versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.6 Rio de Janeiro jun. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018236.05732018
Tratar do futuro como profecia na vida das sociedades humanas não pertence ao universo da cultura científica, independentemente do que se entenda por ciência. Camuflada de projeção, a profecia ganha espaço na mídia erudita e pode pedir ingresso na esfera acadêmica. A depender da quantidade de variáveis intervenientes num processo a capacidade de prever passa de uma estimativa bem razoável do que poderá acontecer em um determinado período de tempo a uma mera especulação sobre o que poderia ou, talvez melhor, o que desejaríamos que acontecesse.
O jornalista Adam Shawn 1 comentou os trabalhos de dois investigadores a respeito do tema. O físico Michael Barry tentou prever o percurso de uma bola de sinuca depois de atingida pelo golpe de impulso. Prever onde iria parar a primeira bola foi fácil; o segundo impacto tornou-se mais complicado, mas possível. O problema surgiu quando para a previsão do nono impacto seria necessário levar em conta a atração gravitacional de alguém que estivesse de pé por perto. Para a previsão do 56º impacto seria necessário incluir o efeito de cada partícula singular do universo.
Numa outra vertente, cita o economista do FMI Prakash Loungani que analisou a precisão das previsões econômicas. Seus estudos revelaram que os economistas, ao longo de três décadas, foram incapazes de prever 148 das 150 últimas recessões ocorridas em diversas partes do mundo. Loungani lembra que as previsões tanto de economistas do setor público quanto do setor privado foram pouco diferentes e com forte viés otimista. Ou, melhor, desejante.
Nessa linha, baseiam-se os exercícios prospectivos desenvolvidos pela iniciativa Brasil Saúde Amanhã da Fundação Oswaldo Cruz 2 , 3 , que acompanham as ideias de Gramsci quando afirma:
É certo que prever significa somente ver bem o presente e o passado enquanto movimento: ver bem, isto é, identificar com exatidão os elementos fundamentais e permanentes no processo. No entanto, é absurdo pensar numa previsão puramente “objetiva”. Quem faz previsão tem, na realidade, um “programa” que deve ser levado ao triunfo; e a previsão é, exatamente, um elemento desse triunfo . [....] somente na medida em que o aspecto objetivo da previsão é ligado a um programa, esta adquire objetividade 4 .
Para cotejar opções de futuro, a iniciativa escolheu a síntese proposta por Celso Furtado para os princípios de um projeto de desenvolvimento para o Brasil, esboçados no seu livro Capitalismo Global, onde:
o principal objetivo da ação social deixaria de ser a reprodução dos padrões de consumo das minorias abastadas para ser a satisfação das necessidades fundamentais do conjunto da população e a educação concebida como desenvolvimento das potencialidades humanas nos planos ético, estético e de ação solidária 5 .
Essa moldura fundamenta os exercícios traçados neste ensaio.
Numa intensa disputa entre as forças populares mobilizadas pelas liberdades democráticas e direitos sociais para a derrubada da ditadura e as elites ansiosas para a retomada de seu projeto de um país para poucos e nenhum compromisso com um projeto nacional, desenhou-se a Constituição de 1988, marcando contraditória e simultaneamente o alvorecer e o crepúsculo de uma nova ordem social para o país.
Ainda não somos capazes de perceber inteiramente, apesar do tempo decorrido, a potencialidade e o vigor das diversas forças que levaram o regime militar de 1964 à derrocada e à possibilidade de celebrar um pacto constitucional. Souza sugere que, derrotada a viabilidade de “uma aliança nacionalista para dinamizar o país e elevar o patamar de compra de todos, assim como a taxa de lucro dos empresários”, o golpe teria sido capaz de “[construir] a classe média moderna brasileira, o país para 20%, e [forjar] o mercado superfaturado para a elite da rapinagem”. Para ele,
o namoro entre militares e elite econômica passou a enfrentar problemas quando, no governo Geisel, houve a tentativa ambiciosa de criar uma forte infraestrutura industrial, muitas vezes baseada – ainda que o capital privado fosse sempre bem-vindo – no capital de empresas controladas pelo Estado . [....] E é precisamente aí, como reação ao plano de fortalecimento do capitalismo nacional do governo Geisel, que começa o amor repentino da elite do dinheiro brasileira pela democracia 6 .
Fiori sugere que três projetos para o Brasil estiveram presentes durante toda a história do século XX, e persistem no começo do novo século. Um primeiro de corte liberal, baseado numa política econômica ortodoxa e numa inserção subalterna na divisão internacional do trabalho, hegemônico até a revolução de 1930, tendo reaparecido em outros momentos. Um segundo, de caráter conservador, seria um programa desenvolvimentista industrializante que apareceu de formas diferentes em Vargas, Juscelino Kubitschek e nos militares. O terceiro e último projeto, embora tenha tangenciado as ideias e alianças do desenvolvimentismo conservador, só aparece efetivamente na Constituição de 1988 quando se institucionalizam alguns direitos civis, sociais, políticos, econômicos e de cidadania 7 .
Este último ganhou expressão na concepção e desenho das políticas de proteção social estabelecidas no capítulo da Seguridade Social, que a conceituou como o “conjunto de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade destinados a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social”. E fixou que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” 8 .
A partir dos dois últimos anos da década de 1980 teve início um movimento de opções (neste caso, supostamente) contraditórias: de um lado afirmava-se a descentralização e o “controle social” e, de outro, aprofundava-se uma subtração de recursos da saúde, que reduziu a política de incremento de gastos de meados dos anos 1980, acabando por eliminar as transferências da Previdência para a Saúde. A IX Conferência Nacional de Saúde, sob o tema “a municipalização é o caminho”, legitimou a intensificação do processo de descentralização, com enfraquecimento do poder dos estados. E ainda, extinguiu-se o INAMPS, uma das poucas burocracias governamentais criadas sob inspiração trabalhista com capacidade de articulação nacional, e aprovou-se a lei 8.080, a chamada “Lei Orgânica da Saúde” 9 .
As garantias estabelecidas para a atuação da iniciativa privada pela Constituição (Art. 199) 8 e pela Lei 8.080/90 (§ 2º do Art. 4º) 10 , abarcadas pelo SUS como prestação suplementar de serviços ao mesmo, constituíram o corredor por onde os arranjos privados (e incentivados) prosperaram. Apesar disso, houve espaço para a preservação dos princípios declaratórios do direito à saúde e da sustentação da política de descentralização pela municipalização, mantida pelas lideranças políticas em resposta às demandas por serviços de saúde da população não coberta por planos de saúde a partir da expansão do sufrágio universal 9 , 11 .
No início da década de 2000, o sistema de saúde brasileiro encontrava-se fraturado em dois. De um lado, um sistema para ricos e remediados, com redução ou quebra de cobertura nas doenças crônicas e na velhice, que obtém algum grau de regulação com a aprovação da lei 9.656/1998 12 . De outro, o Sistema Único de Saúde (SUS), de caráter público e nominalmente universal, utilizado por 75% da população, ainda fragmentado, múltiplo, descentralizado, com escassa coordenação e articulação, sub-remunerado, com ênfase nas prestações médico-assistenciais sem definição de prioridades, e orientado pela oferta de serviços.
A complexa explicação da privatização setorial decorre principalmente de políticas econômicas articuladas com concessão de benefícios e tributos, que permitiu ganhar a adesão de empregadores e empregados e, de forma perversa, estabeleceu uma conjugação de bases do financiamento e incentivos oriundos do fundo público, modelando uma assistência fragmentada e estratificada na sociedade e no interior das próprias empresas 13 .
A despeito de a saúde integrar a seguridade social e assumir a condição de direito social universal, o Brasil destoa dos países que dispõem de sistemas universais na composição entre arranjos públicos e privados de financiamento e provisão de serviços. Isto se torna evidente quando se observa a participação dos gastos governamentais no gasto total em saúde. Apesar da participação dos gastos totais no produto interno bruto situar-se em níveis aproximados (entre 9% e 11%), naqueles países o gasto público situava-se, em 2015, por volta dos 80% (Reino Unido, 81%; Suécia, 82,3%, França, 82,4%) 14 , enquanto o Brasil (42,9%) 15 é pior até quando comparado com os Estados Unidos (49,2%) 14 . Situação mais grave quando calculados os gastos per capita que mostram a distância entre o tamanho dos gastos públicos no Brasil e nos países desenvolvidos, medidos em paridade de poder de compra: 611 para o Brasil, 3.288 para o Reino Unido, 4.408, Suécia, 3.574, França, e 4.696 para os EUA 14 , 15 .
A Constituição de 1988 fixou 25% da receita de contribuições da Seguridade Social para o financiamento federal das ações e serviços de saúde. Essa vinculação não prosperou e, em 2000, a Emenda Constitucional 29 estabeleceu uma vinculação das receitas de estados e municípios em 12% e 15%, respectivamente (regulamentada pela Lei Complementar 141/2012 16 ), rompendo, para a União, a dedicação das contribuições sociais à Saúde, estabelecendo seu crescimento a variações nominais do PIB.
Se os anos 1990 trouxeram o engessamento do executivo federal com alguns pontos da lei de Responsabilidade Fiscal e da Desvinculação das Receitas da União, a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 17 estabeleceu um padrão ainda mais radical de contenção do Estado. Em realidade, o novo regime fiscal não precisaria da força de uma emenda constitucional não fosse a necessidade de retirar recursos da saúde e educação que possuem regras constitucionais para seus gastos 18 .
Vieira e Benevides 19 apresentam simulações do impacto do novo regime fiscal no financiamento setorial da saúde, estimando tanto em termos de receita líquida quanto em termos de participação no PIB, e realizando uma comparação com o que seria previsto de acordo com a Emenda Constitucional nº 86. Suas projeções dos gastos em saúde em razão da participação no PIB, com variações de diferentes trajetórias de crescimento sob os efeitos da EC nº 95 são apresentadas no Gráfico 1 .
Fonte: Vieira e Benevides 19 .
Gráfico 1 Projeção do impacto da EC 95 sobre o gasto federal com saúde em comparação com a manutenção da regra da EC 86 - em % do PIB.Hipóteses: 1) PIB: foram projetados quatro cenários para as taxas de crescimento real de PIB: três deles com taxa de crescimento real do PIB de 1,0% para 2017 (Focus/Bacen de 18/11/2016) e de 0%, 1% e 2% ao ano entre 2018 e 2036; o quarto cenário utiliza as estimativas de PIB e inflação do PLDO 2016 (anexo RGPS), que apresenta taxa média de 3,00% a.a. no período; 2) IPCA: os três primeiros cenários consideram 4,93% em 2017 (Focus/Bacen de 18/11) e 4,5% entre 2018 e 2036; o quarto cenário utiliza as taxas do PLDO 2016 (anexo RGPS): 2017: 6,0%; 2018: 5,4%; 2019: 5,0%; 2020 a 2036: 3,5%); 3) Hipótese de RCL/PIB constante em 11,45% do PIB (previsão 2017); 4) RCL de 2017 = R$ 758,3 bilhões, conforme PLOA 2017; 5) PIB nominal de 2016 estimado em R$ 6.220,5 bilhões, e RCL de 2016 estimada em R$ 729,8 bilhões, conforme Relatório de Avaliação de Receitas e Despesas Primárias da SOF/MPOG - 5º Bimestre de 2016; 6) Base para aplicação mínima em ASPS conforme a EC 95, de 15,0% da RCL de 2017.
É preciso lembrar que não há nenhum óbice ao gasto público para um país emissor de sua própria moeda, com oferta suficiente de trabalho e sem restrições externas. O deficit do setor público é o superavit do setor privado e, portanto, o superavit público significa o deficit das empresas e famílias. Dito de outra forma, a responsabilidade fiscal é algo nocivo à sociedade. Deveriam os tomadores de decisão de políticas públicas se pautar pela responsabilidade econômica e social sintetizada nas variáveis inflação e emprego, bem como na construção de um Estado de Bem-Estar Social.
A maioria dos economistas parte da interpretação smithiana de moeda enquanto uma mercadoria. Na verdade, Innes 20 demonstrou que a moeda é uma relação de crédito e débito. A aceitação de um débito de um determinado agente por outro é o ato que em si cria a moeda. De forma bastante simplificada, como há a obrigação do pagamento dos tributos, entende-se, portanto, que a moeda em última instância seria uma criatura do Estado 21 . Sob esta ótica o dispêndio público é financiado sempre pela emissão monetária, enquanto tributação e o endividamento do estado são apenas formas de se reduzir a quantidade de moeda em poder do público.
Daí deriva-se a ideia das finanças funcionais 22 , um contraponto à ideia das finanças saudáveis que tem embasado todo o pensamento de austeridade e coloca os governos reféns dos resultados fiscais. Nesta perspectiva, rejeita-se a ideia de equilibrar o orçamento governamental num ano ou qualquer outro período arbitrário para que o gasto público seja orientado pelo nível do emprego e pela taxa de inflação.
Assim, os gastos em saúde, previdência, ou qualquer outro do governo, deveriam ser orientados pelos seus impactos econômicos e sociais. Do ponto de vista econômico os gastos em saúde são aqueles que produzem impactos mais positivos no PIB:
O efeito multiplicador do gasto com saúde no país foi calculado em 1,7, ou seja, para um aumento do gasto com saúde de R$ 1,00, o aumento esperado do PIB seria de R$ 1,70 (Abrahão, Mostafa e Herculano, 2011). Segundo Stuckler e Basu (2013), em estudo que analisou dados de 25 países europeus, dos Estados Unidos e do Japão, a educação e a saúde têm os maiores multiplicadores fiscais, que são superiores a três 19 .
Entretanto, existem razões de natureza política que prevalecem na defesa de políticas de fiscais restritivas. Kalecki 23 , já nos anos 1940, ao discutir o pleno emprego, indicava haver três razões dessa ordem. A primeira, manter o governo sob controle através da chantagem de que distúrbios na confiança dos agentes provocam crises econômicas. A segunda questiona a direção do gasto público por temer a concorrência do investimento público ou porque eventuais subsídios ao consumo de massa desmontam um dos princípios morais basilares do sistema capitalista, “você deve ganhar o seu pão no suor”. Por fim, a terceira razão decorre do natural empoderamento dos trabalhadores quando a demissão não tem mais o seu caráter disciplinador.
É importante, no escopo desta reflexão, destacar a oposição à direção do gasto público. Não apenas às políticas assistenciais que subsidiam o consumo de massa como o bolsa-família, mas principalmente a concorrência do investimento público ao capital privado. Um Sistema Único de Saúde estruturado, funcional e sem subfinanciamento cria muitas dificuldades, quando não inviabiliza, à atuação do capital tanto no mercado de planos de saúde quanto no provimento de serviços privados de saúde. Corte de gastos públicos, portanto, não tem relação com modernizar o Estado e torná-lo eficiente.
Desta forma, a responsabilidade fiscal nada tem a ver com qualquer tipo de restrição orçamentária para os gastos públicos, mas sim com as razões políticas. Obviamente, não se pode ignorar a existência de diversos diplomas legais que impõem a doutrina das finanças saudáveis e sua ideologia da austeridade. Entretanto, o deficit público não é um problema. Não se deve olhar os gastos sociais (saúde, previdência ou educação, por exemplo) sob a ótica de um resultado fiscal arbitrário, de um ano ou qualquer outro período que se queira, mas que se faça uma análise dos seus resultados econômicos e sociais.
Trinta anos passados depois da promulgação da Constituição, o Brasil mudou de maneira significativa seu perfil demográfico e epidemiológico. Registrou tendências que, grosso modo, não deverão sofrer grandes transformações nos trinta anos subsequentes, representadas no Gráfico 2 . Segundo as projeções do IBGE, a população de maiores de 65 anos triplica de 1988 para 2018, atingindo a cifra de 18,3 milhões, e chegará, em 2048, a 49 milhões de brasileiros, dos quais 14 milhões com mais de 80 anos 24 .
Fonte: IBGE, Projeção da População Brasil e Unidades da Federação, 2013.
Fonte: IBGE, Projeção da População Brasil e Unidades da Federação, 2013.
Fonte População 1990: IBGE. Projeção da População do Brasil por Sexo e Idade para o Período 1980-2050 - Revisão 2008 27 .
Fonte População 2020 – 2050: IBGE. Projeção da população por sexo e idade: Brasil 2000-2060 24 .
Gráfico 2 Composição absoluta da população, por idade e sexo - Brasil – 1990, 2020, 2050.
Essa tendência reflete um padrão de morbimortalidade no qual coexistem problemas decorrentes diretamente da pobreza associados a um quadro de predomínio das doenças crônico degenerativas, agravado por um elevado contingente de eventos provocados por causas externas. Isso acarreta mudanças no modelo de cuidados de atenção à saúde, no bojo de um processo em que as doenças agudas que podiam ser curadas são substituídas por outras que requerem cuidados continuados e permanentes (from cure to care apud Cochrane 25 ), que já se delinearam nos países desenvolvidos a partir de meados do século XX. Esse perfil obriga a intervenção de diferentes profissionais de saúde, bem como a prestação de serviços sociais e de apoio comunitário, assistência domiciliar, centros de cuidados prolongados e de cuidados paliativos. Como decorrência, os processos de referência e contrarreferência são continuados demandando alternativas aos recortes político-administrativos tradicionais, de modo a facilitar o fluxo da demanda 26 . Além disso, cálculos efetuados pelos autores estimam que apenas a mudança no perfil demográfico, mantidas as opções tecnológicas vigentes, implicaria num aumento dos gastos com atenção à saúde, em 20 anos, da ordem de 38%. Almejar alguma capacidade de integração e coordenação de cuidados pode parecer quimérico em um sistema fortemente segmentado, com terceiras partes pagadoras públicas e privadas. Em um país continental, com 27 unidades federadas e 5.570 municípios de dimensões territoriais e populacionais, biomas e uso do solo, condições sociais e econômicas bastantes diversas, torna-se impossível pensar em sistema de saúde equitativo que responda a essas condições sem forte coordenação e integração federativa. Em torno de 2011, apenas 95 municípios apresentavam capacidade instalada de resolutividade assistencial de média complexidade 28 . A desigualdade na distribuição da oferta de serviços no território brasileiro e na vinculação exclusiva ou vantajosa de prestadores a pagadores privados constituem barreiras adicionais ao desiderato de um sistema universal e equitativo 29 .
A contração de gastos no setor público agravada pela revisão dos mecanismos das transferências do governo federal para municípios adotada pelo Ministério da Saúde em fins de 2017, reduzindo suas condicionalidades programáticas, acaba por acentuar a fragmentação do sistema público e, indiretamente, à semelhança do que ocorreu na década de 1990 11 , estimular os arranjos privados. A receita bruta das operadoras de planos de saúde, em 2016, já foi quase uma vez e meia superior ao orçamento do Ministério da Saúde. Além disso, enquanto as despesas do SUS, somados os três níveis de governo, aumentou, em valores reais, de 2012 a 2016, 0,5%, a receita bruta dos planos e seguros de saúde, no mesmo período, cresceu em 27,0%. Em 2016, o per capita da média dos planos foi 2,55 vezes superior ao do SUS. Os 6,5 milhões de brasileiros cobertos pelas seguradoras (3,5% da população) apresentaram um per capita 4 vezes maior (cálculos a partir de dados do SIOPS 30 e da ANS 31 ).
A drenagem de incentivos para os segmentos de maior renda cobertos pelos planos resulta de uma combinação, a par do maior controle sobre a força de trabalho, de salários indiretos não tributados transferidos ao consumidor final dos bens ou serviços, nos planos coletivos, e de deduções no imposto de renda tanto de pessoas físicas, tanto em planos individuais como em coparticipações em planos coletivos 32 . De um total de gastos tributários da União para a função saúde estimados para 2018 em cerca de 39 bilhões de reais, 18 bilhões referiam-se a despesas com assistência à saúde 33 .
Como consequências do estrangulamento fiscal, do ponto de vista da organização do sistema de cuidados tornaram-se evidentes tendências ao acirramento da competição entre os entes federados e, nestes, entre os prestadores; à inviabilização de organização em rede dos serviços com fragmentação e segmentação dos cuidados; à redução dos investimentos em novas capacidades; e à queda da qualidade e segurança dos serviços. No setor privado, se tornaram visíveis a expansão de novos arranjos assistenciais como as clínicas de vizinhança e clínicas populares, bem como o desenvolvimento e fortalecimento de novas modalidades de pré-pagamento: planos populares, VGBL Saúde e franquias. É de se prever um aumento da desigualdade territorial por riqueza e da estratificação do atendimento e, da mesma forma, da concentração das inversões e inovações no setor privado de ponta.
Esse quadro corresponde ao que Viana et al. 34 , ao elaborar cenários prospectivos para a gestão em saúde, denominaram “pluralismo mercantil, de institucionalidade privada lucrativa”, correspondente a um horizonte pessimista que se afasta ainda mais do cenário desejável e viável, chamado “pluralismo integrado, de institucionalidade estatal sob a égide do Direito Público”, mais próximo do cumprimento constitucional.
A despeito de medidas compensatórias que permitiram a retirada de 28 milhões de pessoas da pobreza entre 2000 e 2015, a concentração de renda no 1% dos brasileiros no topo aumentou. Os seis brasileiros mais ricos do país detinham a mesma riqueza que os 50% cento mais pobres. A tributação e o gasto público não têm sido eficientes na redução das desigualdades no Brasil 35 . O caminho sem a reversão da Emenda Constitucional nº 95 (e, em realidade, de um conjunto de medidas de impacto sobre setor tomadas desde promulgação da EC 86/2015 36 ) parece confirmar o Brasil dos 20% descrito por Souza 6 , ou ainda mais grave, um país que se supõe dos 20%, mas que em realidade pertence ao seu 0,1% sempre comprometido com o primeiro dos projetos explicitados por Fiori 7 , ancorado num suposto equilíbrio fiscal, nos paradigmas da economia ortodoxa e na inserção subalterna na divisão internacional do trabalho. Em realidade, a reversão dessas medidas nos parece indispensável para qualquer projeto nacional que não incorpore soluções finais em suas estratégias.