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Nova contribuição ao estudo do remodelamento ventricular e dos anéis valvares na cardiomiopatia dilatada: avaliação anátomo-histopatológica

Nova contribuição ao estudo do remodelamento ventricular e dos anéis valvares na cardiomiopatia dilatada: avaliação anátomo-histopatológica

Autores:

Moise Dalva,
Aristides Tadeu Correia,
Natalia de Freitas Jatene,
Paulo Hilário Nascimento Saldiva,
Fabio Biscegli Jatene

ARTIGO ORIGINAL

Brazilian Journal of Cardiovascular Surgery

versão impressa ISSN 0102-7638

Rev Bras Cir Cardiovasc vol.29 no.4 São José do Rio Preto out./dez. 2014

http://dx.doi.org/10.5935/1678-9741.20140064

Abreviações, acrônimos e símbolos
AVD Anel atrioventricular direito
AVE Anel atrioventricular esquerdo
CAPPesq Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa
CMD Cardiomiopatia dilatada
CMDId Cardiomiopatia dilatada idiopática
CMDIsq Cardiomiopatia dilatada isquêmica
DistAV-AP Distância do sulco atrioventricular até o ápice ventricular esquerdo
DP Desvio padrão
FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
HC-FMUSP Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
HE Hematoxilina-Eosina
ICC Insuficiência cardíaca congestiva
INCOR Instituto do Coração
ISFC International Society and Federation of Cardiology
MAGPs Microfibrilas associadas às glicoproteínas
MMPs Metaloproteinases
RFO Resorcina-Fuccina de Weigert com oxidação prévia por oxona
SPSS Statiscal package for the social sciences
SVOC Serviço de verificação de óbitos da Capital
USA United States of America
WHO World Health Organization

INTRODUÇÃO

A insuficiência cardíaca congestiva (ICC) é entidade causadora de grande impacto em termos de morbimortalidade, sendo sua principal etiologia as cardiomiopatias dilatadas (CMD), que em suas diversas etiologias, constituem-se em grave problema de saúde pública, com prevalência estimada de 4-8 casos por 100.000 pessoas por ano e com incidência estimada de 36,5 por 100.000 pessoas[1].

O aspecto fisiopatológico determinante de tais entidades é a grave disfunção sistólica causada pela perda da eficiência do coração em agir como bomba hidráulica. Embora o componente miocelular esteja presente de forma importante, outros mecanismos tais como o remodelamento ventricular e a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona são fatores contribuintes para perpetuação do quadro[1].

O remodelamento ventricular caracterizado por alterações morfogeométricas tanto à direita quanto à esquerda, propicia ciclo vicioso de deterioração funcional, uma vez que o coração perde a conformação anatômica original, fundamental para sua eficiência. Neste contexto, a insuficiência valvar causada primariamente por dilatação dos anéis atrioventriculares é de capital importância[1], porém apesar deste fato relevante o mecanismo de dilatação anular ainda não está completamente esclarecido[2-4].

A presença de insuficiência valvar pode contribuir para aumento da morbidade em pacientes valvopatas[5] ou que possuam CMD das mais diversas etiologias[6]. Existe uma tendência em considerar os tecidos valvares como inertes, em virtude da sua estrutura histológica simples e população celular esparsa, porém, tal fato parece menos razoável à luz da enorme carga mecânica imposta a essas estruturas ao longo da vida e a consequente necessidade de manutenção de sua integridade tecidual a custa de equilíbrio entre a produção de colágeno e sua degradação[7].

Embora a presença de miócitos e a circulação coronária sejam capitais para o funcionamento do coração como bomba, os elementos que compõem a matriz extracelular (MEC), particularmente as fibras colágenas dos tipos I e III são reconhecidos como fundamentais para a manutenção do ciclo cardíaco[8]. Dentre suas inúmeras funções, as mais importantes são a de fornecer arcabouço estrutural para os miócitos e vasos, bem como prover o órgão de propriedades de resistência e resiliência, proporcionando tônus sistólico e diastólico, ajudando o coração a manter sua conformação[8-12].

O desarranjo destas fibras pode eventualmente persistir mesmo após a remoção da doença de base em diversas situações. Em pacientes portadores de patologia da valva mitral com insuficiência tricúspide secundária, pode não haver normalização do fluxo regurgitativo tricúspide mesmo com a correção da patologia mitral[13]. Este fato suscita controvérsia na literatura sobre a real necessidade da realização de plastia do anel valvar tricúspide quando este está secundariamente dilatado[13], e em que medida a não normalização do refluxo pode estar associada à alterações histológicas irreversíveis no anel atrioventricular. Tal fato se reveste de capital importância, haja vista o fato de que cerca de metade dos pacientes portadores de doenças da valva mitral com indicação cirúrgica apresenta insuficiência tricúspide significativa[14]. Os autores que advogam a não realização da plastia insistem no fato que a correção da lesão mitral leva à normalização da pós-carga do ventrículo direito por diminuição da pressão do leito vascular pulmonar[15]. Em contraste, aqueles que advogam a realização de plastia do anel tricúspide sustentam o fato de que a dilatação do anel pode não ser naturalmente reversível em casos avançados, a despeito da correção total da valva mitral[16,17]. Tal fato poderia, eventualmente, ocorrer devido a alterações estruturais microscópicas do anel atrioventricular com ocorrência de colagenólise e substituição das fibras de colágeno por tecido de outra natureza, com comprometimento de sua integridade.

O conceito anatômico de que o esqueleto fibroso do coração não se dilata foi refutado[2,3,18], sendo comprovado o seu alargamento nos casos de insuficiência cardíaca grave causada por cardiomiopatia dilatada de etiologia isquêmica (CMDIsq) ou idiopática (CMDId) não chagásica[2,3]; porém, não existe na literatura estudo histológico comparativo dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo nos casos de CMDId à luz deste novo conceito. Ao mesmo tempo, o conhecimento disponível acerca do papel exercido pela MEC em termos de controle e regulação deste processo ainda é escasso, de modo que existe vasto campo de pesquisa a ser desenvolvido nesta área.

Objetivo

Os objetivos do presente estudo são:

1-Avaliar comparativamente os perímetros dos ventrículos direito e esquerdo em diferentes segmentos e dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo nos corações normais e portadores de CMDId.

2-Comparar a porcentagem por área de fibras colágenas e elásticas dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo entre os corações normais e portadores de CMDId.

MÉTODOS

O projeto deste estudo foi inicialmente submetido e aprovado pela Comissão de Ética da Instituição.

Material

Foram estudados espécimes de corações normais e dilatados. Os normais foram provenientes do Serviço de Verificação de Óbitos da Capital (SVOC-USP), e os dilatados foram provenientes do Laboratório de Anatomia Patológica do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (InCor-HCFMUSP).

Foram selecionados 26 espécimes agrupados da seguinte forma:

Grupo 1 - (CMDId) Composto de 13 corações portadores de CMDId

Grupo 2 - (NORMAL) Composto de 13 corações provenientes de indivíduos isentos de cardiomiopatia e considerados normais

Após sua obtenção, as peças foram fixadas em formol, com posterior retirada dos grandes vasos e dos átrios, permanecendo apenas os anéis atrioventriculares e a massa ventricular.

Após as etapas de preparo e fixação das peças, foram realizadas secções transversais da massa ventricular, partindo-se do sulco atrioventricular em direção ao ápice do coração (DistAV-AP). As secções transversais foram realizadas em nível correspondente a 80% (basal), 50% (equatorial) e 20% (apical) desta distância, sendo a seguir fotografadas com câmera digital (Sony, modelo Cyber Shot DSC W 200) que foi fixada em uma mesa por meio de uma estativa distando 15 cm das peças. As imagens obtidas foram transferidas para um computador onde foram realizadas as mensurações com o software Image Tool, (Department of Dental Diagnostic Science of the University of Texas Health Science Center, San Antonio, USA). Todas as peças foram fotografadas ao lado de uma régua que serviu de referência para as mensurações.

Após a realização das fotografias, os anéis atrioventriculares direito e esquerdo foram completamente dissecados, porém não foram separados, mantendo-os unidos pelo corpo fibroso central. Os anéis foram acomodados em caixetas e enviadas ao serviço de patologia, sendo a seguir parafinados e laminados, sendo realizados cortes histológicos de 5 micrometros de espessura e empregados os seguintes métodos de coloração:

● Hematoxilina-Eosina (H.E.) - Coloração padrão nos serviços de anatomia patológica, sendo utilizada para identificação de artefatos técnicos e alterações histopatológicas que eventualmente pudessem comprometer análise pelos demais métodos.

● Picrossírius - Coloração utilizada para estudo de fibras colágenas.

● Resorcina-Fuccina de Weigert com oxidação prévia por oxona (RFO)- Coloração utilizada para estudo de fibras elásticas.

A análise morfométrica quantitativa foi realizada por meio de análise digital de imagens com utilização de sistema composto por microscópio óptico Leyca DMR (Leyca Microsystems Wetzlar Gmb H, Alemanha) conectado a um computador por uma câmera de vídeo.

Os cortes histológicos dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo foram fotografados em 15 pontos escolhidos aleatoriamente em um aumento de 100 vezes, e as imagens capturadas foram analisadas com a utilização do software Image Pro Plus versão 4.1 (Media Cybernetics - Silver Spring, MD, USA), que quantifica a área ocupada por fibras e depois quantifica a área total, sendo possível calcular a porcentagem de fibras colágenas e elásticas de cada ponto fotografado. Para cada anel, foi utilizada a média das porcentagens de fibras dos quinze pontos fotografados.

Após obtenção dos dados macroscópicos, foram realizadas comparações das médias dos perímetros de cada segmento ventricular (Apical, Equatorial e Basal) entre os grupos CMDId e NORMAL dos ventrículos direito e esquerdo, bem como comparações das médias dos perímetros ventriculares entre cada segmento (Apical, Equatorial e Basal) dentro de cada grupo (CMDId e NORMAL). Os perímetros dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo também foram comparados.

Com relação aos dados microscópicos, foram realizadas comparações das médias das porcentagens por área das fibras colágenas e elásticas dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo entre cada grupo (CMDId e NORMAL).

Com relação à estatística, as análises descritivas foram realizadas, apresentado médias acompanhadas dos respectivos desvios padrão (±DP) e valores mínimos e máximos. Os pressupostos da distribuição normal em cada grupo e a homogeneidade das variâncias entre os grupos foram avaliados, respectivamente, com o teste de Shapiro-Wilk e com o teste de Levene. A análise inferencial para os perímetros ventriculares foi realizada utilizando-se a análise de variância (ANOVA) de medidas repetidas para comparação das médias de cada segmento entre os grupos (fator intergrupos). O teste t foi utilizado para avaliar os perímetros médios dos anéis atrioventriculares direitos e esquerdos e as porcentagens médias de fibras elásticas e colágenas dos anéis. As análises estatísticas descritivas e inferenciais foram executadas com o software SPSS versão 13 (SPSS 13.0 for Windows).

RESULTADOS

Um dos objetivos foi avaliar os perímetros dos ventrículos direito e esquerdo (segmento apical, equatorial e basal) para cada grupo (CMDId e NORMAL), porém, o ponto para secção do segmento apical (20%) não abrangeu a cavidade ventricular direita dos corações dos grupos CMDId e NORMAL na maioria dos casos. Assim, nos ventrículos direitos dos corações dos grupos CMDId e NORMAL, foram analisados apenas os perímetros dos segmentos equatorial e basal.

Os resultados descritivos para as variáveis perímetros dos ventrículos direito (segmentos equatorial e basal) e esquerdo (segmentos apical, equatorial e basal) para cada grupo, estão apresentados nas Tabelas 1 e 2 e os resultados descritivos para as variáveis perímetros dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo para cada grupo estão apresentados nas Tabelas 3 e 4.

Tabela 1 Medidas descritivas das variáveis perímetro equatorial e basal nos grupos CMDId e NORMAL (mm) ventrículo direito. 

Grupos Segmento N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId Equatorial 13 170,812 44,60938 84,36 242,99
Basal 13 223,339 29,03743 190,58 287,34
NORMAL Equatorial 13 112,66 20,58866 74,78 142,72
Basal 13 173,38 24,82283 123,59 216,54

CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 2 Medidas descritivas das variáveis perímetro apical, equatorial e basal nos grupos CMDId e NORMAL (mm) ventrículo esquerdo. 

Grupos Segmento N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId Apical 13 101,5862 38,23844 56,34 180,79
Equatorial 13 191,3458 30,37638 146,81 254,45
Basal 13 181,9777 35,22137 140,39 261,37
NORMAL Apical 13 59,93 18,70348 23,62 86,57
Equatorial 13 120,3235 17,89946 93,17 144,8
Basal 13 116,6919 15,00732 93,42 143,5

CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 3 Medidas descritivas da variável perímetro anel AVD nos grupos CMDId e Normal (mm). 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 13 120,1915 15,33305 94,85 141,78
NORMAL 13 104,0046 13,88195 75,77 128,89

AVD=Anel atrioventricular direito; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 4 Medidas descritivas da variável perímetro anel AVE nos grupos CMDId e Normal (mm) 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 12 108,3233 13,76889 87,35 128,01
NORMAL 13 97,2723 16,40091 69,02 118,09

AVE=Anel atrioventricular esquerdo; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Os resultados descritivos para as variáveis porcentagens por área de fibras colágenas dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo para cada grupo estão apresentados nas Tabelas 5 e 6, e os resultados descritivos para as variáveis porcentagens por área de fibras elásticas dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo para cada grupo estão apresentados nas Tabelas 7 e 8.

Tabela 5 Medidas descritivas da variável fibras colágenas do AVD nos grupos CMDId e NORMAL (percentual). 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 13 19,2332 14,19502 1,51 60,73
NORMAL 13 38,5756 21,51783 13,43 88,89

AVD=Anel atrioventricular direito; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 6 Medidas descritivas da variável fibras colágenas do AVE nos grupos CMDId e NORMAL (percentual). 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 13 22,0962 12,85746 1,44 59,55
NORMAL 13 38,4603 14,75941 14,85 59,55

AVE=Anel atrioventricular esquerdo; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 7 Medidas descritivas da variável fibras elásticas do AVD nos grupos CMDId e NORMAL (percentual). 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 13 19,5032 11,33865 8,12 45,4
NORMAL 13 17,5873 13,42513 0,29 43,46

VD=Anel atrioventricular direito; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Tabela 8 Medidas descritivas da variável fibras elásticas do AVE nos grupos CMDId e NORMAL (percentual). 

Grupos N Média Desvio Padrão Mínimo Máximo
CMDId 13 21,0929 11,16968 7,13 43,78
NORMAL 13 18,1184 13,63213 1,26 50,78

AVE=Anel atrioventricular esquerdo; CMDId=Cardiomiopatia dilatada idiopática

Na análise de comparação de médias dos perímetros ventriculares direitos dos segmentos equatorial e basal entre os grupos NORMAL e CMDId, foram encontradas diferenças estatisticamente significantes (P<0,05) em todos os segmentos estudados.

Na análise de comparação de médias dos perímetros dos anéis atrioventriculares direitos entre os grupos CMDId e NORMAL, foi encontrada diferença estatisticamente significante (P<0,05).

Na análise de comparação de médias dos perímetros ventriculares esquerdos dos segmentos apical, equatorial e basal entre os grupos CMDId e NORMAL, foram encontradas diferenças estatisticamente significantes (P<0,05) em todos os segmentos.

Os resultados do teste Post-Hoc com correção de Bonferroni para comparações múltiplas evidenciaram diferenças estatisticamente significantes para todas as comparações, exceto com relação à comparação entre perímetros ventriculares equatoriais e basais.

Na análise de comparação de médias dos perímetros dos anéis atrioventriculares esquerdos entre os grupos CMDId e NORMAL, não foi encontrada diferença significativamente estatística (P>0,05).

Na análise de comparação de médias das fibras colágenas dos anéis atrioventriculares direitos e esquerdos entre os grupos CMDId e NORMAL, foi encontrada diferença estatisticamente significante (P<0,05).

Na análise de comparação de médias das fibras elásticas dos anéis atrioventriculares direitos e esquerdos entre os grupos CMDId e NORMAL, não foi encontrada diferença estatisticamente significante (P>0,05).

DISCUSSÃO

O entendimento médico sobre a ICC evoluiu de forma notável desde os primeiros registros desta entidade, que podem ser rastreados em escritos atribuídos a Hipócrates, sendo possível identificar sua evolução histórica, que progrediu em simetria com o avanço do conhecimento científico[19].

Do ponto de vista funcional, ocorre perda da função de bombeamento com dissipação energética, fato derivado de mecanismos como aumento da massa cardíaca, dilatação dos ventrículos, presença de trombos nas câmaras cardíacas e dilatação dos anéis atrioventriculares[1].

A MEC teve seu papel revisado na gênese das CMDId. Inicialmente, seus componentes eram tidos como parte de suporte passivo no qual os miócitos se entrelaçam, porém estudos recentes apontam para o fato de que tais componentes exercem papel ativo em todas as fases do ciclo cardíaco normal, pois conferem ao coração propriedades fundamentais tais como resistência, resiliência e elasticidade, com consequente alteração destas características no ciclo cardíaco patológico, cuja principal característica é o remodelamento ventricular, que pode ser observado em nível macroscópico e microscópico[8,20].

O colágeno miocárdico normal é composto predominantemente pelos tipos I (que corresponde a cerca de 80% da massa colagênica total) e III, que formam uma rede estrutural tridimensional que inclui as valvas, cordas tendíneas e os componentes colagênicos perivascular e intersticial, o qual se organiza em feixes. Denominados epimísio (que cobre cada fibra, muscular individualmente), perimísio (que cobre grupos de miócitos) e endomísio (encontrado entre cada miócito)[8].

Com relação ao comportamento das fibras colágenas nas cardiomiopatias, os estudos mostram resultados conflitantes, podendo haver aumento[21] ou diminuição[20] do componente colagênico, bem como desarranjo de sua estrutura normal. Weber et al.[8], em estudo histológico que analisou três corações de pacientes que morreram devido à CMDId, relataram que houve diminuição do colágeno tipo I (mais resistente) e aumento do colágeno tipo III (menos resistente) em relação ao padrão normal, bem como perda da arquitetura funcional normal das fibras colagênicas. Postularam que o aumento do colágeno menos resistente é o provável responsável pelo mecanismo de remodelamento, com diminuição da eficiência contrátil.

Tal discrepância de resultados parece estar relacionada em parte à metodologia utilizada e em parte devido ao fato de que o colágeno pode assumir formas distintas em se tratando do colágeno miocárdico normal ou de fibrose.

Embora as alterações da MEC miocárdica já tenham sido investigadas nos casos de CMDId, dois fatores permanecem incógnitos, quais sejam a eventual alteração da composição histológica da MEC dos anéis atrioventriculares direito e esquerdo e o comportamento das fibras colágenas em termos de balanço entre sua produção, degradação e organização. Tais fatos motivaram a realização do presente estudo.

Do ponto de vista macroscópico, notou-se que existe dilatação de ambos os ventrículos no grupo CMDId, embora com morfologia distinta, uma vez que a dilatação do AVD acompanha a dos segmentos ventriculares equatorial e basal, ao contrário do que acontece no AVE, que não apresentou dilatação significativa em relação ao grupo normal, apesar de ter havido dilatação dos segmentos equatorial e basal a esquerda. Em relação ao AVE, tais achados confirmam os resultados de Juliani[22] e de Hueb et al.[2,3], que afirmam não ser o grau de dilatação do ventrículo esquerdo que determina o grau de dilatação do anel mitral, pois eles ocorrem de maneira independente. Tal afirmação sempre foi motivo de controvérsias na literatura. Em estudo que analisou a medida do AVE em 102 corações, 78 dos quais possuíam dilatação ventricular esquerda, Bulkley & Roberts[23] concluem que a dilatação do ventrículo esquerdo isolada raramente causa insuficiência da valva atrioventricular esquerda. Citam que a afirmativa em contrário foi por muito tempo tida como verdade, como postulavam grandes nomes da cardiologia, como Flint e Osler em livros datados do final do século XIX.

A associação de insuficiência da valva atrioventricular esquerda aumenta a morbimortalidade dos pacientes portadores de ICC causada por CMDId[1]. Embora frequentemente tida como secundária apenas ao remodelamento ventricular, sendo portanto classificada como "funcional", estudos recentes indicam que possivelmente existam componentes intrínsecos a estrutura valvar como um todo que atuando de forma distinta podem ser os responsáveis pela insuficiência observada[4,6]. Os folhetos valvares, embora considerados como sendo apenas inertes, em virtude de aparentemente não estarem comprometidos nos casos de CMDId, ao contrário do que acontece em outras formas de regurgitação valvar, possuem características próprias que devem ser levadas em consideração, tais como inervação aferente e eferente, propriedades contráteis intrínsecas, e orientação espacial das fibras colagênicas que permite ótima distribuição da tensão mecânica, de forma que o remodelamento dos folhetos possivelmente exerce um papel intrínseco na gênese da insuficiência valvar, conforme demonstrado por Timek et al.[4], em estudo experimental realizado com ovelhas. Tal fato vem de encontro aos resultados observados em nosso estudo, uma vez que não foi observada dilatação estatisticamente significante do AVE, o que parece corroborar o fato de que não é apenas a possível dilatação do anel que causa a insuficiência O fato de ter havido dilatação estatisticamente significativa do AVD pode estar eventualmente associado à ausência de anel colagenoso completo em torno do orifício atrioventricular direito, ao contrário do que ocorre do lado esquerdo, onde tal orifício é efetivamente circundado por forte anel colagenoso, o que poderia diminuir a propensão para a dilatação anular.

Segundo Juliani[22] ocorre dilatação transversal ventricular esquerda na CMDId, sendo esta majoritariamente causada por alterações nos segmentos basal e equatorial. O fato de não ocorrer dilatação do AVE pode ser componente significativo no processo de remodelamento ventricular, pois anatomicamente o anel é parte do ventrículo que o contêm, e em virtude de sua não dilatação poderia haver alteração na configuração anatômica ventricular, com afilamento de sua porção superior. Tal fato ocorre exclusivamente a esquerda, pois a direita ocorre dilatação dos segmentos basal, equatorial e do AVD, fato que enseja uma conformação ventricular diferente, com morfologia da parte superior mais alargada. Tais achados parecem corroborar os resultados de Hueb[3], que observou o fato de que a insuficiência da valva AVD acompanha a dilatação do anel direito, fato que não ocorre do lado esquerdo.

A proporcionalidade entre os diferentes tipos de colágeno parece representar papel preponderante na manutenção da conformação geométrica normal do coração[8]. Embora a quantidade de colágeno total possa aumentar no miocárdio, em função principalmente da substituição de tais fibras por tecido de cicatrização, com consequente desarranjo funcional, parece haver evidências que apontam para o fato que a composição da MEC no miocárdio podem variar de acordo com a localização anatômica. Gunja-Smith et al.[24], em trabalho que comparou 8 corações com CMDId, extraídos de receptores de transplante cardíaco, com 12 corações normais, afirmam taxativamente que "trata-se de simplificação assumir que todo o coração tenha composição semelhante".

No presente estudo, analisou-se a MEC com relação aos seus componentes colagênicos e elásticos exclusivamente na região dos anéis atrioventriculares. Até onde saibamos, não existe na literatura trabalho semelhante, motivo que pode eventualmente explicar as discordâncias encontradas com relação à quantidade total de colágeno, pois neste estudo notou-se à análise inferencial microscópica, que a quantidade percentual de fibras colágenas totais foi substancialmente menor no grupo CMDId com relação ao grupo normal em ambos os anéis atrioventriculares.

Limitações do estudo

Com relação à seleção da amostra, embora tenha-se calculado o poder para explicar qualquer alteração encontrada em termos macroscópicos como superior a 80%, não foi possível o cálculo em termos microscópicos, uma vez que não existem na literatura estudos específicos sobre a alteração na MEC dos anéis atrioventriculares na CMDId que servissem de embasamento à semelhante cálculo. A possibilidade de realização de estudo piloto não foi contemplada pela impossibilidade prática de obtenção de maior número de peças, uma vez que as únicas disponíveis foram efetivamente utilizadas no estudo. Tal limitação poderá eventualmente ser sobrepujada a partir da realização de estudos com modelos animais, uma vez que já existem modelos desenvolvidos para tal fim.

A análise microscópica foi limitada por questões relativas aos métodos de coloração utilizados, principalmente em relação ao estudo das fibras elásticas. A coloração com o uso da resorcina-fuccina oxidada permite avaliar a totalidade das fibras elásticas presentes, porém não se presta adequadamente à diferenciação entre os três diferentes tipos de tais fibras (oxitalânicas, elauínicas e maduras). Estudos com utilização de colorações alternativas, tais como os métodos de Verhoeff para coloração exclusiva de fibras elásticas maduras e resorcina-fuccina de Weigert, que permite reconhecer as fibras maduras e elauínicas, podem auxiliar a elucidar o comportamento do sistema elástico de forma qualitativa e não apenas quantitativa.

Com relação às fibras colágenas, a metodologia utilizada permitiu a quantificação do total de fibras presentes, porém, não permitiu a diferenciação dos diferentes tipos de fibras presentes, de modo que não foi possível avaliar quanto do colágeno estudado foi composto por material de cicatrização e fibrose.

No presente estudo, não houve o propósito de investigar a variação da quantidade total de colágeno e de fibras elásticas em regiões anatômicas distintas do coração, o que poderia levar à confirmação da hipótese de que a estrutura da MEC varia de acordo com a região anatômica, apresentando padrão de aumento em algumas estruturas e diminuição em outras.

Considerações finais

A variação anatômica do anel atrioventricular em termos de presença de MEC já foi demonstrada. Angelini et al.[25] analisaram após necropsia a junção atrioventricular esquerda em 13 indivíduos, sendo 7 isentos de cardiopatia e 6 portadores de prolapso valvar mitral, tendo concluído que excetuando-se a distância intertrigonal, onde reside a continuidade mitro-aórtica existe grande variedade do arranjo de MEC, com presença de porções fibrosas de tamanho variável permeando áreas onde se encontram o miocárdio atrial e o miocárdio ventricular, tendo adicionalmente constatado que a quantidade de colágeno no anel variou de porções espessas e facilmente identificáveis até porções bastante finas. Esta mesma hipótese foi levantada por Juliani[22], que em estudo anatômico que analisou 43 corações humanos, sendo 18 deles oriundos de pacientes falecidos por CMDId, ao constatar a independência da dilatação do anel atrioventricular esquerdo com relação à dilatação dos segmentos ventriculares, postulou que "Uma hipótese seria que os tecidos formadores do anel mitral são mais ricos em matriz fibrosa, em especial a região da menor distância intertrigonal, que o músculo ventricular e, portanto, mesmo sofrendo a "pressão" da dilatação ventricular, além de estarem sujeitos aos mesmos agentes etiológicos que determinam a dilatação do ventrículo esquerdo na CMDId e CMDIsq, seu ritmo de dilatação se dá de modo diferente".

CONCLUSÃO

Os resultados obtidos permitem concluir que:

1) Houve aumento dos perímetros ventriculares no grupo CMDId em relação ao grupo NORMAL tanto à direita quanto à esquerda nos diferentes segmentos avaliados. O perímetro do AVD foi maior no grupo CMDId em relação ao grupo NORMAL, não havendo diferença significativa em relação ao AVE entre os dois grupos.

2) Com relação ao percentual por área de fibras colágenas, os anéis atrioventriculares direito e esquerdo apresentaram percentagem de fibras menor no grupo CMDId em relação ao grupo normal. Com relação ao percentual por área de fibras elásticas, não houve diferença entre os grupos.

Papéis & responsabilidade dos autores
MD Análise e/ou interpretação dos dados, análise estatística, aprovação final do manuscrito, concepção e desenho do estudo, realização das operações e/ou experimentos, redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo
ATC Análise e/ou interpretação dos dados, análise estatística, aprovação final do manuscrito, concepção e desenho do estudo, realização das operações e/ou experimentos, redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo
NFJ Realização das operações e/ou experimentos
PHNS Concepção e desenho do estudo, redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo
FBJ Análise e/ou interpretação dos dados, aprovação final do manuscrito, concepção e desenho do estudo, redação do manuscrito ou revisão crítica de seu conteúdo

REFERÊNCIAS

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