versão impressa ISSN 0101-6083versão On-line ISSN 1806-938X
Arch. Clin. Psychiatry (São Paulo) vol.42 no.3 São Paulo maio/jun. 2015
https://doi.org/10.1590/0101-60830000000051
As visões dos psiquiatras sobre a relação mente-cérebro (RMC) têm marcantes implicações para a clínica e a pesquisa, mas há carência de estudos sobre esse tema.
Avaliar as opiniões dos psiquiatras sobre a RMC e se elas são suscetíveis ou não a mudanças.
Realizamos um levantamento sobre as visões que os psiquiatras possuem sobre a RMC imediatamente antes e após um debate sobre a RMC no Congresso Brasileiro de Psiquiatria de 2014.
Inicialmente, entre mais de 600 participantes, 53% endossaram a visão de que “a mente (o ‘Eu’) é um produto da atividade cerebral”, enquanto 47% discordaram. Além disso, 72% contestaram a visão de que “o universo é composto apenas de matéria”. Após o debate, 30% mudaram de uma visão materialista da mente para uma perspectiva não materialista, enquanto 17% mudaram na direção oposta.
Os psiquiatras se interessam por debates sobre a RMC, não possuem uma visão monolítica sobre o tema e suas opiniões estão abertas a reflexões e mudanças, sugerindo a necessidade de mais estudos em profundidade e de debates rigorosos, mas não dogmáticos sobre o tema.
Palavras-Chave: Relação mente-cérebro; psiquiatria; opinião; levantamento; psiquiatras
Psychiatrists’ views on the mind-brain relationship (MBR) have marked clinical and research implications, but there is a lack of studies on this topic.
To evaluate psychiatrists’ opinions on the MBR, and whether they are amenable to change or not.
We conducted a survey of psychiatrists’ views on the MBR just before and after a debate on the MBR at the Brazilian Congress of Psychiatry in 2014.
Initially, from more than 600 participants, 53% endorsed the view that “the mind (your “I”) is a product of brain activity”, while 47% disagreed. Moreover, 72% contested the view that “the universe is composed only of matter”. After the debate, 30% changed from a materialist to a non-materialist view of mind, while 17% changed in the opposite way.
Psychiatrists are interested in debates on the MBR, do not hold a monolithic view on the subject and their positions are open to reflection and change, suggesting the need for more in-depth studies and rigorous but open-minded debates on the subject.
Key words: Mind-brain relationship; psychiatry; opinion; survey; psychiatrists
A relação mente-corpo ou mente-cérebro (RMC) é uma das mais antigas e desafiadoras questões filosóficas e científicas, possuindo marcantes implicações para a psiquiatria1-4. Contudo, esse tema é pouco discutido na literatura e na formação em psiquiatria3. A despeito de toda a diversidade histórica de tentativas de solução para esse problema, muitos debates contemporâneos tendem a girar em torno de duas posições contrárias, que podem ser brevemente resumidas da seguinte maneira. De um lado, dizem os materialistas, a mente é um processo material ou físico, um produto do funcionamento cerebral. De outro lado, de acordo com as visões não materialistas, a mente é algo diferente do cérebro, podendo existir além dele1. Ambas as posições estão enraizadas em uma longa tradição filosófica, que remonta pelo menos à Grécia Antiga. Assim, enquanto Demócrito defendia a ideia de que tudo é composto de átomos e todo pensamento é causado por seus movimentos físicos5, Platão insistia que o intelecto humano é imaterial e que a alma sobrevive à morte do corpo6.
Esse antagonismo entre fisicalismo e antifisicalismo tem assumido diferentes formas ao longo dos séculos, sendo uma característica constante do pensamento ocidental, e se mantém vivo nos debates contemporâneos7,8. Na realidade, cientistas e filósofos estão longe de resolver o problema mente-cérebro1,8-12. Contudo, a despeito da falta de consenso entre os especialistas e a persistência do problema, tanto publicações acadêmicas como leigas frequentemente apresentam a visão materialista da mente como um fato científico estabelecido que deveria ser aceito por toda pessoa com boa formação, incluindo psiquiatras e cientistas em geral4,8.
Essa atitude se choca com a visão tradicional de ciência como promotora de debates equilibrados e da investigação racional livre, contradizendo, assim, o próprio espírito científico que alguns alegam estar defendendo. Além disso, esse fato tem implicações para a formação tanto em clínica quanto em pesquisa em psiquiatria, posto que o trabalho dos psiquiatras depende de certas suposições sobre a RMC que eles podem tomar como certas, sem que haja uma reflexão adequada. Suposições sobre a RMC influenciam visões e atitudes que se tem sobre a natureza humana em geral (por exemplo: pode-se assumir que somos robôs biológicos determinados por nossos neurônios e nossos genes, que a mente é o aspecto fundamental do ser humano e que de algum modo influencia o cérebro e os genes etc.), o livre-arbítrio (por exemplo: pode-se acreditar que os pacientes têm controle sobre seus pensamentos, sentimentos, sintomas e comportamentos), a etiologia dos transtornos mentais (orgânica/biológica e/ou funcional/psicossocial) e opções de tratamento (ênfase em intervenções biológicas e/ou psicossociais)2-4.
Entretanto, tem havido poucos estudos investigando o posicionamento de cientistas e clínicos em relação à RMC, bem como sobre sua abertura à reflexão e à mudança. Enquanto são escassas as pesquisas de levantamento com estudantes universitários e profissionais de saúde13,14, até onde sabemos não há nenhuma com psiquiatras. O objetivo deste estudo é avaliar as opiniões dos psiquiatras sobre a RMC e se elas são suscetíveis ou não a mudanças.
Realizamos um levantamento relativamente às opiniões, sobre a RMC, dos participantes (majoritariamente psiquiatras) do Congresso Brasileiro de Psiquiatria de 2014, que ocorreu em Brasília, DF, Brasil. Como parte do programa oficial, houve um debate intitulado “Qual é a relação entre a mente e o cérebro? O cérebro produz a mente ou é um instrumento para a manifestação da mente?”. Dois conferencistas (psiquiatras), cada um defendendo uma posição geral sobre a RMC (materialista ou não materialista), foram mediados por um coordenador (psiquiatra) do debate, que durou 2 horas, incluindo um tempo para perguntas da audiência. O debate gerou bastante procura (o auditório de 600 assentos estava lotado) e os participantes responderam às mesmas questões sobre a RMC e a natureza última do universo (Tabela 1) imediatamente antes e após o debate, usando dispositivos sem fio em um sistema de votação interativa.
Tabela 1 Respostas às duas questões logo antes e após o debate sobre RMC
Você acha que a mente (o seu “eu”) é um produto da atividade cerebral? | Você acha que o Universo (tudo o que existe) é composto apenas de matéria (partículas e forças físicas)? | |||
---|---|---|---|---|
Antes % (n) | Após % (n) | Antes % (n) | Após % (n) | |
Sim | 53 (331) | 40 (103) | 28 (181) | 17 (41) |
Não | 47 (298) | 60 (155) | 72 (474) | 83 (195) |
Total (n) | 629 | 258 | 655 | 236 |
A audiência estava dividida antes do debate, com aproximadamente metade concordando com cada posição sobre a RMC e dois terços endossando uma visão não materialista do universo (Tabela 1). Houve também coerência entre as respostas a ambas as questões: somente 6% aceitaram simultaneamente que a mente não é um produto da atividade cerebral e a visão incompatível de que todo o universo é composto apenas de matéria. Além disso, visões materialistas sobre a RMC não implicam necessariamente uma visão materialista do universo, posto que 55% dos acreditam que a mente é um produto do cérebro rejeitaram uma descrição puramente física do universo. Finalmente, quase metade dos psiquiatras brasileiros concordou com a visão de que a mente não é um produto da atividade cerebral.
Dos congressistas que responderam às questões antes e depois do debate, 30% mudaram suas posições de uma perspectiva materialista para uma não materialista da mente e 17% mudaram na direção oposta; 30% mudaram de uma visão materialista do universo para uma visão não materialista e 2% mudaram na direção oposta.
A divisão das posições de psiquiatras brasileiros sobre a RMC em dois blocos de aproximadamente 50% parece refletir as controvérsias acadêmicas em relação ao problema mente-cérebro. Nossos achados estão a meio caminho entre estudantes universitários escoceses (67% afirmaram que mente e cérebro são coisas separadas) e profissionais de saúde belgas (40%)13.
Os congressistas estavam não apenas interessados na discussão, mas também suscetíveis à reflexão e à mudança de opinião com base nos argumentos apresentados durante o debate. Estudos com universitários nos Estados Unidos encontraram que a apresentação de explicações fortemente mecanicistas da mente aumenta a aceitação, por eles, de visões materialistas da RMC14,15. Por outro lado, mostrar os limites e a lacuna explicativa (explanatory gap) em neurociência aumenta a aceitação dos estudantes de visões não materialistas da mente15. Vários participantes vieram nos procurar após o debate e admitiram que nunca tinham pensado com profundidade sobre a RMC ou mesmo ouvido muitos dos argumentos apresentados durante o debate. Alguns nos disseram que o debate lhes causou profunda impressão.
Uma limitação do nosso estudo é que nem todos os participantes eram psiquiatras, alguns provavelmente eram estudantes de Medicina ou outros profissionais de saúde mental. Contudo, posto que em torno de 85% dos participantes do congresso eram médicos, especialmente psiquiatras, é muito provável que a maioria da nossa amostra seja composta de psiquiatras. Houve também uma considerável perda de participantes próximo ao fim do debate. Como o debate durou 2 horas e a última parte foi dedicada a questões feitas pelo público, várias pessoas deixaram o auditório durante os últimos 30 minutos. Contudo, para minimizar vieses, apenas analisamos dados de mudança de opinião dos participantes que responderam às mesmas questões antes e após o debate. Finalmente, apesar do tamanho considerável da amostra, não está claro o quanto ela representa as posições dos psiquiatras brasileiros como um todo.
Vários aspectos deste estudo merecem destaque. Até onde sabemos, é o primeiro levantamento já feito sobre as visões de psiquiatras em relação à RMC, além de contar com uma ampla amostra coletada no terceiro maior congresso de psiquiatria do mundo. Graças à tecnologia do sistema de votação interativo sem fio, foi possível não apenas identificar as posições dos psiquiatras sobre a RMC, mas também realizar um experimento natural sobre o impacto de expor um amplo e qualificado grupo de psiquiatras à apresentação e discussão das duas principais visões em relação à RMC, algo nunca feito anteriormente.
O presente estudo mostrou que cerca da metade dos psiquiatras aceitava uma visão materialista da mente e quase a metade deles tinha uma visão não materialista. Setenta e dois por cento endossaram uma visão não materialista do universo. Nossos dados indicam que os psiquiatras estão interessados em discussões sobre a RMC, a despeito da baixa frequência de tais debates na literatura e na formação em psiquiatria. Ficou claro que os psiquiatras não apresentam uma visão monolítica sobre a RMC e que discussões podem fomentar o pensamento crítico sobre o tema, levando à consolidação ou à mudança de opinião. Contudo, para fomentar o pensamento crítico, é necessário mais do que apresentações simplistas e caricatas da RMC, como se esta fosse um problema já resolvido, abrindo o debate , assim, para diferentes visões e para os desafios que eles colocam à nossa compreensão científica da natureza humana.