versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.112 no.1 São Paulo jan. 2019
https://doi.org/10.5935/abc.20180264
As pontes miocárdicas (PM) têm sido associadas à incidência aumentada de eventos cardiovasculares, porém apresentam fisiopatologia ainda não esclarecida, parecendo estar relacionadas com o desenvolvimento de aterosclerose. As razões apontadas são as alterações do fluxo sanguíneo decorrentes da compressão sistólica da artéria coronária acometida que acarretaria alteração na tensão de cisalhamento da parede do vaso, e que poderia agir como fator pró-aterogênico afetando o endotélio do segmento do vaso proximal à PM.1
Recentemente, Akishima-Fukasawa et al.2 avaliaram 150 autopsias de indivíduos sem doença cardiovascular com o objetivo de verificar a influência das PM sobre o desenvolvimento de aterosclerose, identificando a presença de PM em 93 deles. Empregando a histofotometria assistida por computador, os autores observaram maior frequência de estenose luminal nos segmentos proximais relacionados às PM. Utilizando teste de comparação múltipla, relacionaram a presença de fatores de risco como hipertensão, diabetes e dislipidemia, com maior taxa de estenose que ocorreu nos 2,5 cm proximais à PM. Apesar da ausência de avaliação de fluxo, os autores documentaram a associação anatômica entre as lesões ateroscleróticas significativas e as PM.2 Podemos especular que essa poderia ser uma das explicações para a incidência aumentada de eventos cardiovasculares em pacientes com PM.
A detecção das PM através de métodos de imagem aumentou com o emprego a tomografia cardíaca computadorizada, que permite avaliações multiplano e tridimensional. Estudos com esse método reportaram uma prevalência que variou de 5% a 76% na dependência da população estudada, do tipo de aparelho empregado e do padrão da PM.3,4 No entanto, a disponibilidade desse método para uso clínico é limitada.
Nesta edição da revista Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Enhos et al.,5 propuseram que uma nova ferramenta para avaliação de inflamação e aterosclerose, a relação entre os monócitos e a lipoproteína de alta densidade - HDL (RMH), poderia estar associada com a aterosclerose nos segmentos proximais das PM. Os autores estudaram 160 pacientes com PM e ausência de lesões coronarianas significativas, e observaram que um ponto de corte de 13,55 para a RMH apresentou sensibilidade de 59%, especificidade de 65% e área sob a curva ROC de 0,687 (IC 95: 0,606-0,769, p < 0,001), sendo um fator independente para a presença das PM na análise multivariada. Os autores atribuíram esses achados à disfunção endotelial e à inflamação.5
Os monócitos apresentam papel fundamental na cascata inflamatória e participam ativamente dos processos de formação e progressão da placa aterosclerótica, enquanto as partículas de HDL atuam de maneira contrária, reduzindo a expressão de fator tecidual nos monócitos, dificultando a migração celular e a oxidação do LDL na parede vascular.6 Observações realizadas a partir de ensaios bioquímicos permitiram compreender melhor as interações complexas entre monócitos e HDL na aterogênse, e a relação parece ser mais adequada para avaliar inflamação quando comparada às dosagens isoladas de seus componentes.6
A RMH foi associada a diversas condições clínicas nas quais a base fisiopatológica inclui o componente inflamatório. Em pacientes com doença coronariana crônica, Korkmaz et al.,7 estudaram 301 pacientes com lesões intermediárias que foram submetidos à avaliação funcional por Reserva de Fluxo Fracionada (FFR) e os pacientes que apresentaram FFR ≤ 0,8 apresentaram também os maiores valores da RMH (11,6 ± 3,3 vs. 12,6 ± 2,5).7 Em outro estudo, Akboga et al.8 avaliaram a relação entre RMH e o escore SYNTHAX. Neste estudo com 1229 pacientes, os maiores valores da RMH foram encontrados naqueles que apresentaram escore igual ou superior a 23, demonstrando associação com carga de doença aterosclerótica, segundo interpretação dos autores.8 No estudo de Enhos et al.5 os pacientes com doença aterosclerótica conhecida foram excluídos, e como foi encontrada associação positiva entre RHM e PM, o provável elo se dá pela inflamação presente em ambas as condições.
Além de marcador associado ao diagnóstico, a RMH também demonstrou possível associação com prognóstico. Em estudo com 1598 pacientes que apresentaram infarto agudo do miocárdio com supradesnível do segmento ST, o grupo de maior tercil da RHM (30,1 ± 10,5) apresentou maior mortalidade e também maior incidência de eventos cardiovasculares maiores tanto na fase intra-hospitalar, quanto ao longo do seguimento de 5 anos.9 Os autores concluíram que a RMH foi preditor independente de prognóstico nesses pacientes.9 Achados semelhantes foram encontrados por Cetin et al.10 em estudo com 2661 pacientes, no qual além da maior RMH ter sido associada com maior mortalidade, foi observado também aumento da taxa de trombose de stent. O estudo de Enhos et al.5 não permite conclusões a respeito do prognóstico.
Além da doença coronariana, estudos associaram maiores valores da RMH à nefropatia diabética quando comparados a indivíduos saudáveis e a diabéticos sem proteinúria;11 à presença e gravidade da síndrome metabólica;12 à presença de ectasias coronarianas;13 à síndrome X,14 e ao tabagismo.15 Estes dados, embora oriundos de estudos observacionais, sugerem relação entre condições que provocam inflamação vascular e alterações na RMH.
O estudo de Enhos et al.,5 apresenta várias limitações, como casuística reduzida proveniente de um único centro, com avaliação da RMH aferida de forma transversal, embora não houvesse diferenças relevantes entre os portadores de PM e os controles quanto aos fatores que sabidamente influenciam a RMH. Por outro lado, não foram avaliadas outras potenciais causas de alteração dessa relação como realização de atividade física, dieta, tabagismo e a presença de outros processos inflamatórios subjacentes.
Entretanto, o grande valor deste estudo consiste em apresentar evidência de possível associação entre PM e inflamação que precisará ser avaliada de forma longitudinal para verificar sua associação com o aparecimento de desfechos cardiovasculares aumentados em pacientes com PM. Até que esses dados sejam obtidos, não nos parece relevante a realização da aferição dessa relação em pacientes que apresentem PM com objetivo de modificação de abordagem diagnóstica e terapêutica, uma vez que se trata de uma condição benigna na maioria dos casos, com tratamento ainda controverso.