versão impressa ISSN 0021-7557versão On-line ISSN 1678-4782
J. Pediatr. (Rio J.) vol.94 no.4 Porto Alegre jul./ago. 2018
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2017.06.023
A prevalência de insuficiência cardíaca (IC) tem aumentado e representa uma carga crescente em termos de custos de tratamento e mortalidade, principalmente quando ocorre em crianças pequenas. Consequentemente, é necessário um melhor entendimento da melhor forma para avaliar e tratar a IC. Apesar de terem sido feitos avanços no diagnóstico e tratamento da IC em adultos, falta conscientização semelhante para pacientes pediátricos com IC.1
A melatonina (N-acetil-5-metoxitriptamina), um produto secretor da glândula pineal humana, é bem conhecida por sua influência sobre o sistema cardiovascular. A melatonina tem uma ação protetora no coração feita por meio de mecanismos mediados por receptores e independentes de receptores.2 O mecanismo mediado por receptores envolve receptores de membrana de melatonina clássicos (MT1 e MT2); contudo, a localização precisa desses receptores não foi completamente explicada.3 O mecanismo independente de receptores de melatonina ocorre por meio de sua função como um potente antioxidante e eliminador de radicais livres.4 Foi mostrado que a melatonina reduz a hipertensão,5 protege o coração isquêmico/reperfundido6 e resiste ao processo de aterosclerose.7 A hipertrofia dos cardiomiócitos inicialmente ocorre como uma resposta compensatória, porém eventualmente se torna patológica e pode levar a IC. A melatonina afeta a sobrecarga hemodinâmica, a disponibilidade de óxido nítrico (NO), os radicais livres e os perfis lipídicos que também podem modificar a hipertrofia dos cardiomiócitos.8
A associação entre a melatonina e a IC pediátrica não foi totalmente entendida. Fizemos um estudo para investigar os níveis circulantes de melatonina em crianças com IC.
Este estudo pediátrico foi aprovado pelo Comitê de Ética. Todas as amostras de sangue dos pacientes foram coletadas após o consentimento informado por escrito ter sido assinado pelos pais ou responsáveis.
As amostras de sangue de 72 crianças diagnosticadas com IC e 12 crianças saudáveis submetidas a exames de rotina foram coletadas entre dezembro de 2014 e dezembro de 2015 no Centro de Exame Clínico. A idade média das crianças com insuficiência cardíaca foi de um ano (intervalo 0-11,75 anos), com 44 pacientes com menos de um ano (61,1%), 16 pacientes entre um e 13 anos (22,2%) e pacientes entre quatro e sete anos (4,2%) e nove pacientes com > 8 anos (12,5%). As cardiopatias incluíram: defeitos do septo ventricular (n = 11), defeitos do septo atrial (n = 3), tetralogia de Fallot (n = 1), persistência do canal arterial (n = 3), cardiopatia congênita complexa (n = 20), estenose da aorta (n = 1) e ventrículo único (n = 3). Outras doenças incluíram: cardiomiopatia primária (n = 20), miocardite (n = 4), arritmias (n = 4), pneumonia (n = 1) e leucemia (n = 1). Todas as amostras de sangue foram coletadas entre 8h e 10h, perto do horário em que as crianças também foram submetidas a exame clínico. Com base nos critérios de Ross modificados para função cardíaca,9 a IC foi dividida em leve (escore: 3-6), moderada (escore: 7-9), grave (escore: 10-12). Para analisar a associação entre os dados clínicos relevantes e a incidência de IC em crianças, os dados de 72 crianças com IC foram coletados retroativamente. Os dados incluíram idade, sexo, duração da internação, exame ecocardiográfico, valores laboratoriais, diagnóstico e frequência cardíaca detectada no momento da internação. As concentrações de mioglobina (MB), troponina I (TnI), isoenzima MB da creatina quinase (CK-MB) e peptídeo natriurético cerebral (BNP) foram medidas por imunoensaio quimioluminescente (Siemens®, Munique, Alemanha) por um examinador no laboratório clínico do hospital. As características clínicas de todas as 84 crianças que foram avaliadas e as patologias dos 72 pacientes pediátricos com IC estão resumidas na tabela 1.
Tabela 1 Valores clínicos, ecocardiográficos e laboratoriais e níveis séricos de melatonina de pacientes pediátricos com insuficiência cardíaca e controles saudáveis
Controle (n = 12) | IC leve (n = 26) | IC moderada | IC grave (n = 13) | F | p | |
---|---|---|---|---|---|---|
Idade (anos) | 0,55 (0,17-12,9) | 0,54 (0,06-11,33) | 0,58 (0,0-11,67) | 0,94 (0,14-11,75) | 1,852 | > 0,05 |
Sexo (masculino/feminino) | 7/5 | 12/14 | 19/14 | 10/3 | 4,24 | > 0,05 |
Tempo de internação (dias) | 14,15 ± 9,92a | 22,24 ± 16,43 | 13,23 ± 8,59a | 3,648 | 0,031 | |
Parâmetros ecocardiográficos | n = 24 | n = 28 | n = 10 | |||
FE (%) | 62,24 ± 14,23b | 60,61 ± 14,98c | 46,4 ± 17,34 | 4,262 | 0,019 | |
FS (%) | 33,67 ± 9,55 | 32,04 ± 9,88 | 26,6 ± 9,89 | 1,868 | > 0,05 | |
Dados laboratoriais | ||||||
MB sérica (µg/L) | 25,93 (12,45-332,75) |
25,12 (0,01-520,9) |
28,95 (12,3-135,28) |
1,108 | > 0,05 | |
Trop I sérica (µg/L) | 0,1 (0,01-0,71) | 0,07 (0-76,93) | 0,2 (0,01-2,91) | 1,765 | > 0,05 | |
CK-MB sérica (pmol/L) |
3,96 (0,88-11,98) |
3,33 (0,41-8,8) |
2,37 (0,36-13,79) |
1,124 | > 0,05 |
|
BNP sérico (ng/L) | 106,7 (7,75-18700) |
85,39 (0,58-35000) |
260,53 (4,46-1586,65) |
0,455 | > 0,05 |
BNP, peptídeo natriurético cerebral; CK-MB, isoenzima MB da creatina quinase; FE, fração de ejeção; FS, fração de encurtamento; MB, mioglobina; Trop I, troponina I altamente sensível.Os valores são expressos como média ± DP ou mediana (intervalo).
ap < 0,05 em comparação com o grupo de IC moderada.
bp < 0,01 em comparação com o grupo de IC grave.
cp < 0,05 em comparação com o grupo de IC grave.
Todas as amostras de soro foram armazenadas em um freezer a -80 °C antes dos testes. Os níveis de melatonina, MPO e caspase 3 foram medidos com o kit Elisa para melatonina humana (Arigo, Taiwan), kit Elisa para MPO humana (eBioscience® Thermofisher, CA, EUA) e kit Elisa para caspase 3 humana (Westang Bio-tech®, Shanghai, China), respectivamente. Todos os ensaios foram feitos de acordo com as orientações dos fabricantes.
Todas as análises estatísticas foram feitas com o software SPSS (IBM SPSS Estatística para Windows, Versão 19.0. NY, EUA). Todos os dados são mostrados como média ± DP, com exceção dos dados que não foram distribuídos normalmente, que são mostrados como mediana (intervalo). Para as variáveis normalmente distribuídas, as comparações entre grupos foram avaliadas com uma análise de variância unidirecional (Anova). O método de menor diferença significativa (LSD) foi usado para estimar as comparações por pares. Para variáveis não normalmente distribuídas, as comparações entre grupos foram avaliadas com um teste H de Kruskal-Wallis e o teste qui-quadrado foi usado para comparações. A análise de regressão linear foi feita para determinar a associação entre os níveis séricos de melatonina com fração de ejeção (FE) e com níveis de caspase 3 e MPO em pacientes pediátricos com IC. Uma análise da correlação de Pearson foi usada para determinar se houve uma associação linear entre a concentração sérica de melatonina e esses dados mencionados. Para determinar o valor de corte adequado de melatonina no soro para diagnóstico IC grave e cardiomiopatia primária em pacientes pediátricos com IC, foram analisadas a área sob a curva ROC (AUC), a sensibilidade, a especificidade, o valor preditivo positivo (VPP), o valor preditivo negativo (VPN) e o índice de Youden (J). Um valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo para todos os testes.
A FE no grupo com IC grave foi a menor entre os quatro grupos (p = 0,019). A duração da internação (p = 0,031) também foi diferente entre os quatro grupos (tabela 1). Conforme mostrado na figura 1A, o nível médio de melatonina no soro foi de 188,3 pg/mL, com intervalo de 10,06-666,7 pg/mL no grupo de IC grava, que foi a maior mediana entre os quatro grupos (p = 0,031). A figura 1B representa os níveis séricos de MPO; no grupo com IC grave, o valor médio de MPO foi de 304,200 pg/mL, com intervalo de 61,880-1,402,700 pg/mL, que foi o mais alto entre os quatro grupos (p < 0,001). Não foram encontradas diferenças significativas nos níveis de caspase 3 entre os quatro grupos (p > 0,05) (figura 1C). Não houve relação entre os níveis circulantes de melatonina e a idade, o sexo, o tempo de internação, a FE ou a etiologia da IC (todos p > 0,05) (figura 1D-H).
Figura 1 Níveis séricos de melatonina (A), MPO (B) e caspase 3 (C) em pacientes por grau de disfunção cardíaca. Níveis séricos de melatonina em pacientes pediátricos estratificados por idade (D), sexo (E), tempo de internação (F), fração de ejeção (G) e etiologia da insuficiência cardíaca (H). ** p < 0,01 em comparação com o grupo de insuficiência cardíaca grave.DSV, defeitos do septo ventricular; DSA, defeitos do septo atrial; T4F, tetralogia de Fallot; PCA, persistência do canal arterial.
Houve uma correlação positiva significativa entre o nível sérico de melatonina e o nível sérico de caspase 3 (p = 0,003) (figura 2A). Em contrapartida, os níveis séricos de melatonina não foram correlacionados a MPO (p > 0,05) (figura 2B), FE (p > 0,05) (figura 2C) ou à frequência cardíaca dos pacientes detectada no momento da internação (p > 0,05) (figura 2D).
As concentrações séricas de melatonina, que variam de 1,1851-667,6936 pg/mL, foram usadas para gerar as curvas de ROC e definir o valor ideal de melatonina no soro para diagnosticar IC grave em pacientes pediátricos. A AUC, sensibilidade, especificidade, VPP, VPN e valor de J foram avaliados. Dentre todos os pacientes pediátricos com IC, um valor de corte de 54,1404 pg/mL resultou no índice J mais elevado (0,545) com sensibilidade de 0,833, especificidade de 0,712, VPP de 0,37 e VPN de 0,94, indicou que esse pode ser o valor de corte ideal para diagnosticar IC grave (figura 3A).
As curvas de ROC para concentrações de melatonina circulante foram usadas para definir o valor ideal de melatonina no soro para diagnosticar cardiomiopatia primária em pacientes pediátricos com IC. Dentre todas as crianças com IC, um valor de corte de 32,8805 pg/mL resultou no índice J mais elevado (0,429) com sensibilidade de 0,9, especificidade de 0,529, VPP de 0,43 e VPN de 0,93, indicou que esse pode ser o valor de corte ideal para diagnosticar cardiomiopatia primária nesses pacientes (figura 3B).
Figura 3 Comparação das curvas de ROC para o desempenho diagnóstico da melatonina na identificação de insuficiência cardíaca (IC) grave (A) e cardiomiopatia primária (B) em pacientes pediátricos com IC. (A) AUC = 0,780 para melatonina p = 0,002. O valor de corte máximo foi de 54,1404 pg/mL para melatonina (sensibilidade = 0,833, especificidade = 0,712, VPP = 0,37, VPN = 0,94 e J = 0,545). (B) AUC = 0,683 para melatonina (p = 0,017). O valor de corte máximo foi 32,8805 pg/mL para melatonina (sensibilidade = 0,900, especificidade = 0,529, VPP = 0,43, VPN = 0,93 e J = 0,429). VPP, valor preditivo positive; VPN, valor preditivo negativo; J, índice de Youden.
A IC é uma doença grave e é a fase terminal de muitas doenças cardiovasculares pediátricas, principalmente cardiomiopatia primária ou doença cardíaca congênita.10 Contudo, o mecanismo molecular não é totalmente entendido. As doenças cardiovasculares foram associadas a ritmicidade temporal e transtorno afetivo sazonal.11 Hipertensão, isquemia do miocárdio, arritmia, angina e morte súbita devido a IC normalmente têm maior incidência na manhã, principalmente entre 6h e 12h.12 As doenças cardiovasculares também parecem mostrar variação na gravidade com alterações sazonais.13 A melatonina é secretada pela glândula pineal com ritmicidade diurna. A exposição à luz, principalmente durante o dia, inibe a secreção de melatonina.14 Contudo, o papel da melatonina na fisiopatologia associada à ritmicidade da IC em pacientes pediátricos continua incerto.
Uma pesquisa demonstrou que menores níveis de melatonina são observados no subgrupo da classe III da New York Heart Association (NYHA) de pacientes adultos com IC.15 Um estudo separado revelou que os níveis séricos de melatonina em pacientes com IC que sofrem de cardiomiopatia hipertensiva foram menores do que em indivíduos sem IC.16 Nossos dados contradizem o que é visto em adultos e mostra que os níveis circulantes de melatonina foram significativamente maiores em crianças com IC grave. Nossos dados sugerem que pode haver um mecanismo separado em pacientes pediátricos com IC que afeta os níveis de melatonina. A melatonina desempenha um papel protetor nas doenças cardiovasculares, age como antioxidante e poderoso eliminador de radicais livres.17 Especulamos se o aumento da concentração de melatonina em pacientes pediátricos com IC grave pode ser um mecanismo compensatório; essa especulação garante investigação adicional.
Vários estudos sugeriram que o estresse oxidativo excessivo está associado a apoptose de células do miocárdio18 e ao processo patológico que leva a IC.19 Neste estudo, os níveis de MPO aumentaram em pacientes com IC grave, indicaram que o estresse excessivo de espécies reativas de oxigênio está envolvido no desenvolvimento patológico de IC pediátrica. Embora não tenham sido encontradas diferenças significativas nos níveis séricos de caspase 3 entre os grupos, constatamos que os níveis circulantes de melatonina estão positivamente associados a caspase 3 no soro, sugerem um possível papel da melatonina no processo apoptótico que leva à IC pediátrica. Estudos anteriores demonstraram que as concentrações séricas de melatonina variaram com a idade e as crianças mais novas mostraram níveis mais elevados de melatonina em condições saudáveis; contudo, não encontramos relação entre melatonina e idade, sexo, tempo de internação, FE, frequência cardíaca detectada no momento da internação ou etiologia da IC. Essa diferença dos estudos anteriores pode ser devida ao fato de que as amostras séricas nos estudos anteriores foram coletadas de crianças saudáveis, ao passo que examinamos crianças com IC pediátrica.
É comprovado que os níveis plasmáticos de peptídeo natriurético cerebral (BNP) ou peptídeo natriurético pró-cerebral N-terminal (NT-proBNP) são úteis no diagnóstico, prognóstico e manejo de crianças com insuficiência cardíaca.20 Houve uma correlação negativa entre as concentrações plasmáticas de BNP ou NT-proBNP e as idades em neonatos e crianças com disfunção cardíaca.21,22 Em nosso estudo, não foi encontrada essa correlação entre os níveis séricos de melatonina e as idades em crianças com IC. Contudo, esses valores de melatonina no diagnóstico de crianças com IC são muito melhores do que BNP ou NT-proBNP. Em adultos, a melatonina tem sido sugerida não somente como um biomarcador de diagnóstico, mas também como uma possível opção terapêutica para doenças cardiovasculares.17 Assim, é necessário saber os níveis de melatonina em crianças cardíacas para demonstrar o real benefício da melatonina no manejo de crianças com IC.
Os níveis circulantes de melatonina e MPO foram elevados em pacientes pediátricos com insuficiência cardíaca grave. Além disso, os níveis séricos de melatonina foram correlacionados com os níveis séricos de caspase 3. São necessários estudos adicionais para investigar o papel da melatonina em crianças com IC.
Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética. Todas as amostras de sangue dos pacientes foram coletadas após o consentimento informado por escrito ter sido assinado pelos pais ou responsáveis.