versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464
Cad. Saúde Pública vol.36 no.5 Rio de Janeiro 2020 Epub 01-Jun-2020
http://dx.doi.org/10.1590/0102-311x00095220
O Brasil tem vivenciado uma conjuntura delicada, por um lado uma crise em seu padrão de reprodução do capital, por outro, uma crise sanitária a partir do avanço da pandemia de COVID-19. A articulação dessas crises e a necessidade do isolamento social geram incertezas na satisfação das necessidades humanas em razão dos recuos nos rendimentos da população e a consequente queda no consumo, e o esgotamento da capacidade familiar de endividamento. A consequência mais imediata nesse cenário é o avanço da insegurança alimentar dada por restrições de renda que dificultam o acesso aos alimentos.
A pandemia global gerada pelo SARS-CoV-2 trouxe à tona as desigualdades sociais, como a ameaça ao Direito Humano à Alimentação Adequada, temática suprimida da agenda do Governo Federal nos últimos anos. O Estado como garantidor da segurança alimentar e nutricional vem perdendo relevância por meio da agenda neoliberal, enfraquecendo o já combalido papel das centrais de abastecimento e dos estoques públicos de alimentos, esfacelando o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e suprimindo de vez as iniciativas de reforma agrária. Não bastasse tamanho arsenal de iniciativas antipopulares, no primeiro dia do governo Jair Bolsonaro o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional foi extinto sumariamente numa clara demonstração da irrelevância da questão alimentar para o Poder Executivo Federal.
O acesso aos alimentos está associado, diretamente, à regularidade da oferta dos produtos alimentares, à disponibilidade de renda nas mãos das pessoas e aos preços praticados no mercado varejista. A esses três fatores somam-se informações, hábitos e práticas alimentares; este arranjo é que determina o que, quanto e quando comprar.
Desde os anos 1980, o principal equipamento de varejo de alimentos é o supermercado. Operando em regime de vendas em escala, o autosserviço capturou a maior parte da demanda da sociedade para esses itens, difundiu novos padrões de consumo, ditou e subverteu práticas alimentares, e se organizou de sorte a atender qualquer segmento social independentemente da renda ou classe. Decorrente desse domínio, a rede capilar de varejo constituída de pequenos estabelecimentos convencionais, feiras livres, padarias e açougues, dentre outros, ou desapareceu ou tornou-se residual 1 no abastecimento da maior parte da população. Os equipamentos tradicionais que persistem tornaram-se uma forma de resistência à tendência à homogeneização dos serviços, convivendo também com a emergência de formas contemporâneas de abastecimento e comercialização mais setorizadas, principalmente de circuitos curtos de alimentos, como as comunidades que sustentam a agricultura (CSAs), de cestas e feiras agroecológicas ou orgânicas, da agricultura urbana e periurbana e de outras formas de articulação entre agricultores e consumidores.
Na esteira do esvaziamento dos sistemas tradicionais de varejo emergiram vazios alimentares, ou em outros termos, territórios urbanos onde vivem populações econômica e socialmente vulneráveis e que já não dispõem de equipamentos de varejo ou feiras para se abastecer. Nesses casos, o acesso fica restrito às lanchonetes e lojas de conveniência sustentadas por vendas de alimentos e comidas inadequadas.
A necessidade do isolamento social afeta diretamente os rendimentos dos trabalhadores e a mobilidade, principalmente nos centros urbanos. Essa situação tende a enfraquecer o pouco que resta da rede capilar de varejo tradicional, contribuindo para a expansão dos vazios alimentares e as consequências a eles associadas, como visto anteriormente.
Dessa forma, a crise sanitária pode reforçar a tendência de aumento do consumo de ultraprocessados no Brasil em relação aos alimentos socialmente referenciados 2,3. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2017-2018 4, utilizando a classificação NOVA 5,6, identificou o aumento da participação dos ultraprocessados no total de calorias determinado pela aquisição alimentar, de 12,6% em 2002-2003 para 18,4% na edição atual da pesquisa, já os alimentos in natura ou minimamente processados passaram de 53,3% da composição para 49,5%. Esses dados vão ao encontro de uma pesquisa recentemente publicada 7, demonstrando que os preços dos alimentos ultraprocessados estão ficando mais baratos e devem igualar o preço dos alimentos in natura ou minimamente processados em 2026. Em 2030, esses pseudoalimentos custarão, pela projeção, R$ 4,34 por quilo e estarão R$ 0,90 mais baratos que o quilo dos alimentos in natura ou minimamente processados.
Entre a segunda quinzena de março e a primeira de abril, mesmo período em que foi intensificado o isolamento social, já podem ser revelados os efeitos da pandemia nos preços dos alimentos no Brasil. De acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo-15 - IPCA-15 (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. https://sidra.ibge.gov.br/home/ipca15, acessado em 01/Mai/2020), no período mencionado o Índice Geral de Inflação marcou -0,01% e a alimentação nos domicílios, 3,14%. No tocante ao universo de alimentos analisados pelo IPCA-15, destaca-se o aumento dos grupos de alimentos com média superior aos dos domicílios, sendo os tubérculos, raízes e legumes em 22,1%, hortaliças e verduras em 11,89%, frutas em 8,84%, sal e condimentos em 5,51%, leites e derivados em 3,77% e cereais, leguminosas e oleaginosas em 3,59%. Observou-se nesse intervalo, por intermédio do índice, o aumento dos preços dos alimentos in natura ou minimamente processados em relação à média dos alimentos em domicílios e em relação aos outros grupos de alimentos da classificação NOVA; e os alimentos ultraprocessados apresentaram uma inflação menor do que a média dos alimentos em domicílio.
O sistema de abastecimento alimentar brasileiro não tem dado sinais de desabastecimento generalizado de produtos, mas a assimetria entre os rendimentos e os preços praticados reforçará uma situação de insegurança alimentar, que não será resultado da falta de alimentos em si, mas da sua forma como comida/mercadoria. Pode-se estabelecer, portanto, a tendência à constituição de hábitos alimentares inadequados por essa assimetria, mas também os ultraprocessados podem se tornar mais presentes na mesa da população em que seus rendimentos são suficientes para a manutenção de sua vida e de seu consumo, por meio da associação destes alimentos à ideia de conforto e prazer, como um alento aos efeitos da pandemia.
A COVID-19 tem relevado a perversidade da gestão do Estado na garantia dos direitos e das necessidades humanas básicas nos últimos anos, e reforçado a ineficiência das políticas neoliberais para o seu enfrentamento, contribuindo para o avanço da inadequação da alimentação e da insegurança alimentar. Em meio à pandemia, as ações do Governo Federal estão aquém das dificuldades que estão sendo enfrentadas pela população brasileira mais vulnerável, como o Auxílio Emergencial 8, cujo montante não assegura as necessidades básicas de moradia, higiene e alimentação. Cabe salientar que a forma como está sendo operacionalizado esse Decreto tem excluído parte da população que não tem acesso aos meios de cadastro ou que possuam dificuldades em realizá-lo. Outros fatores que têm sido noticiados são a dificuldade de mulheres provedoras de família para o recebimento de duas cotas, a demora na análise das informações cadastradas, a dificuldade de cadastramento de pessoas com irregularidades no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e a aglomeração em bancos para o recebimento do benefício. Outras medidas que reforçam esse descompromisso com a manutenção da vida foram a aprovação da Medida Provisória nº 9279 e a tentativa de retomar e aprovar a Medida Provisória nº 90510, que atentam contra os direitos trabalhistas, e a aprovação da Medida Provisória nº 95711, que de forma já tardia e com verbas reduzidas, delonga a execução da compra de alimentos da agricultura familiar por meio do PAA, o que compromete a garantia da venda de agricultores e a segurança alimentar e nutricional de beneficiários que já poderiam estar sendo atendidos por esta política.
Em meio a esse cenário de enfraquecimento do papel do Estado, principalmente do Poder Executivo Federal, movimentos sociais, sindicatos, universidades, partidos políticos, organizações sociais e associações têm reforçado a dimensão da solidariedade em defesa da vida, com base em ações que atendam as necessidades materiais e também de conscientização das medidas de enfrentamento ao vírus e dos direitos das famílias. Ações como pesquisas para a construção de respiradores, a confecção de máscaras de proteção e de álcool em gel têm sido estimuladas nas universidades; campanhas de arrecadação de cestas básicas de alimentos e de itens de higienização para famílias em vulnerabilidade social; a doação de alimentos agroecológicos para famílias, escolas e instituições provindos de áreas da reforma agrária; a doação de marmitas, sopas e cafés da manhã para a população em situação de rua; a doação de leite, alimentos, materiais de higiene e de equipamentos de proteção individual (EPI) para hospitais; a venda de alimentos agroecológicos a preços populares; e o estímulo à participação de CSAs e de cestas de agroecológicas são alguns exemplos que estão sendo cada vez mais comuns em diversas cidades brasileiras.
A solidariedade e a ajuda mútua são ferramentas históricas das relações sociais da periferia e do campesinato. Em tempos de COVID-19 tornaram-se ações essenciais para a mitigação dos efeitos já sentidos desde o início da pandemia. Mesmo que as ações não tenham o alcance dos desafios da população, as ações e a conscientização vão ao encontro da defesa do Direito Humano à Alimentação Adequada e da necessidade de articulação entre a sociedade civil e o Estado, em todos os seus níveis, na construção de políticas públicas e de comitês populares capazes de garantir a segurança alimentar e nutricional, a renda, a saúde e a segurança sanitária, de forma emergencial e continuada.
As crises também demonstram o esgotamento do neoliberalismo e do atual modelo hegemônico do sistema alimentar brasileiro na manutenção da vida e da alimentação, colocando em xeque a comida/mercadoria, cada vez mais cara, globalizada e ultraprocessada, problemas estruturais que só serão solucionados a partir da construção de um sistema alimentar que privilegie as dimensões da soberania e segurança alimentar e nutricional; que reforce as formas tradicionais e as novas formas de abastecimento e comercialização; e que promova uma reeducação alimentar dos comensais em todas as dimensões do comer.