versão impressa ISSN 0101-2800versão On-line ISSN 2175-8239
J. Bras. Nefrol. vol.37 no.4 São Paulo out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.5935/0101-2800.20150077
Diabetes mellitus (DM), em especial a tipo 2, é uma doença metabólica crônica comum em todo o mundo. Sua prevalência tem aumentado juntamente com o aumento da obesidade resultante de mudanças de estilo de vida na modernidade. Os doentes com diabetes tipo 2 (DM2) estão em risco significativo para desenvolverem bem-conhecidas complicações diabéticas, incluindo a doença macrovascular, retinopatia, nefropatia e neuropatia. No entanto, recentemente, mais uma complicação tem sido associada à DM, um risco aumentado de fraturas por fragilidade que parece ser independente da densidade mineral óssea (DMO).1,2 De fato, os pacientes com DM2 têm, em geral, DMO normal, implicando anormalidades na força e/ou microarquitetura dos ossos.3 A este respeito, um estudo usando tomografia computadorizada periférica quantitativa de alta resolução (HRpQCT) demonstrou um aumento da porosidade cortical óssea associada à DM2.4 Além disso, um grande estudo usando o escore de osso trabecular (TBS), que é um parâmetro de textura que avalia as variações em nível de pixels cinza na densidade óssea da coluna, demonstrou baixo TBS na coluna vertebral lombar - associado a uma pior estrutura óssea.5 Considerados em conjunto, parece que a microarquitetura, incluindo osso trabecular e cortical estão prejudicados na DM2, e podem contribuir para a fragilidade óssea. Além dessa arquitetura distorcida, uma diminuição na formação e volume ósseos e na taxa de renovação óssea demonstrada por análise histomorfométrica de osso, que pode desempenhar um papel no aumento do risco de fraturas por fragilidade óssea observado na DM2.6
O objetivo desta revisão é discutir a relação entre diabetes e osso, bem como a patogênese da fragilidade óssea na DM2.
Há evidência convincente de que idosos com diabetes tipo 2 têm um risco elevado para todas as fraturas clínicas, particularmente em populações de afroamericanos e latinos. A este respeito, uma meta-análise demonstrou um risco relativo (RR) de fratura de 1,2 (IC de 95% 1,0 a 1,5) em pacientes com DM2.7 Uma duração prolongada da diabetes parece aumentar o risco de fratura; no entanto, DM2 recém-diagnosticada está associada a um risco significativamente aumentado de qualquer fratura (coeficiente de risco, IC: 95%: 1,36, 1,32-1,40), bem como para fraturas de quadril, coluna, punho/mão, antebraço e braço/ombro. Além disso, o controle da diabetes também influencia a fragilidade óssea, como mostrou uma recente meta-análise indicando que o controle glicêmico inadequado contribui para o aumento do risco de fratura. No entanto, a redução agressiva da A1C não parece ser eficaz na prevenção de fraturas.
Acredita-se que o aumento do risco de fratura na DM2 seja devido tanto a um aumento da frequência de quedas quanto à resistência óssea reduzida. O aumento da frequência de quedas é principalmente um resultado de complicações da doença, tais como a retinopatia e a polineuropatia.
A hiperglicemia afeta o esqueleto em ambos os níveis da matriz óssea celular e extracelular. Estudos in vitro têm demonstrado que elevados níveis de glicose aumentam a diferenciação/fusão de osteoclastos, resultando em um ambiente de maior reabsorção.8 A nível tecidual, a hiperglicemia afeta a matriz óssea orgânica através do acúmulo de produtos finais de glicação avançada (AGEs) que levam à menor resistência óssea.9 Com efeito, a contribuição dos AGEs para o desenvolvimento e progressão das complicações da diabetes está bem demonstrada na literatura.10 Em geral, os efeitos patológicos dos AGEs estão relacionados à capacidade destes compostos em modificar as propriedades funcionais e químicas de várias estruturas biológicas. Em todos os tecidos, os AGEs geram radicais livres e promovem o estresse oxidativo e a expressão aumentada de mediadores da inflamação.11 Existem vários receptores de AGEs ou proteínas ligantes de AGE; porém o receptor RAGE é provavelmente o melhor characterizado.12 Há evidências de envolvimento de RAGE no desenvolvimento de macro e micro angiopatia diabética.13
O acúmulo de AGEs no esqueleto ósseo faz com que os ossos fiquem mais frágeis, com reduzida resistência e, portanto, com menos capacidade de se deformar antes de fraturar. O AGE mais estudado é a pentosidina, cujas concentrações nos ossos cortical e trabecular estão negativamente associadas à resistência óssea.14 Pacientes com fraturas possuem mais elevadas concentrações de pentosidina do que os controles sem fraturas.15 Foi demonstrado in vitro que a incubação de osteoblastos em pentosidina causou um redução significativa na fosfatase alcalina, colágeno1α1, osteocalcina e expressão gênica de RAGE. Estes dados sugerem um efeito prejudicial dos AGEs nos ossos, causando alterações funcionais em osteoblastos e no processo de mineralização óssea.16
Além disso, as concentrações séricas de pentosidina na DM2 mostraram-se mais elevadas do que aquelas de indivíduos de controle, e foram correlacionadas com pentosidina nos ossos corticais. Um estudo japonês avaliou os níveis de pentosidina sérica em mulheres pós-menopáusicas com diabetes e demonstrou uma associação com fraturas vertebrais prévias, que foi independente da DMO.15 Este estudo sugeriu que a pentosidina sérica foi mais sensível que a DMO na avaliação do risco de fraturas vertebrais prevalentes em mulheres com diabetes. A relação entre pentosidina e fragilidade óssea foi também demonstrada na diabetes tipo 1(DM1).17,18
Recentemente, biópsias ósseas de pacientes DM1 com fratura foram analisados por cromatografia líquida de elevado desempenho para determinar as concentrações de pentosidina em ossos trabecular e cortical.18 Além disso, o grau de mineralização óssea (DMB) foi avaliado por microradiografia digitalizada, e suas propriedades mecânicas por testes de micro e nano dureza. Foram encontradas correlações positivas entre HbA1c e pentosidina e entre HbA1c e DMO. Ambas as alterações resultaram em osso menos flexível (módulo de elasticidade reduzida) aumentando a probabilidade de fraturas de baixa energia em pacientes com DM1. Com base na correlação entre a pentosidina e fraturas, é razoável especular que os níveis séricos de pentosidina poderiam servir como um marcador para o risco de fratura em pacientes diabéticos, uma vez que a DMO é menos eficaz na identificação dos pacientes com diabetes em risco de fraturas por fragilidade.
A insulina é um hormônio anabólico que tem efeitos sobre o esqueleto ósseo. Ele atua no tecido ósseo através de receptores de insulina (IRS-1 e IRS-2) expressos por osteoblastos. Em condições fisiológicas normais, a estimulação destes receptores estimula a formação de osso, aumentando a proliferação osteoblástica e promovendo a síntese de colágeno. Do mesmo modo, o fator de crescimento 1 da insulina (IGF-1) é um regulador-chave para os ossos e atua de modo a aumentar o recrutamento de osteoblastos, a deposição de matriz óssea e reduzir a degradação do colágeno.19 Com efeito, estudos demonstraram uma correlação positiva entre IGF-1 e DMO e também uma correlação negativa com o quadril e fraturas vertebrais.20
Estudos têm mostrado que os marcadores séricos de renovação óssea (MRO), especialmente os marcadores de formação (osteocalcina e P1NP) estão em concentrações reduzidas em pacientes com diabetes.21,22 Além disso, a histomorfometria óssea, demonstrou que os parâmetros de remodelação, tais como a de taxa de formação óssea e mineralização da superfície são significativamente menores em DM2 do que nos controles, indicando um baixo volume de renovação.23,24 A este respeito, esclerostina um regulador de formação óssea, emergiu como um importante participante neste cenário. A esclerostina é um produto osteocítico que inibe a via da Wnt B-catenina através da ligação à LRP5 ou 6 e, desse modo, regula negativamente a formação óssea.25 Foi demonstrado que os pacientes com diabetes tipo 2 têm níveis circulantes mais elevados de esclerostina que foram associados ao tempo e ao controle da doença.26,27
Um estudo Chinês avaliou 265 mulheres pósmenopáusicas com diabetes tipo 2 e os autores mostraram que o nível sérico de esclerostina estava significativamente mais elevado do que no grupo de não-diabéticas (controle) (48,2 ± 19,4 versus 37,2 ± 18,6 pmol/l, p < 0,001). A concentração sérica da esclerostina foi positivamente correlacionada com o nível de hemoglobina A1c e negativamente associada a marcadores de remodelação óssea, hormônio da paratireóide intacto e fosfatase alcalina específica do osso.28 Além disso, os níveis de esclerostina estavam associadas ao aumento no risco de fraturas vertebrais, independente da DMO,15 indicando que a formação óssea causada por altos níveis de esclerostina prejudica a qualidade óssea. Uma associação significativa entre os marcadores de formação óssea e IGF-1 demonstrou e confirmou que o IGF-1 está relacionado à função de osteoblastos.29 Além disso, foi demonstrada uma associação inversa entre a IGF-1 e a esclerostina em mulheres pós-menopáusicas com diabetes tipo 2 e fraturas vertebrais. E, por conseguinte, parece que a associação entre baixos níveis de IGF-1 e elevados níveis de esclerostina contribuem para a fragilidade óssea observada em pacientes com DM2.
A osteocalcina é uma proteína da matriz não-colagenosa que está ligada ao metabolismo da glicose. É um peptídeo de 49-amino ácidos, sintetizado exclusivamente pelos osteoblastos e armazenado na matrix.30 Na sua forma subcarboxilada, ela tem algumas características hormonais e tem sido associada ao metabolismo da glicose e à massa de gordura. A osteocalcina estimula a secreção de insulina e aumenta a sensibilidade à insulina no tecido adiposo e muscular (Figura 1). Foi demonstrada uma associação negativa entre a osteocalcina e marcadores de síndrome metabólica, tais como glicose, insulina, proteína C reativa de alta sensibilidade, interleucina-6, gordura corporal e o índice de massa corporal (IMC),31 sugerindo que baixos níveis de osteocalcina podem desempenhar um papel na fisiopatologia da fragilidade óssea na DM2.
Acreditava-se que a obesidade era protetora contra a osteoporose. Um IMC elevado é muito frequente em pacientes com DM2, e está fortemente associado a uma maior densidade mineral óssea, porém obesidade não é protetora contra fraturas.32 Com efeito, os resultados do estudo GLOW (estudo global Longitudinal da osteoporose em mulheres) demonstram que a obesidade não confere proteção contra fratura em mulheres pós-menopáusicas e está associada a um maior risco de fraturas do tornozelo e da perna.33 Além disso, interessantes interações entre gordura e osso podem ter participação importante na fisiopatologia da fragilidade óssea.
Há um interesse crescente na relação entre a gordura da medula óssea (BMF), DMO e fraturas. Essa interação ocorre devido ao fato de osteoblastos e adipócitos diferenciarem-se a partir das mesmas células-tronco mesenquimais (MSC).34 Estudos recentes com adipócitos de medula óssea mostraram que eles não são somente células de armazenamento de lipídios, mas também secretam adipocinas, tais como leptina e adiponectina de forma autócrina e parácrina. Foi observada uma relação inversa entre BMF e DMO; No entanto, nenhum estudo até hoje foi capaz de demonstrar associação com fragilidade.35 A gordura da medula óssea, BMF, pode ser medida por meio de técnicas sofisticadas, tais como ressonância magnética, com ou sem espectroscopia, e por biópsia óssea, em que o volume, o perímetro e a densidade dos adipócitos podem ser quantificados.36,37 Estudos com histomorfometria óssea demonstraram que o aumento da adipogénese na medula óssea de pacientes ostoporóticos foi inversamente correlacionada com o volume do osso trabecular.37 Além disso, o aumento em BMF foi associado a uma reduzida taxa de formação óssea, corroborando o postulado da diferenciação das células-tronco mesenquimais a partir da via osteoblástica para a via adipocítica na osteoporose.36
Recentemente, avaliamos a BMF de 41 pacientes em diálise peritoneal por histomorfometria óssea e encontramos uma associação entre o aumento da adiposidade medular e a atividade reduzida dos osteoblastos da medula e remodelação óssea.38 Curiosamente, pacientes diabéticos tinham taxas mais altas de gordura na medula do que os não-diabéticos (Figura 2).
Figura 2 Doença óssea adinâmica em pacientes com DRT. Uma trabecular isolada entre um grande número de adipócitos na medula óssea. (corte de tecido ósseo corado com hematoxilina e eosina, ampliação de 20x).
Em resumo, é evidente que há interações complexas entre o esqueleto ósseo, a obesidade e a BMF e estas interações têm implicações importantes no desenvolvimento de fragilidade esquelética em DM2.
Diabetes mellitus predispõe os pacientes com doença renal crônica (DRC) a um estado de baixa remodelação óssea, chamada de doença óssea adinâmica (ABD). Importante, a prevalência de ABD aumentou durante as últimas décadas e foi demonstrado ser o distúrbio ósseo mais prevalente entre pacientes em pré-diálise e aqueles em diálise peritoneal (PD).39,40 A crescente prevalência de DM entre a população com DRC tem sido sugerida como uma das possíveis explicações para esses achados. Além disso, a significância patológica da ABD na DRC tem sido demonstrada através da sua associação com calcificação vascular, fragilidade óssea e mortalidade.41
Em um estudo recente em que a osteodistrofia renal foi avaliada em 41 pacientes em DP, de Oliveira et al. confirmaram ainda a associação entre DM e ABD, que poderia ser, pelo menos parcialmente, explicada pela presença de elevados níveis séricos e ósseos de esclerostina em pacientes diabéticos.40 Essa hipótese ainda precisa ser testada em populações em pré-diálise e em hemodiálise. Notavelmente, a acumulação de toxinas urêmicas pode exacerbar o efeito supressor do diabetes na remodelação óssea através de seus efeitos deletérios sobre a função das células ósseas.42 A hiperglicemia e a deficiência de insulina inibem a secreção do hormônio da paratireóide e pode agir sinergicamente, com os efeitos diretos da DM e das toxinas urêmicas nas células ósseas para suprimir ainda a mais a remodelação óssea na DRC. Finalmente, apesar de ser considerado um fator de risco clássico para ABD, continua a ser demonstrado que um melhor controle glicêmico poderia melhorar a remodelação óssea em pacientes diabéticos com DRC.
Existe uma relação interessante entre DM2, bem como do metabolismo ósseo e da glicose. Além disso, foi demonstrada uma interação entre a gordura e osso. A este respeito, um grande número de aspectos, discutidos acima, desempenha um papel na diminuição da qualidade do osso em pacientes com DM2. Um controle glicêmico adequado é importante e pode ajudar a reduzir o risco de fragilidade óssea, uma vez que pode diminuir o acúmulo de AGEs na matriz óssea. Além disso, um retardo nas complicações da diabetes, tais como neuropatia e retinopatia, conseguido através de um melhor controle da glicose pode ajudar a diminuir o risco de quedas.
No entanto, além do controle da glicose, todos os pacientes com DM devem ser estimulados a prevenir a osteoporose e quedas, reduzindo todos os outros fatores de risco, como tabagismo, sedentarismo e deficiência de vitamina D.
É interessante ressaltar, que a doença óssea em diabetes tem algumas semelhanças com a ABD, onde juntamente com uma baixa taxa de remodelação óssea há também níveis mais elevados de esclerostina circulante e menores níveis circulantes de PTH. Todos esses achados podem indicar que uma nova classe de drogas, os inibidores da esclerostina, podem representar uma opção terapêutica promissora em pacientes diabéticos com fragilidade óssea.