis de TSH em crianças e adultos obesos têm sido sistematicamente relatados como elevados em comparação com indivíduos com peso normal.8,9,12,23,24 Uma pesquisa anterior revelou não apenas uma correlação positiva entre o IMC e a TSH, como também entre um ganho de peso de cinco anos e um aumento gradual nos níveis de TSH sérica.8 Este é o primeiro estudo a avaliar os níveis de TSH em uma população sul-americana de crianças obesas. Considerando que o Rio de Janeiro é uma área urbana do Brasil, sem deficiência de iodo, não podemos encontrar uma explicação razoável para a prevalência elevada de HSC encontrada em nosso estudo. São necessários mais estudos para investigar se a prevalência de HSC é maior no Brasil e/ou em outros países da América do Sul.

Quando pacientes com HSC foram comparados com indivíduos eutireoideos, observamos que apresentavam maior CC. Esse achado é extremamente importante, pois a CC fornece informações sobre a distribuição da gordura. A prevalência de uma distribuição central de gordura está correlacionada com maior RCV e a CC parece ser o melhor método antropométrico para avaliar essa distribuição em adolescentes e crianças púberes, embora isso continue aberto a debate.6,25 A obesidade central ou abdominal, caracterizada pelo aumento da CC, tem sido correlacionada a PAS, PAD, colesterol total, TG, LDL-C e HDL-C.4-8 Em um artigo publicado por Blüher et al., o IMC e a CC foram relatados como os melhores preditores antropométricos de comorbidades em adolescentes púberes obesos.25 Assim, a correlação da TSH com a CC contribui para sua possível relação com a RI e maior RCV. Diversos estudos com crianças e adolescentes demonstraram a relação entre TSH e IMC, porém alguns deles relataram uma relação estatisticamente significativa com a CC.26-28 Curiosamente, embora tenhamos encontrado mudanças em diversos parâmetros antropométricos de adolescentes com HSC, não encontramos anomalia laboratorial. Talvez esses dados sugiram que, nesse período inicial da vida, o excesso de peso e gordura visceral pode não ser suficiente para causar mudanças metabólicas. Contudo, é possível que essas alterações sejam identificadas no futuro. São necessários estudos para avaliar essa hipótese.

Nos indivíduos eutireoideos, encontramos uma correlação fraca, porém estatisticamente significativa, da TSH com HOMA-IR, HDL e TG. Com TSH e IMC como variáveis independentes, descobrimos que a TSH estava relacionada com o HOMA-IR e a TG de forma independente. Um estudo italiano que também fez essa comparação em crianças acima do peso mostrou que pacientes com altos níveis de TSH apresentavam níveis significativamente maiores de ALT, gama glutamil transferase (GGT), colesterol total, TG, insulina e HOMA-IR.26 Da mesma forma, em um estudo turco, a TSH foi correlacionada positivamente a colesterol total, TG e PAS.27 Outro estudo com adolescentes e crianças obesos eutireoideos que passavam por perda de peso rápida concluiu que a redução na TSH resultou em uma redução de mais de 50% dos níveis de insulina de jejum e HOMA-IR, independentemente de alterações no peso ou na composição corporal. Essa melhoria não foi associada a perda de peso, mas sim a uma redução nos níveis de TSH sérica. Esses dados sugerem que as alterações da função da tireoide na obesidade não são simplesmente mecanismos adaptativos.28

Mesmo ao examinar apenas pacientes eutireoideos, indivíduos com maiores níveis de TSH (> 2,5 µIU/mL) apresentaram maior HOMA-IR e RCQ, menores níveis de HDL-C e tendência a menor CC. Existem relativamente poucos estudos que investigam adolescentes obesos eutireoideos, porém a correlação de HOMA-IR com TSH foi relatada em diversos estudos.26-28 Ruhla et al.13 constataram que indivíduos eutireoideos com TSH na faixa superior da normalidade (2,5-4,5) apresentam níveis maiores de TG e maior incidência de SM. Roos et al. também relataram uma associação entre componentes da SM e a função da tireoide em indivíduos com HSC e em indivíduos eutireoideos. Neste estudo, pacientes eutireoideos com TSH no limite superior da normalidade apresentaram maiores níveis de colesterol total, glicose, insulina e HOMA-IR.29

As evidências mencionadas, além dos resultados atuais, reforçam a relação entre a função da tireoide, principalmente dos níveis de TSH, e a RI. Em pacientes com hipotireoidismo, a RI foi bem documentada no tecido muscular e adiposo e resulta em absorção da glicose prejudicada e redução da gliconeogênese em músculos esqueléticos.25 Essas mudanças metabólicas foram revertidas com a terapia de reposição de LT4. Diversos estudos também relataram a presença de RI em HSC.6,15 Ao avaliar os perfis lipídicos de pacientes com HSC, a maioria dos estudos não encontrou diferenças significativas nos níveis médios de colesterol total de pacientes com HSC em comparação com indivíduos eutireoideos, embora alguns estudos tenham observado diferenças na frequência de dislipidemia entre esses grupos.30

Nosso estudo tem diversas limitações. Primeiro, o fato de ser transversal impede o estabelecimento de relações temporais entre as variáveis investigadas. Além disso, como foi feito retroativamente, não conseguimos analisar outros parâmetros, incluindo os níveis de T3l, T4l e leptina. Mais importante, os anticorpos da tireoide também não foram avaliados. Portanto, não é possível determinar se essa frequência maior de HSC estava relacionada à tireoidite de Hashimoto ou a outra etiologia. Um estudo longitudinal que acompanhe cada grupo em um determinado período e faça avaliações e observações repetidas poderá levar a conclusões diferentes; serão necessários estudos para avaliar isso. Por fim, o diagnóstico de HSC deveria ter como base valores específicos de TSH de acordo com o sexo, a idade e o estágio de Tanner. Contudo, esses dados não estão disponíveis para a população brasileira. Portanto, o diagnóstico teve com base apenas o valor de corte do kit.

Em resumo, a frequência de HSC é de aproximadamente 15% em uma amostra de adolescentes acima do peso e obesos. Esses indivíduos, embora apresentem condição metabólica semelhante à de pacientes com a função da tireoide normal, apresentam maior CC, sugerem que o HSC pode estar associado ao excesso de peso corporal, principalmente de peso visceral. Em adolescentes com a função da tireoide normal, também parece haver uma relação direta entre TSH e alguns dos principais marcadores de RI e SM. Essas correlações, apesar de estatisticamente significativas, foram fracas e devem ser interpretadas com cuidado. Em especial, os pacientes com TSH no limite superior da normalidade parecem apresentar pior perfil metabólico, sugerem que a função da tireoide pode ser um dos determinantes da RI e SM nesta amostra. Contudo, a relevância clínica desses achados precisa ser determinada em estudos futuros. Será especialmente importante fazer grandes estudos que examinem as possíveis vantagens de tratar crianças e adolescentes obesos, com vistas a uma TSH de cerca de 2,5 para atenuar as repercussões metabólicas.

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