versão impressa ISSN 0021-7557
J. Pediatr. (Rio J.) vol.90 no.1 Porto Alegre jan./ev. 2014
http://dx.doi.org/10.1016/j.jped.2013.02.024
O diabetes mellitus (DM) está entre as principais causas de morbimortalidade. Sua prevalência mundial tem aumentado rapidamente, especialmente entre os países em desenvolvimento.1 No Brasil, em 2010, a prevalência geral estimada, incluindo DM tipos 1 (DM1) e 2 (DM2) entre adultos, foi de 6,4% (aproximadamente 12 milhões). Destaca-se, no entanto, que o aumento da prevalência da doença é verificado em todo o mundo. Havia 371 milhões de diabéticos no mundo em 2012. Estima-se que, em 2030, cerca de 552 milhões de pessoas terão diabetes. Isto equivale a um diabético a cada 10 adultos, significando que, para se chegar a esse número, surgirão três novos casos a cada 10 segundos.2 Embora o DM1 seja menos comum que o tipo 2, está aumentando a cada ano, tanto nos países desenvolvidos quantos naqueles em desenvolvimento. A prevalência mundial de DM1 é de 0,1% a 0,3%, sendo que 78.000 novos casos aparecem a cada ano, especialmente entre jovens (< 5 anos de idade).2 O DM2 acomete cerca de 7% da população geral.2
Os diabéticos apresentam risco aumentado de desenvolver doenças cardiovasculares, neuropatias e nefropatias, com diminuição da qualidade de vida e da sobrevida.3 Segundo a Federação Internacional do Diabetes, esta doença causou 4,8 milhões de mortes em 2012.2 Devido à magnitude do problema e ao seu impacto na saúde pública, a identificação de medidas capazes de prevenir sua ocorrência é de grande interesse. Acredita-se que o leite materno seja capaz de exercer impacto positivo na saúde por prevenir a manifestação de doenças como o diabetes.4
No DM1, a destruição autoimune das células β pancreáticas é transmitida geneticamente. Entretanto, verifica-se que nem todos os indivíduos que possuem o gene desenvolvem a doença. Tal fato sugere a existência de fatores ambientais capazes de controlar sua manifestação. Acredita-se que o uso precoce do leite de vaca, um alimento altamente alergênico,5 e a ausência do aleitamento materno sejam responsáveis pelo desencadeamento do processo autoimune citado anteriormente.6 A destruição das células β ocorre, em média, durante 10 anos, coincidindo com o pico de incidência da doença, que ocorre na faixa etária entre 10 e 14 anos.7
A relação entre aleitamento materno e DM1 foi demonstrada em estudo de caso-controle envolvendo 1.390 pré-escolares. No referido estudo, observou-se que receber o leite materno por cinco meses ou mais atuou como fator de proteção contra o diabetes (OR: 0,71; IC 95%: 0,54-0,93).8 Dessa forma, uma proporção considerável do risco de diabetes foi explicada por exposição modificável, sendo potencialmente passível de prevenção. O efeito protetor do leite humano tem sido associado às suas propriedades anti-infecciosas e pelo fato de o seu emprego evitar a exposição precoce a outros agentes etiológicos presentes em outros tipos de leite.9 - 11 Contudo, alguns pesquisadores contestam tal relação.12 , 13
Indivíduos amamentados apresentam menores taxas de obesidade e DM2 que aqueles alimentados com fórmulas infantis.14 , 15 Os benefícios averiguados são proporcionais à duração do aleitamento.16 , 17 Tais efeitos têm sido atribuídos à regulação do apetite e menor ganho de peso em crianças amamentadas e/ou aos efeitos dos nutrientes ou constituintes bioativos presentes no leite humano.18 A amamentação como prática protetora do DM2 também tem sido demonstrada em diversos outros estudos,19 - 21 mas não em todos.18 , 22 A divergência nesses resultados pode refletir a existência de vieses e fatores interferentes.
Diante do exposto, foi realizada uma análise crítica dos estudos publicados sobre o assunto, com o objetivo de esclarecer a influência do aleitamento materno no risco de desenvolvimento do DM1 e DM2. Esta análise visou, também, à identificação de possíveis estratégias dietéticas passíveis de serem implementadas precocemente, para prevenir a manifestação da doença.
Foi realizada uma revisão de literatura a partir de um levantamento bibliográfico nas bases de dados eletrônicas: Scientific Eletronic Library On-line (SciELO), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), Sciverse Scopus (Scopus) e Biblioteca Virtual em Saúde (BVS). Na busca, foram priorizadasas publicações sobre o tema realizadas nos últimos dez. Contudo, estudos considerados importantes e utilizados como referência desses artigos mais atuais foram buscados para complementar a revisão. As seguintes palavras-chave e seus respectivos correspondentes, em inglês, foram empregadas para pesquisa: aleitamento materno (breastfeeding), leite do peito (breast milk); lactação (lactation); alimentação na infância (early infant feeding); alimentação complementar (complementary feeding); diabetes mellitus (diabetes mellitus); diabetes tipo 1 (type 1 diabetes) e diabetes tipo 2 (type 2 diabetes). Utilizando o termo "breastfeeding" foram identificados 29.069 trabalhos publicados. Contudo, durante o refinamento por meio da inclusão dos termos "diabetes mellitus", foram obtidos apenas 52 artigos. Desses, foram analisados 21 (sendo, nove para diabetes tipo 1, e 12 para diabetes tipo 2). Os demais artigos encontrados foram descartados por não tratarem especificamente do assunto em questão.
Borch-Johnsen et al., em 1984, foram os primeiros a apontar que o aleitamento materno parecia ter um efeito protetor contra o DM1, evitando ou retardando o aparecimento dessa doença. Propõe-se que a presença de agentes antimicrobianos, anti-inflamatórios e substâncias que promovem a maturação do sistema imunológico no leite humano exerçam efeito protetor contra o DM1.23
Em animais propensos ao diabetes, a oferta prolongada e exclusiva do leite materno protegeu-os contra o diabetes autoimune, enquanto que a ingestão de alimentos sólidos aboliu completamente esse efeito protetor. Verificou-se que o aleitamento esteve correlacionado aos altos níveis de células T e baixos níveis de citocinas inflamatórias, tais como interferon-γ, interleucina-4 e interleucina-10.24 Estudos epidemiológicos em humanos também indicam a existência de relação similar.25 - 28 Os resultados desses estudos sugerem que a alimentação adequada durante os primeiros meses de vida previne a manifestação da doença. Entretanto, esses efeitos positivos não foram identificados por alguns autores.13 , 29
Verifica-se que a exposição precoce ao leite de vaca aumenta a chance de adquirir DM1 quando comparada à adoção do aleitamento materno exclusivo até, pelo menos, quatro meses após o nascimento.30
Em estudo de meta-análise (17 estudos de caso-controle), foi avaliada a relação entre a alimentação na infância e o risco de DM1. Observou-se um efeito fraco entre nunca ter sido amamentado (OR:1,13; IC 95%: 1,04-1,23), um efeito moderado para fórmulas infantis (OR: 1,38; IC 95%:1,18-1,61), o uso do leite de vaca antes dos três meses de idade (OR:1,61; IC 95%: 1,31-1,98) e o risco de manifestação da doença. Verificou-se, ainda, que o efeito constatado para as populações com baixa prevalência de aleitamento materno era semelhante ao de nunca terem sido amamentadas. Destaca-se que tais efeitos não foram vistos em populações com altas taxas de aleitamento, assim como não foi observada a associação entre ter sido amamentado e nunca ter recebido leite materno com DM1 em populações nas quais a prevalência de amamentação é baixa. Desta forma, em pesquisas do tipo caso-controle, as diferenças na prevalência de diabetes e de aleitamento nas populações precisam ser avaliadas e consideradas no delineamento de cada estudo.31
Em meta-análise recente, compreendendo 43 estudos (dois coortes e 41 casos-controle) e uma amostra total de 9.874 pacientes com DM1, observou-se que o aleitamento materno exclusivo por mais que duas semanas reduz em 15% o risco da doença, tendo sido identificada pouca redução em resposta ao aleitamento materno (exclusivo ou não exclusivo) por mais de três meses. É possível que essa diferença possa ter ocorrido em função da acurácia das informações fornecidas pelas mães e obtidas por recordatórios, e do início do aleitamento comparado às fases posteriores. Considera-se a dificuldade de memória em relação à prática alimentar no início da vida como um importante fator de viés que pode afetar os resultados dos estudos.32
Evidências atuais de outra meta-análise (27 estudos de caso-controle e um coorte) mostram sete estudos indicando que a realização do aleitamento materno por um curto período ou a sua falta pode ser um dos principais fatores de risco para o DM1. Os resultados de outras cinco pesquisas também indicaram que, em comparação com crianças saudáveis, as diabéticas não foram amamentadas, ou o foram por um curto período de tempo. Além disso, em cinco estudos, constatou-se um aumento do risco de DM1 em associação à introdução precoce de leite de vaca e de outros substitutos do leite humano. Entretanto, em outros cinco verificou-se associação fraca ou nenhuma associação da doença e o curto período de aleitamento ou introdução precoce do leite de vaca. Em um estudo foi observada associação inversa entre aleitamento e o risco de DM1.33
É importante ressaltar que, em todas as meta-análises citadas, os autores colocam que a fraca associação algumas vezes encontrada entre aleitamento e DM1 pode refletir a existência de problemas metodológicos relacionados à fidedignidade dos dados analisados nos estudos. A falta de informações ou detalhamento sobre a duração do aleitamento materno, se o mesmo foi exclusivo ou não, o uso de fórmulas infantis e de leite de vaca, bem como a idade de introdução de alimentos complementares, são alguns já relatados.
Em estudo realizado em Campina Grande, com 128 crianças e adolescentes, verificou-se que 84,4% dos diabéticos foram expostos ao leite de vaca antes dos quatro meses de idade, enquanto que, no grupo controle, esse percentual foi de 64,1%. Em análise multivariada, foi constatada associação significativa entre exposição precoce ao leite de vaca e diabetes (OR: 4,09; IC 95%: 1,19-14,04).30 Em outro estudo, envolvendo 200 crianças diabéticas do tipo 1 (dois a seis anos) na Arábia Saudita, foi demonstrada a associação entre DM1 vs consumo prolongado de leite de vaca (OR = 4,3), curta duração do aleitamento materno (OR = 3,5) e consumo excessivo de leite de vaca (OR = 2,4).34
Acredita-se que a albumina bovina sérica seja um dos possíveis fatores responsáveis pelo desencadeamento do processo autoimune envolvido na manifestação do DM1. Anticorpos para esta proteína foram encontrados em pacientes recentemente diagnosticados com a doença. Evidências epidemiológicas importantes indicam ainda a existência de forte correlação entre o consumo de leite de vaca e a incidência de DM1 em vários países.35 Isto gera, então, poucas dúvidas de que o consumo de leite de vaca é também um "gatilho" para a manifestação do diabetes.
Na tabela 1 são apresentados os resumos de estudos que investigaram a existência de associação entre diabetes mellitus tipo 1 e a duração do aleitamento materno.
Tabela 1 Estudos nos quais foi investigada a existência de associação entre diabetes mellitus tipo 1 e aleitamento materno
Estudo | Desenho | Amostra | Idade na | Tipo e tempo | Método de | Ajuste para | Resultados |
---|---|---|---|---|---|---|---|
avaliação | de amamentação | coleta de | fatores | ||||
dados | interferentes | ||||||
Collado-Mesa | Descritivo, | Cuba | ? | Não avaliado, | Casos | - | Ausência de associação |
& Díaz-Díaz12 | retrospectivo | n = 263 | -2 meses e | registrados | |||
3-44 meses | em banco | ||||||
(não informa | de dados | ||||||
se foi exclusivo) | nacional | ||||||
Macedo et al.10 | Caso-controle, | Brasil | ? | O tempo de | Pacientes | - | Associação inversa verificada |
retrospectivo | n = 124 | amamentação | com | para o gênero feminino. | |||
(sendo 47 | foi analisado | diagnóstico | Tempo médio de aleitamento | ||||
diabéticos | antes da | prévio | materno exclusivo no grupo | ||||
e 77 sem | introdução do | acompanhados | de estud o= 2,1 meses | ||||
a doença) | em ambulatório | versus controle = 3,7 meses; | |||||
leite de vaca | p = 0,0449 | ||||||
Rosenbauer | Caso-controle, | Alemanha | 11-14 anos | Leite materno: | Casos | Consumo | Aleitamento |
et al.28 | retrospectivo | n = 760 | = 5 meses | registrados | complementar | materno | |
casos/1871 | versus | em banco | de leite de vaca, | =5 semanas atuou | |||
controles | < 2 semanas | de dados | história familiar | como fator de | |||
nacional | de DM1, nível | proteção contra | |||||
socioe-conômico, | o DM1 (OR: 0,71 | ||||||
idade materna, | (IC: 054-0,93) | ||||||
peso ao nascer, | |||||||
paridade | |||||||
Viner et al.13 | Longitudinal, | Inglaterra, | 5, 10 | Não recebeu leite | Autorrelato | - | Ausência de associação |
autorrelato | Escócia, | e 30 anos | materno; | dos | |||
País de | 3 meses e | participantes | |||||
Gales e | < 3 meses | aos 30 anos | |||||
Irlanda | de idade | ||||||
do Norte | |||||||
n = 11261 | |||||||
Leal et al.11 | Estudo | Brasil | ? | Não recebeu leite | Pacientes | - | Associação verificada |
descritivo, | n = 33 | materno, recebeu | com | para o desmame precoce | |||
relato da mãe | diabéticos | aleitamento por | diagnóstico | (aleitamento materno | |||
tipo 1 | < 1 mês ou até 1, | prévio | <6 meses) e a presença | ||||
2, 3, 4, 5 ou | acompanhados | de diabetes (30,6% da | |||||
6 meses | em | amostra foi amamentada por | |||||
ambulatório | menos de 1 mês e somente | ||||||
12,1% alcançaram os seis | |||||||
meses) |
DM1, diabetes mellitus tipo 1
IC, intervalo de confiança
OR, Odds Ratio.
Após análise dos resultados desses estudos, constata-se a existência de controvérsias sobre o papel do leite humano no desenvolvimento do DM1. Apesar de os resultados do estudo de Leal et al.11 terem indicado a existência de associação positiva entre aleitamento materno e DM1, este não tinha um grupo controle. Os controles são de fundamental importância para atenuar os possíveis efeitos exercidos por variáveis de confusão.
Outra dificuldade a considerar de que o aleitamento materno pode causar o DM1 está associada à data de início de destruição das células β pancreáticas, que começa em fase precoce da vida em crianças com predisposição genética à doença.36 Assim, essa destruição pode se iniciar muitos anos antes do diagnóstico da doença, e as associações verificadas nos estudos podem refletir os efeitos de outros fatores precipitantes da doença, não necessariamente a de promotores do processo autoimune.37
Existe razão para crer que o desenvolvimento de doenças crônicas de base infecciosa ou imunológica possa ser influenciado pelo tipo de alimentação adotado no primeiro ano de vida. Apesar das controvérsias nos resultados dos estudos, a promoção do aleitamento materno contra a utilização do leite de vaca deve ser estimulada no primeiro ano de vida.
O relatório de evidências sobre os efeitos da amamentação da Agency for Healthcare Research destaca, dentre outros benefícios associados ao leite materno, a proteção contra o DM1 e o DM2,38 o que tem sido reforçado por outros autores.39
As crianças que recebem leite materno têm menor risco de apresentar sobrepeso ao longo da infância, da adolescência40 e da vida adulta.41 A Organização Mundial da Saúde conduziu uma meta-análise, que incluiu 39 estudos publicados durante os últimos 40 anos. Os resultados do referido estudo indicaram que as crianças amamentadas são menos propensas a se tornarem obesas (OR: 0,78; IC 95%: 0,72-0,84), mesmo após ajuste para estado nutricional dos pais, nível socioeconômico e peso ao nascer.15 Recentemente, essa proteção do aleitamento materno contra o excesso de peso também foi confirmada por outros autores.42
Além disso, essa prática foi associada à redução de 10% a 20% no risco de eventos cardiovasculares (doenças coronárias e derrame) em mulheres participantes do Nurses' Health Study. 43 Por outro lado, em estudo envolvendo homens não foi observada associação entre aleitamento materno e fatores de risco ou mortalidade cardiovascular.44 Nele, os autores mais uma vez atribuem a falta de evidências aos vieses de memória das mães, visto que a avaliação do aleitamento foi realizada décadas após o nascimento.
Em estudo realizado, foi observada a prevalência de 1,2% de DM2 em amamentados, comparado a 3% naqueles que não receberam aleitamento. Contudo, não houve diferença significativa.45 Segundo os autores, esse resultado ocorreu, possivelmente, pela baixa prevalência do diabetes na população avaliada.
Em uma coorte (n = 405), foi observada redução de 0,12% nos níveis de hemoglobina glicada em indivíduos adultos não diabéticos amamentados, comparados àqueles em que foi utilizada a mamadeira. Embora essa redução seja pequena, os autores ressaltam sua importância em saúde pública. Verificou-se, ainda, que o aleitamento se associou inversamente ao desenvolvimento da aterosclerose.46
O leite materno resulta em maior saciedade do que as fórmulas infantis, evitando o ganho de peso excessivo durante a infância. Assim, esse tipo de leite atua protegendo contra o desenvolvimento de obesidade e, consequentemente, do DM2.14 O efeito protetor do aleitamento materno também foi verificado por outros autores.13 , 20
Contudo, essa relação não tem sido observada em outros estudos.18 , 22 Entretanto, segundo Davis et al.,22 tal fato pode ter ocorrido devido à utilização do método retrospectivo para investigação da história de aleitamento. Outra limitação desse estudo foi o tamanho reduzido da amostra, uma vez que os indivíduos foram divididos em categorias de duração do aleitamento, e ficaram somente oito deles na faixa de seis a 12 meses. Tais fatos podem ter mascarado a associação existente entre aleitamento e DM2. No estudo conduzido por Fall et al.,18 a ausência de evidências sobre o efeito da duração do aleitamento sobre a manifestação do DM2 ou adiposidade foram atribuídos à falta de uma definição única para aleitamento materno exclusivo entre os estudos. Acredita-se, ainda, que associação entre aleitamento e DM2 possa ser afetada pelo efeito da "dose resposta", isto é, quanto mais leite humano a criança recebe, menor o risco de desenvolver a doença. Entretanto, a obtenção de informações confiáveis em relação à quantidade de leite ingerida e a ingestão de alimentos complementares pode não acontecer, comprometendo, assim, a fidedignidade dos resultados dos estudos. É importante conhecer a predisposição genética dos pais para ajudar a separar fatores genéticos dos efeitos resultantes da oferta de alimentos inadequados para a criança.45
Na tabela 2 são apresentados os resumos dos estudos que investigaram a existência de associação entre diabetes mellitus tipo 2 e a duração do aleitamento materno.
Tabela 2 Estudos nos quais foi investigada a existência de associação entre diabetes mellitus tipo 2 e aleitamento materno
Estudo | Desenho | Amostra | Idade | Tipo e tempo | Método de | Ajuste para | Resultados | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
da avaliação | de amamentação | coleta dos dados | fatores interferentes | |||||
Young et al.16 | Caso-controle | Canadá | < 18 anos | Não recebeu | Relato da mãe | Diabetes gestacional, | Crianças amamentadas por | |
n = 46 (casos) | leite materno, | retrospectivo | consumo de álcool na | = 6 apresentaram menor | ||||
n = 92 | < 6 meses | gestação, tabagismo | chance de desenvolverem | |||||
(2 controles | = 6 meses | na gestação, peso ao | DM2 comparada aquelas | |||||
para cada caso) | nascer, estado nutricional | que receberam leite | ||||||
materno | materno < 6 meses | |||||||
(OR: 0,36; IC 95%: | ||||||||
0,13-0,99) | ||||||||
Owen et al.14 | Revisão | 7 estudos | 1-71 anos | As classificações | Os estudos definiram | Três estudos tinham | Indivíduos que foram | |
sistemática | (aleitamento | de aleitamento | DM2 de diversas | informação acerca dos | amamentados apresentaram | |||
materno, | materno exclusivo | maneiras: teste de | fatores de confusão | menor chance de ter DM2 | ||||
fórmula infantil | variaram entre os | tolerância oral a | relevantes (peso ao nascer, | (OR: 0,61; IC: 0,44-0,85). | ||||
e diabetes) | estudos e foram | glicose-75 g, | história familiar de diabetes, | As OR foram similares antes | ||||
n = 76744 | mantidas nas | glicemia de jejum, | nível socioeconômico, | e após ajuste | ||||
(Austrália, | análises conforme | pós-carga ou glicemia | estado nutricional | |||||
Finlândia, Suécia) | previamente | de jejum, coleta | individual e materno) | |||||
classificadas | de dados em | |||||||
questionários | ||||||||
Davis et al.22 | Retrospectivo | Latinos | 8-13 anos | Não recebeu leite | O estudo avaliou | Diabetes mellitus | Não houve efeito significativo | |
para o | n = 240 | materno, | o risco de DM2 | gestacional, idade, gênero | do aleitamento materno | |||
aleitamento e | < 6 meses | através do teste de | e composição corporal | nos fatores de risco para DM2 | ||||
coorte para | = 6 meses e | tolerância a glicose | ||||||
estado | < 12 meses, | intravenosa | ||||||
nutricional | = 12 meses | |||||||
Mayer-Davis | Caso controle | Estados Unidos | Não recebeu leite | Relato da mãe | Idade, sexo, IMC atual, | Indivíduos que foram | ||
et al.19 | retrospectivo | n = 80 com | materno, | retrospectivo | raça/etnia, peso ao nascer, | amamentados apresentaram | ||
diabetes tipo 2 | = 6 meses | diabetes materno, história | menor chance de ter DM2 | |||||
n = 167 | e < 6 meses | familiar de diabetes, | comparado àqueles que nunca | |||||
(controle) | idade materna, IMC | receberam leite materno | ||||||
pré-gestacional, escolaridade | (OR: 0,26; IC 95%: 0,15-0,46). | |||||||
materna, tabagismo | Após ajuste as associações | |||||||
durante a gestação, consumo | permaneceram (OR: 0,4; | |||||||
de álcool durante a gravidez | 0,19-0,99), contudo quando o | |||||||
IMC foi adicionado ao modelo | ||||||||
a associação foi atenuada | ||||||||
(OR: 0,82; IC: 0,30-2,30), | ||||||||
sugerindo possível mediação | ||||||||
através do peso atual da criança | ||||||||
As análises que incorporaram a | ||||||||
duração do aleitamento | ||||||||
materno, mesmo após ajuste, | ||||||||
evidenciaram uma dose resposta | ||||||||
(teste de tendência: p < 0,0001) | ||||||||
Os resultados foram semelhantes | ||||||||
entre raça/etnia (hispânicos, | ||||||||
não hispânicos brancos, | ||||||||
não hispânicos negros) | ||||||||
Madsen | Transversal | Dinamarca | 9 meses | Não recebeu leite | No estudo avaliou-se | Gênero, aleitamento até | Os níveis de insulina foram | |
et al.20 | com análise | n = 265 | materno, | o risco de DM2 | 9 meses, duração do | menores no grupo amamentado | ||
de dados de | = 2 vezes/dia | através dos níveis | jejum e energia contida na | até 9 meses comparado ao não | ||||
uma coorte | ou = 3 vezes/dia | glicêmicos e | refeição antes do jejum | amamentado (23,7 pmmol/L | ||||
insulinêmicos | para o teste, dieta, pregas | versus 37,0 pmmol/L; | ||||||
cutâneas, peso corporal, | p < 0,042), com considerável | |||||||
estatura e IMC aos 9 meses | baixas concentrações quanto | |||||||
mais vezes por dia foram | ||||||||
amamentadas | ||||||||
Os níveis glicêmicos não | ||||||||
Aleitamento até | apresentaram diferença | |||||||
nove meses | ||||||||
(sim ou não) | ||||||||
Fall et al.18 | Análise de | Brasil, | 15-41 anos | Apenas um estudo | Em todos os estudos | As análises foram ajustadas | Não foi associado | |
dados de cinco | Guatemala, | tinha informações | a coleta de dados | por nível socioeconômico, | ||||
cortes | Índia, Filipinas | sobre o | sobre o aleitamento | escolaridade, idade, | ||||
prospectivos | e África do Sul | aleitamento | foi retrospectiva | tabagismo, raça, moradia | ||||
n = 10 912 | materno exclusivo | na zona urbana ou rural | ||||||
e peso ao nascer | ||||||||
Veena et al.21 | Corte | Índia | 5 e 9,5 anos | < 3 meses, | Relato da mãe | As análises foram ajustadas | ||
n = 518 | 3-5 meses, | por gênero, idade, IMC | ||||||
6-8 meses, | atual, renda, escolaridade | |||||||
9-11 meses, | dos pais, residência urbana | |||||||
1 2-17 meses, | ou rural, peso as nascer e | |||||||
= 18 meses | diabetes gestacional | |||||||
O aleitamento materno | ||||||||
prolongado foi associado | ||||||||
a baixos níveis de insulina | ||||||||
e HOMA-IR aos 5 anos, mas | ||||||||
não aos 9,5 anos. | ||||||||
As associações foram | ||||||||
independentes dos | ||||||||
potenciais fatores | ||||||||
de confusão |
DM2, diabetes mellitus tipo 2
HOMA-IR, modelo homeostático de resistência insulínica
IC, intervalo de confiança
IMC, índice de massa corporal
OR, Odds Ratio.
Acredita-se que a proteção do aleitamento materno contra o sobrepeso e DM2 esteja associada aos seus constituintes bioquímicos e à sua composição nutricional diferenciada. Algumas substâncias bioativas podem promover o equilíbrio energético, reduzindo a deposição de gordura e favorecendo a obtenção de respostas metabólicas desejáveis. O leite humano contém ácido docosaexaenoico (DHA). Além disso, o leite materno contém quantidade adequada de ácidos graxos poli-insaturados (PUFAs) para garantir o número adequado de receptores insulínicos no cérebro da criança, necessários para manter o metabolismo glicêmico normal.47 Observa-se que os fosfolipídios das membranas de crianças amamentadas apresentam quantidade significativamente maior de DHA e outros PUFAs do que aquelas não amamentadas ao seio. Acredita-se que baixas concentrações de DHA e PUFAs podem resultar em resistência insulínica.14
Altos níveis basal e pós-prandial de insulina e neurotensina (inibe a secreção de insulina e estimula a secreção de glucagon) têm sido relatados em lactentes alimentados com fórmulas em relação àqueles amamentados.48 Tais diferenças podem levar ao desenvolvimento de resistência insulínica e DM2.
Ressalta-se que a maioria dos autores dos estudos analisados para esta revisão não informaram a duração do aleitamento ou forneceram informação sobre a alimentação complementar (tabela 2). A maioria desses estudos foi conduzida em países desenvolvidos, onde as mães que seguem os guias nutricionais tendem a ter alto nível de escolaridade e renda. As análises de dados provenientes de países de baixa e média rendas podem ajudar a identificar os efeitos de fatores de confusão, uma vez que a relação entre práticas alimentares na infância e classe social difere entre eles.18
Destaca-se que, por questões éticas, a grande maioria dos estudos disponíveis, envolvendo seres humanos, sobre os benefícios das formas alternativas de aleitamento são observacionais, e não comprovam a existência de uma relação de causa e efeito. Nesses estudos, o pequeno número de crianças amamentadas exclusivamente avaliadas também pode ser um importante fator limitante para a obtenção do poder estatístico necessário para se detectar os efeitos benéficos da conduta adotada.45
Em países de baixa e média rendas, apesar de a oferta do leite materno à criança ser uma prática comum, muitas mães introduzem alimentos complementares e interrompem o aleitamento precocemente.49 A obesidade, o diabetes e as doenças cardiovasculares estão aumentando rapidamente nesses países.50 Dessa forma, a promoção de práticas alimentares saudáveis na infância, com aleitamento materno exclusivo mantido até os seis meses, e de forma complementar até pelo menos dois anos, é uma estratégia de baixo custo e que pode afetar positivamente a saúde da criança ao longo de sua vida.
Apesar de ainda não haver consenso no meio científico, as evidências disponíveis até o momento colocam a falta do aleitamento materno como possível fator de risco modificável para a manifestação, tanto do DM1 quanto do DM2. Os benefícios do aleitamento materno têm sido atribuídos a substâncias bioativas, que promovem a maturação do sistema imunológico, reduzem a resistência insulínica e previnem o ganho de peso excessivo durante a infância.
Para esclarecer lacunas ainda existentes sobre os reais efeitos da adoção de práticas alimentares inadequadas, são necessários estudos longitudinais bem delineados, com critérios mais claros de seleção dos participantes e ajuste para potenciais fatores de confusão, visando a elucidar os possíveis mecanismos responsáveis pelo impacto protetor do aleitamento materno na manifestação do DM. Torna-se importante identificar, em estudos futuros, a duração e a exclusividade do aleitamento, de forma a se evitar tal manifestação em indivíduos geneticamente predispostos à doença.
Bolsa de doutorado da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) para Patrícia F. Pereira.