versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.23 no.1 Rio de Janeiro jan. 2018
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018231.22062017
O Sistema Único de Saúde (SUS) busca interferir nas condições de saúde e na assistência prestada à população brasileira, cuja concepção baseia-se na formulação de um modelo de saúde voltado para as necessidades da população, procurando resgatar o compromisso do Estado para com o bem-estar social, especialmente no que refere à saúde coletiva, consolidando-o como um dos direitos da cidadania1. No Brasil, a inclusão do tema dos acidentes e violências na pauta da área da saúde culminou com a publicação da Portaria n° 737 MS/GM, de 16 de maio de 2001, que aprova a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências (PNRMAV)2. Desta forma, acompanhando as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), feitas na Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU), em 19963, a violência é assumida como um importante problema para a saúde pública, sendo definido um instrumento de notificação de casos de suspeita ou de confirmação de violência contra crianças e adolescentes, por meio da Portaria MS/GM n° 1.968, de 25 de outubro de 20014.
No que concerne às crianças e adolescentes, a Organização Mundial de Saúde (OMS) define a violência que envolve este segmento como todas as formas de maus-tratos emocionais e/ou físicos, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente, comercial ou outras formas de exploração, com possibilidade de resultar em danos potenciais ou reais à saúde das crianças, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder5. No Brasil, a preocupação com os maus-tratos na infância, sob a ótica da epidemiologia, a prevenção dos fatores de risco e o atendimento especializado tiveram origem na década de 1980, coincidindo com a colocação do tema da violência na pauta da saúde pública6.
A partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)7, crianças e adolescentes brasileiros, segundo os princípios da proteção integral, passam a ser tratados como sujeitos de direitos e como grupo prioritário. No que diz respeito à violência, seja na forma dos abusos ou negligência, apresentam maior vulnerabilidade, visto tratar-se de seres que demandam do universo adulto a proteção e segurança necessárias para melhor desenvolverem-se, assim como devem ser consideradas as repercussões sobre sua saúde6. Ainda no que concerne à violência, considerada na atualidade como um dos graves problemas de saúde pública, o trabalho em rede se configura uma exigência, o qual deve ocorrer de forma articulada entre as organizações envolvidas, a fim de negociar e partilhar recursos de acordo com os interesses e necessidades coletivos, cujas decisões devem ser adotadas de forma horizontal nos princípios de igualdade, democracia, cooperação e solidariedade8. O método de trabalho em rede tanto permite a troca de informações e a articulação institucional, como a formulação de políticas públicas para a implementação de projetos comuns, que contribuem para a integralidade da atenção, defesa, proteção e garantia de direitos das crianças, dos adolescentes e suas famílias em situação de violência8.
O fluxo de atendimento estabelecido com a proposta de trabalho em rede é reconhecido como fundamental para o enfrentamento da violência, desde que articule os diferentes níveis de atenção à saúde, os setores da sociedade e os profissionais envolvidos no atendimento às vítimas de violência. Tal articulação pode configurar-se em um entrave para o estabelecimento das redes e motivo de descontinuidade das ações partilhadas, visto que requer mudança nos processos e relações de trabalho tradicionais, e compartilhamento de poder institucional9. Estudo realizado em duas capitais brasileiras identificou os mesmos entraves para a consolidação das redes de atenção às mulheres vítimas de violência doméstica, indicando que as dificuldades relacionadas ao trabalho em rede extrapolam a atenção aos casos de violência infantil, mas configura-se em um desafio para reorganização do modelo de atenção à violência como um todo, dada sua complexidade10.
No âmbito da atual política de saúde, as equipes da atenção primária, por se encontrarem geograficamente mais próximas das famílias e pelo envolvimento dos profissionais com as ações de saúde individual e coletiva, têm maior possibilidade de identificar as situações de violências em crianças e adolescentes, por meio do acolhimento, atendimento (diagnóstico, tratamento e cuidados), notificação dos casos e encaminhamento para rede de cuidados e de proteção social. Destaca-se que a articulação entre vários tipos de profissionais, de serviços e de setores é uma condição necessária para o desenvolvimento de ações de proteção integral das crianças e dos adolescentes, porém os serviços de saúde têm marcado um lugar de protagonismo, tanto na participação de redes, como na articulação das mesmas11. Entretanto, cabe aos Estados e Municípios traçarem suas estratégias e mobilizarem forças, equipes e instituições, seguindo as diretrizes previstas nas normativas nacionais para prevenção e combate da violência9.
Diante do exposto e considerando questões discutidas em trabalho anterior concernente ao enfrentamento da violência infantil numa perspectiva de rede e o entendimento dos profissionais da Atenção Primária em Saúde12, indaga-se: como os profissionais de saúde percebem a organização do fluxo da rede de proteção em um dado território? Para tanto, este estudo teve como objetivo analisar os fluxos da rede de proteção à violência contra a criança a partir de documentos oficiais e dos discursos dos profissionais da Atenção Primária à Saúde, no que concerne à notificação e às decisões encaminhadas.
O estudo se pautou pela metodologia de natureza qualitativa, dado o seu caráter descritivo e exploratório, cuja base teórica está assentada na Teoria da Intervenção Práxica da Enfermagem em Saúde Coletiva (TIPESC), criada por Egry13, que propõe a intervenção da Enfermagem através de uma metodologia dinâmica e participativa. A Teoria apresenta como bases filosóficas a historicidade e a dinamicidade, em conformidade com a compreensão do materialismo-histórico e dialético, e consideram a mobilidade constante da história e o devir contínuo das transformações sociais. Utilizou-se a hermenêutica-dialética como método para interpretação dos discursos e respostas oriundas das entrevistas14, e como técnica de análise da rede de proteção o Fluxograma Analisador do Modelo de Atenção de um Serviço de Saúde15,16. A utilização da hermenêutica-dialética tem como pressuposto que a compreensão do processo de trabalho dos serviços de saúde deve levar em conta tanto o processo histórico em seu dinamismo, provisoriedade e transformação social, quanto a prática social empírica dos indivíduos em sociedade em seu movimento contraditório14. Numa perspectiva metodológica, a hermenêutica e a dialética não devem ser reduzidas a uma simples teoria de tratamento de dados, pois, ao possibilitarem reflexões que se fundam na práxis, apresentam potencial inventivo e criador na condução do processo de análise e ao mesmo tempo compreensivo e crítico no estudo da realidade social. Enquanto a hermenêutica realiza o entendimento dos textos, dos fatos históricos, da cotidianidade e da realidade, a orientação dialética considera fundamental realizar a crítica das ideias expostas nos textos e instituições. Assim, busca, a partir de sua especificidade histórica, a cumplicidade com seu tempo; e, nas diferenciações internas, sua contribuição à vida, ao conhecimento e às transformações14.
O fluxograma é um diagrama utilizado por diferentes campos de conhecimentos, com a perspectiva de delinear o modo como se organizam um conjunto de processos de trabalho vinculados entre si em torno de uma cadeia de produção15. No campo da saúde, o fluxograma permite captar e interrogar os sentidos funcionais do serviço, evidenciar saberes e práticas predominantes e identificar alternativas e caminhos para lidar com as diferentes modalidades de jogos de interesses presentes no cotidiano do trabalho em saúde16. No que concerne a esse estudo, o uso do fluxograma se deve à possibilidade de identificar os modos de atuação em rede no atendimento às situações de violência contra a criança, tanto aqueles presentes nos documentos oficiais quanto aquele que deriva dos discursos dos profissionais.
Os símbolos utilizados para construção do fluxograma apresentam padronização universal, como a elipse, o retângulo e o losango. A elipse representa o começo e o fim da cadeia produtiva, configurando a entrada e a saída do processo de produção em análise. O retângulo demonstra os momentos nos quais se realizam etapas importantes da cadeia produtiva, onde ocorre tanto o consumo de recursos quanto a produção de produtos; por meio do losango é possível representar os momentos em que a cadeia produtiva enfrenta os processos de decisão que, além de indicar caminhos a serem seguidos, apresentam possibilidades de percursos para atingir etapas seguintes e distintas15. A Figura 1 mostra o diagrama representativo do Fluxograma.
O cenário de pesquisa foi o Distrito do Capão Redondo, um dos distritos do município de São Paulo, maior cidade do Brasil em termos populacionais, que concentra 6% da população do país e 27% do estado de São Paulo17, e que em 2010 apresentava Índice de Desenvolvimento Humano Municipal calculado em 0,805. O município apresenta densidade demográfica (hab/km2) em 7.398,26 e população estimada no ano de 2015 em 11.967.825 pessoas, sendo o seu território dividido em 31 subprefeituras, com 96 distritos vinculados. O Distrito de Capão Redondo apresenta população estimada em 270.716 habitantes, densidade demográfica de 19.549 habitantes/km2 e taxa de crescimento de 0,77% ao ano17. Neste distrito, a Atenção Primária à Saúde está implementada por meio da estratégia Saúde da Família em 14 unidades básicas de saúde (UBS), totalizando 81 equipes de saúde da família, cujo percentual de cobertura está em 94,7%17.
Os dados foram obtidos por meio de entrevistas junto aos profissionais da Atenção Primária do Distrito, no período de julho de 2013 a março de 2014, por atuarem no atendimento local e regional das situações de violência contra a criança, o que os torna os participantes centrais da pesquisa. Os documentos norteadores que subsidiam a implementação da rede assistencial e de proteção, com seus decretos, portarias, protocolos e fluxos, tanto em nível municipal como federal, constituíram a pesquisa documental.
Os critérios para inclusão dos entrevistados foram: atuar há mais de seis meses na Atenção Primária em nível local, regional ou central e se dispor a responder as questões da entrevista. Não houve critérios de exclusão. Em nível local, os entrevistados foram 22 profissionais que compunham equipes de Saúde da Família; em nível regional, foram entrevistados três membros da coordenação que atuavam como referência para as questões relacionadas à violência. A seleção dos sujeitos da pesquisa seguiu o critério de conveniência, pois poderiam fornecer as informações necessárias para a pesquisa. O encerramento das entrevistas ocorreu quando se detectou a reincidência de informações.
Dos 25 sujeitos da pesquisa, nove são enfermeiras, três são médicas (os), três são Psicólogas, dois são Agentes Comunitários de Saúde, três, Técnicas de Enfermagem, uma, Odontóloga, uma, nutricionista, uma, farmacêutica e duas, assistentes sociais. No que diz respeito ao sexo, 24 são do feminino e 01 do sexo masculino. As idades variaram entre 20 a 30 anos (seis pessoas); 30 a 40 anos (12 pessoas), 40 a 50 anos (quatro pessoas) e acima de 50 anos (três pessoas). O tempo de atuação na estratégia Saúde da Família variou de um a 12 anos.
As entrevistas foram realizadas por meio de roteiro semiestruturado, onde os profissionais tiveram a oportunidade de discorrer sobre o tema da violência infantil, no que se refere à notificação e aos processos que dela derivam. Em relação à análise, buscou-se identificar como as equipes atuam em rede no cotidiano de suas práticas no atendimento às situações de violência infantil, utilizando o fluxograma analisador na decodificação dos discursos, o qual propiciou um confronto entre os dados obtidos nas entrevistas e as normativas institucionais relacionadas à rede de proteção. A análise das fontes documentais foi realizada com vistas a estabelecer comparações entre os fluxos preconizados e as realidades de atendimento no âmbito dos processos de trabalho na Atenção Primária. Esta opção deve-se ao pressuposto de que diferentes formas e características da rede de proteção desencadeiam diferentes modos de significar e enfrentar a violência nos serviços e práticas de saúde.
Por se tratar de pesquisa que envolve seres humanos e atendendo aos dispositivos legais contidos na Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde18, vigente quando da liberação do projeto de pesquisa, a aprovação ocorreu nos comitês de ética da Escola de Enfermagem da USP e da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. No intuito de atingir o rigor metodológico necessário, foram observados os critérios estabelecidos para o Reporting Pesquisa Qualitativa (COREQ), tanto na elaboração quanto no desenvolvimento e implementação da pesquisa.
Na análise do documento que norteia o funcionamento da rede assistencial e de proteção na cidade de São Paulo19 constata-se a definição de um Fluxo de Atenção às situações de violência contra a criança, a saber: qualquer profissional da unidade poderá receber e acolher o usuário em risco ou situação de violência, realizando o preenchimento da folha de notificação de violência (SIVVA); os usuários devem ser direcionados para o Núcleo de Prevenção de Violência (NPV) da unidade para que o atendimento seja realizado; após a identificação ou encaminhamento de um usuário em situação de violência, um ou mais dos profissionais que compõem o núcleo deve realizar a entrevista de acolhimento do caso (preencher a folha de notificação de violência, caso não tenha sido ainda realizado) e realizar as primeiras orientações e encaminhamentos necessários ao usuário; um ou mais profissionais da equipe serão a referência do usuário no acompanhamento de todo o processo até sua finalização. O Fluxo de Atenção pode ser representado por meio do fluxograma síntese abaixo (Figura 2). Em relação aos profissionais entrevistados, foram identificadas distintas situações relacionadas ao fluxo de atenção às situações de violência, revelando o modo como operam nos seus cotidianos. Assim, dos 22 profissionais que atuam em nível local, 13 informam reconhecer a necessidade e importância da notificação, porém na presença de situações de violência repassam para a assistente social da unidade ou representante do NPV, pois entendem ser responsabilidade destes, conforme pode ser visto a seguir:
Figura 2 Fluxograma síntese do Fluxo de Atenção às situações de violência, a partir dos documentos norteadores.
Normalmente a primeira conduta que tomo é acionar algum tipo de assistente social, não sabemos qual o melhor caminho que vai resolver esta questão. (suj_22)
Por exemplo, com esta criança, o que fiz foi matriciar, conversar com a psicóloga e tentar abordar em uma visita domiciliária. Assistente social estava muito difícil de conseguir pela ausência de profissionais na rede, então matriciei e passei o caso para a gerente que passou para a gerente acima dela que cuida de matriciamento e núcleo de apoio à saúde da família. (suj_13)
Meu primeiro ponto de acesso é o NASF [Núcleo de Apoio à Saúde da Família], que tem o pessoal que trabalha com a assistência social e eles procuram outras unidades. Mas fora isso, se a gente não quiser fazer isso, a gente pode ligar para o conselho tutelar. (suj_19)
Aqui no PSF, a gente tem a equipe NASF. Então, todo caso a gente tem que matriciar. A gente tem que matriciar e a equipe NASF então, ela é composta de assistente social, de psicólogo, de psiquiatra, terapeuta, então ele envolve toda a equipe pra poder a gente fazer enfrentamento até pra acionar o Ministério Público, o Conselho Tutelar. (suj_10)
Outros oito profissionais informaram que notificam quando se deparam com a situação e encaminham para as instâncias da rede de proteção, como Conselhos Tutelares e Centros de Referência da Assistência Social.
Sim, existe uma ficha de notificação chamada SIVA, que notificamos qualquer tipo de violência que acontece, pode ser por acidente ou agressão, só que isto é mais uma atitude compulsória que gera um dado, não necessariamente vai voltar. (suj_22)
Sim, quando a gente toma conhecimento, sim. Tanto é que tem um caso em uma área, das crianças […], que a mãe deixava sozinhos em casa. A avó trabalha, a mãe saia para usar drogas e deixava as crianças sozinhas. Tanto é que foi acionado o Conselho Tutelar; o CRAS [Centro de Referência da Assistência Social] do Capão ligou esses dias pra saber como é que está o caso. (suj_06)
Sim, aciona o Conselho Tutelar, de acordo com a necessidade (suj_08).
Apenas um dos profissionais entrevistados informou desconhecer se houve alguma situação de atendimento à violência contra a criança na unidade de saúde, porém se houvesse, procuraria como fazer a notificação.
Ao comparar o Fluxo de Atenção definido no documento norteador e apresentado na Figura 2 com os discursos dos profissionais, constata-se que estes deixam de cumprir uma importante etapa no processo de atendimento, como por exemplo, quando encaminham as situações de violência para o NPV e não realizam a notificação diretamente. O mesmo acontece com aqueles que, embora notifiquem, encaminham para as instâncias da assistência social, sem menção às outras instâncias que compõem o fluxo de atenção preconizado. As formas de encaminhamento das notificações descritas nos documentos norteadores do município também se fazem presentes nos discursos dos profissionais entrevistados, o que possibilitou a construção do fluxograma de atenção. O fluxograma descrito representa os modos como estão estruturados os processos de trabalho nas Unidades Básicas investigadas, para o atendimento e encaminhamento das situações de violência em relação à notificação. A cadeia produtiva deste processo de trabalho tem início com a elipse, que representa a entrada da situação de violência na UBS; e o retângulo, que informa a produção dos atendimentos; e culmina com a decisão pela notificação, representada no losango. Observa-se que não há saída da cadeia produtiva em nenhum dos contextos analisados (Fluxo de atenção e discurso dos profissionais), que seria representada pela elipse no final do fluxograma, posto que uma vez realizada a notificação, tanto crianças quanto as suas famílias necessitam de acompanhamento para combater e prevenir as reincidências. O fluxograma da Figura 3 representa o fluxo de atenção identificado a partir da fala dos entrevistados:
O fluxograma apresentado na Figura 3 retrata a forma como os profissionais lidam com as situações de violência a partir das situações que atendem. Informam, por conseguinte, como se organiza o processo de trabalho no qual estão inseridos, tendo por referência as orientações normativas e protocolares existentes. De certo, pode-se inferir que existe um distanciamento entre a rede preconizada pelos documentos institucionais e a forma como os serviços atuam no atendimento às situações de violência infantil.
A obrigatoriedade de notificação das situações de violência encontra-se instituída por atos normativos e legais, como o Estatuto da Criança e do Adolescente20, a Lei n° 10.778/200321, que institui a notificação compulsória de violência contra a mulher; e a Lei n° 10.741/200322, que cria o Estatuto do Idoso. No âmbito das ações de vigilância do Ministério da Saúde, somente em 2011, com a publicação da Portaria 104 de 25/01/201123, as situações de violência foram incluídas na lista de agravos, e por consequência, de notificação obrigatória. Embora a Portaria 104 de 25/01/2011 tenha sido revogada pela Portaria 1.271 de 06/06/201424, a obrigatoriedade da notificação foi mantida.
Os agravos de notificação compulsória são aqueles que devem, obrigatoriamente, ser comunicados à autoridade de saúde local. As notificações devem ser realizadas pelos profissionais de saúde ou responsáveis pelos estabelecimentos de saúde, públicos ou privados, na ocorrência de suspeita ou confirmação, cuja comunicação poderá ser imediata ou semanal. As situações de violência infantil se inserem no item sobre violência doméstica e/ou outras violências, sendo consideradas como agravos, pois representam dano à integridade física ou mental dos indivíduos, visto que são provocadas por circunstâncias nocivas, como as lesões decorrentes de violências interpessoais, agressões e maus-tratos.
As situações relacionadas aos encaminhamentos da notificação de violência contra crianças, na forma exposta pelos profissionais entrevistados, apresentam consonância com as normativas colocadas pela Portaria 1.271 de 06/06/201424. Essa Portaria determina no artigo 3° que a notificação compulsória é obrigatória para os médicos, outros profissionais de saúde ou responsáveis pelos serviços públicos e privados de saúde, que prestam assistência ao paciente. Neste sentido, os profissionais procedem à notificação, tanto individualmente quanto repassando a situação para outro profissional ou grupo e por meio da unidade de saúde.
Segundo relatório da European Union Agency for Fundamental Rights25, na maioria dos estados membros da União Europeia a notificação de situações de violência é obrigatória para os profissionais que exercem atividades que envolvem crianças. Em alguns países a ausência de protocolos de notificações institucionais, ou de documentos que estabeleçam as responsabilidades dos profissionais (como Alemanha, Malta e Países Baixos), leva à subnotificação dos casos de violência contra a criança, bem como o trabalho de notificação carece de cooperação entre os serviços. O relatório assinala que grande parte dos profissionais deixa de reconhecer, compreender e cumprir com as notificações devido a dificuldades no reconhecimento dos sinais de abuso e de violência infantil, apontando para uma grande necessidade de treinamento. Além disso, em muitos países membros o anonimato dos profissionais notificadores nem sempre é garantido, como na Dinamarca, Grécia e Lituânia, o que também pode desencorajar a notificação.
Estudo brasileiro avaliou um sistema de indicadores de enfrentamento da violência e identificou falhas importantes na sistematização dos registros de atendimentos e casos acompanhados pelos conselhos tutelares e secretarias municipais de saúde, educação e assistência social. Embora estejam registrados em prontuários, os dados brutos inviabilizam acesso ágil às informações26. Isso denota a pouca qualidade dos registros institucionais, decorrente de uma cultura institucional de não valorização dos registros26 e necessidade de capacitação dos profissionais das redes de atenção10. Segundo estudo de revisão sistemática que objetivou avaliar a resposta do setor da saúde à violência infantil entre os países da América Latina e do Caribe27, existe uma clara lacuna entre os protocolos estabelecidos e a forma como são divulgados entre os profissionais de saúde e os serviços, especialmente no que se refere à ausência de estratégias de formação voltadas para a implementação de suas diretivas. Além disso, foi levantada a necessidade de desenvolver o trabalho interdisciplinar para fortalecer a prevenção da violência infantil e melhorar as formas de enfrentamento. As redes de atenção são constituídas por três elementos principais, a população, a estrutura operacional e o modelo de atenção à saúde. No entanto, a principal razão para sua existência é a população. Neste sentido, estabelecer processos de atenção baseados na população diz da habilidade que um sistema possui em identificar as necessidades de saúde de uma dada população, com vistas a prover o cuidado no contexto de sua cultura e de suas preferências28.
O conceito de rede diz respeito a um conjunto de serviços interligados por objetivos comuns, oferecendo através da cooperação, uma atenção integral e contínua28. Os discursos analisados, tanto revelam a fragilidade com que os profissionais atuam nos serviços, como expressam a necessidade de implementar ações que fomentem a discussão do trabalho em rede numa perspectiva intersetorial, apontando para a necessidade de fortalecimento dessa rede e capacitação dos profissionais para atuação nessa perspectiva10. Estudo qualitativo, desenvolvido na Holanda, que buscou investigar como os profissionais de saúde e professores de escolas infantis identificam a violência contra crianças29, apontou que as normativas institucionais por si só não garantem apoio suficiente para as ações de notificação e prevenção a serem desenvolvidas, sendo necessário o trabalho em rede, tanto em nível institucional como no âmbito das localidades em que se inserem os serviços.
Em relação ao modelo de saúde, pode-se ressaltar que as concepções que sustentam o cuidado, tais como de indivíduo, família e de violência determinam a maneira como os profissionais reconhecem necessidade e enfrentam vulnerabilidades. A violência ainda é concebida pelos profissionais como um problema de âmbito privado e familiar, sendo a notificação percebida como potencial motivo de desestruturação familiar, separações conjugais e abrigamento da criança30. Ocorre a culpabilização do agressor homem, concebendo-o como sujeito desprovido de sentimentos e valores30, e das mulheres, quando a violência está relacionada à negligência de cuidados de saúde ou educação31.
Segundo as normativas analisadas, as redes de proteção demandam ações e fluxos intersetoriais que possam acolher as demandas, mas também profissionais qualificados para atuar diante das situações de violência infantil. No campo da saúde, seja na esfera federal, estadual ou municipal, a operacionalização das diretrizes de combate à violência esbarra naquilo que elas estabelecem, segundo ressaltam os entrevistados, visto que a rede de saúde carece de serviços assistenciais em quantidade e organização, recursos financeiros e pessoas capacitadas para lidar com as situações de violência. A capacitação para atuar nos casos de violência engloba tanto aspectos de fluxo e procedimentos como de uma compreensão ampliada do fenômeno, incluindo conhecimentos sobre gênero, geração e estratégias diversificadas de reconhecimento e enfrentamento31,32.
No âmbito de estados e municípios, existe grande dificuldade para assegurar a implantação por meio da mobilização de recursos de poder, de forma que possam combater as resistências políticas, institucionais e burocráticas. Estudo aponta que o caminho de superação das relações desiguais, que resultam em violência, está na promoção de políticas capazes de articular diferentes setores sociais e que atuem na cultura de subordinação, promovendo uma práxis transformadora33. O presente estudo teve como limitação a sua realização em um único cenário, posto que as ações de notificação da violência infantil possuem abrangência nacional. A replicação do estudo em outras realidades pode aumentar a visibilidade dos entraves à necessária implementação da notificação da violência infantil nos serviços de saúde.
A notificação é uma das principais etapas no processo de enfrentamento da violência infantil, visto que a partir dela derivam ações no âmbito das redes de atenção e proteção, voltadas para a promoção, prevenção de reincidências e estabelecimento de uma linha de cuidado às pessoas em situação de violência. Além disso, possibilita a produção de dados para a tomada de decisões no âmbito das políticas locais e nacionais. Os profissionais, ao mesmo tempo em que assinalam dificuldades quanto à notificação, reconhecem sua importância e a necessidade que outros profissionais a compreendam. A notificação, além de ser uma ação necessária, também corresponde a um ato de cuidado, posto que contribui para a definição de medidas mais adequadas de proteção, tanto do profissional de saúde como das pessoas em situação de violência e suas famílias.
No que se refere à violência infantil, a maior dificuldade, e ao mesmo tempo maior desafio, é construir redes coordenadas e sistematizadas que priorizem as medidas preventivas, pois o enfrentamento das situações de violência demanda articulação conjunta e efetiva com os diversos setores e atores, para atingir o objetivo principal que é a prevenção da violência e a redução de danos causados. No que concerne ao fluxo de atenção às situações de violência na Atenção Primária, compreende-se a necessidade de maior apropriação do que vem a ser o trabalho de enfrentamento em rede, com destaque para as responsabilidades individuais e coletivas. Igualmente, cabe mencionar que, embora a Rede Nacional de Prevenção da Violência e Promoção da Saúde34 faça parte da agenda do estado, ainda carece de maior institucionalização, de apoio político e da implementação de recursos financeiros suficientes para maior efetividade das ações de prevenção da violência, notadamente da violência contra a criança.