versão impressa ISSN 2359-4802versão On-line ISSN 2359-5647
Int. J. Cardiovasc. Sci. vol.30 no.5 Rio de Janeiro set./out. 2017
http://dx.doi.org/10.5935/2359-4802.20170066
O uso de tabaco e a hipertensão arterial sistêmica (HAS) são as principais causas de doenças em todo o mundo. Juntos, eles causaram globalmente 15,4 milhões de mortes preveníveis em 20121 e 13,3% de anos de vida ajustados por incapacidade (disability-adjusted life years, DALY) em 2010.2 O uso do tabaco é definido como o uso corrente de qualquer produto de tabaco para fumo ou não.3 Há muitas formas de tabaco sem fumaça (TSF) no mundo e tem sido relatado que o uso do tabaco aumenta o risco de doença cardíaca coronariana,4 acidente vascular cerebral,5 síndrome metabólica,6 diabetes tipo 2 (DT2)7 e câncer de orofaringe.8
A prevalência de uso de TSF varia de 2% a 40%, dependendo da região mundial.9 Uma alta prevalência de uso de TSF (38%) tem sida descrita na região dos Andes na Venezuela. A prevalência foi descrita como sendo maior em homens do que mulheres (58% versus 18%, respectivamente, p < 0,0001) e aumentou com a idade.10 O chimó é a preparação de TSF mais comum nesta região e é composto por folha de tabaco, bicarbonato de sódio, açúcar mascavo, cinzas da árvore mamoncillo (Melicocca bijuga) e aromatizante de baunilha e anis. Os ingredientes variam de acordo com a região venezuelana. Uma pequena quantidade de chimó é colocada entre os lábios ou bochecha e a gengiva e mantido por algum tempo, normalmente 30 minutos. A mistura de chimó e saliva é então cuspida.11
A relação entre uso de TSF e HAS não é inteiramente compreendida. Na Suécia, o uso de TSF não é banido como ocorre em outros países europeus e tem uma maior taxa entre os homens (27,2%).12 Em um estudo prospectivo observacional, Hergens et al.5 relataram um risco 36% maior de HAS entre usuários suecos de rapé (feito a partir de folhas de tabaco moídas ou pulverizadas) comparados com não usuários. Em outro estudo de coorte utilizando dados do Swedish Annual Level-of-Living Survey, Johansson et al.13 não observaram diferença nas taxas de incidência de HAS ajustada por idade entre indivíduos em uso diário de rapé e não usuários de tabaco. Além disso, indivíduos com DM2 são sensíveis à nicotina através de receptores nicotínicos de acetilcolina (nAChRs) neuronais,14,15 o que pode prejudicar a ação da insulina na presença, mas não na ausência de DM2.16
A prevalência de HAS na região dos Andes na Venezuela é elevada (25,0%)17 e semelhante à encontrada na cidade de Barquisimeto (24,7%),18 localizada na região oeste do país e identificada como tendo a segunda maior prevalência de HAS de acordo com o estudo Cardiovascular Risk Factor Multiple Evaluation in Latin America (CARMELA), quase o dobro da prevalência geral da América Latina (16,3%).18 Dadas as dimensões globais da HAS e do uso de tabaco, juntamente com a elevada prevalência de HAS e uso chimó na região dos Andes na Venezuela, o objetivo fundamental deste estudo foi compreender as relações e interações entre HAS, uso do tabaco, DM2 e outros fatores de risco.
Entre 2013 e 2014, um total de 1.938 indivíduos com idade de 20 anos ou mais foram atendidos consecutivamente em um centro médico localizado em Timotes na região dos Andes na Venezuela. Timotes é composta por uma população essencialmente agrícola na região andina da Venezuela, tem 18.179 habitantes, está localizada a uma altitude de 2.025 metros e apresenta uma temperatura média anual de 16 °C. Os participantes do estudo responderam a um questionário. Informações sobre a idade, sexo, história pessoal de DM2, história familiar e pessoal de HAS e uso de tabaco foram obtidas. O uso de chimó foi questionado e as possíveis respostas estão apresentadas na Tabela 1. As medidas antropométricas foram também obtidas. O peso foi medido com os sujeitos vestindo o mínimo possível de roupas e sem sapatos, com uso de uma balança calibrada (OMRON® HBF-510LA; Omron Healthcare, Inc., 2011, Illinois, EUA). A altura foi medida com uma fita métrica fixada na parede. O índice de massa corporal (IMC, kg/m2) foi calculado. A pressão arterial (PA) foi medida duas vezes com um dispositivo automatizado (OMRON® HEM-907XL; Omron Healthcare, Inc., 2007, Illinois, EUA)19 colocado no braço direito ao nível do coração, com o indivíduo em posição sentada e após 5 minutos de repouso. Todos os sujeitos assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido para a participação.
Tabela 1 Questionário Sobre o Uso de Tabaco sem Fumaça
Perguntas | Respostas |
---|---|
Você já usou tabaco sem fumaça, tais como chimó, tabaco de mascar, ou snus? | Sim, eu uso atualmente |
Sim, mas não usei nos últimos 12 meses | |
Não, eu nunca usei | |
Número de anos de uso | _________ anos |
Frequência de uso | Diariamente |
Semanalmente | |
Menos do que semanalmente |
A HAS foi definida como uma PA sistólica ≥ 140 mmHg, PA diastólica ≥ 90 mmHg, ou uso atual de medicamentos anti-hipertensivos.20 O uso de TSF foi definido como um consumo diário ou semanal de chimó durante os últimos 12 meses. O DM2 foi definido com base em autorrelato.
Todos os cálculos foram realizados com o programa SPSS 20 (IBM Corp., 2011, Armonk, NY, EUA). Os dados de variáveis contínuas são apresentados como média ± desvio padrão. Após a avaliação da normalidade, diferenças entre os valores médios foram avaliadas pelo teste t de Student não pareado. As frequências são apresentadas como taxas de prevalência e intervalos de confiança de 95% (IC95%). O teste do qui-quadrado foi aplicado para comparar as diferentes frequências. Foi realizada regressão logística para estimar os fatores de risco associados à HAS. A significância estatística foi considerada ao nível alfa de p < 0,05.
O estudo incluiu 1.938 adultos com idade média de 49,2 anos, 59,5% do sexo feminino, 38,9% com HAS, 23,2% usuários de TSF e 11,6% com DM2. Um terço dos indivíduos com DM2 eram usuários TSF (Tabela 2). Os sujeitos com DM2 que eram usuários de TSF apresentaram valores mais baixos de frequência cardíaca, PA sistólica e IMC, bem como uma menor frequência de HAS quando comparados a não usuários de TSF. Em indivíduos sem DM2, o uso de TSF foi mais frequente em homens e em indivíduos mais velhos. Além disso, entre participantes sem DM2, a frequência cardíaca foi mais baixa entre usuários do que não usuários de TSF.
Tabela 2 Características dos sujeitos
Diabetes tipo 2 | Sem diabetes tipo 2 | |||
---|---|---|---|---|
Tabaco sem fumaça | Tabaco sem fumaça | |||
Usuários | Não usuários | Usuários | Não usuários | |
Total: n | 68 | 157 | 381 | 1332 |
Sexo masculino (%) | 51,5 | 40,1 | 55,6** | 35,7 |
Idade (anos) | 61,9 ± 9,6 | 62,6 ± 13,8 | 50,0 ± 17,7** | 46,7 ± 16,9 |
Frequência Cardíaca | 77,8 ± 11,7* | 82,2 ± 13,2 | 74,3 ± 13,9* | 78,6 ± 14,3 |
PAS (mmHg) | 129,1 ± 22,8* | 136,6 ± 25,1 | 126,9 ± 20,6 | 126,3 ± 20,6 |
PAD (mmHg) | 76,2 ± 12,2 | 78,7 ± 12,8 | 78,2 ± 12,4 | 79,0 ± 12,3 |
IMC (kg/m2) | 25,8 ± 4,2** | 28,5 ± 4,8 | 27,5 ± 4,7 | 27,9 ± 5,1 |
Hipertensão na Família (%) | 52,9 (41,04 - 64,76) | 51,0 (43,18 - 58,82) | 50,4 (45,38 - 55,42) | 54,7 (52,03 - 57,37) |
Sobrepeso/Obesidade (%) | 61,8 (50,25 - 73,35) | 74,5 (67,68 - 81,32) | 69,8 (65,19 - 74,41) | 70,2 (67,74 - 72,66) |
Hipertensão (%) | 50,0 (38,12 - 61,88)* | 69,4 (62,19 - 76,61) | 33,3 (28,57 - 38,03) | 36,3 (33,72 - 38,88) |
Cigarro Atual (%) | 4,4 (0,47 - 9,27) | 4,5 (1,26 - 7,74) | 5,5 (3,21 - 7,79) | 7,9 (6,45 - 9,35) |
As variáveis contínuas são expressas como média ± desvio padrão (DP).
As frequências são expressas como porcentagens (intervalo de confiança de 95%).
*p < 0,05;
**p < 0,0001 indicam diferenças entre usuários e não usuários de TSF analisadas com o teste t de Student para médias e teste do qui-quadrado para frequências. PAS: Pressão arterial sistólica; PAD: Pressão arterial diastólica; IMC: índice de massa corporal. Sobrepeso/Obesidade: IMC ≥ 25 kg/m2.
O uso de TSF mostrou uma relação significativa com a HAS em indivíduos com DM2 com idade acima de 50 anos (Tabela 3). Neste grupo, usuários de TSF apresentaram uma frequência 69% mais baixa de HAS quando comparados a não usuários de TSF. A associação entre uso de TSF e menor frequência de HAS permaneceu significativa após as variáveis terem sido ajustadas de acordo com o IMC (Figura 1). A regressão logística ajustada pela frequência cardíaca, idade, DM2, sobrepeso/obesidade e história familiar de HAS mostrou que o uso de TSF esteve associado com uma frequência 30% menor de HAS (razão de chances = 0,70, IC 95% 0,55 - 0,90) (Tabela 4).
Tabela 3 Relação entre o uso de TSF e hipertensão arterial em indivíduos com diabetes tipo 2 com idade acima de 50 anos*
Hipertensão | Normotensão | OR (IC95%) | ||
---|---|---|---|---|
DM2 | Tabaco sem Fumaça | |||
Presente | Usuários de TSF | 23,2 (15,80 - 30,60) | 49,2 (36,85 - 61,55) | 0,31 (0,16 - 0,59) |
Não usuários de TSF | 76,8 (69,40 - 84,20) | 50,8 (38,45 - 63,15) | ||
Ausente | Usuários de TSF | 21,4 (17,34 - 25,46) | 27,3 (22,46 - 32,14) | 0,72 (0,51 - 1,02) |
Não usuários de TSF | 78,6 (74,54 - 82,66) | 72,7 (67,86 - 77,54) |
*Sujeitos mais jovens do que 50 anos mostraram uma relação não significativa. Os dados são expressos como percentagem (intervalo de confiança de 95% [IC 95%]). OR: Razão de chances (odds ratio); TSF: Tabaco sem fumaça; DM2: Diabetes tipo 2.
Figura 1 Frequência da hipertensão arterial de acordo com o estado nutricional e o uso de tabaco sem fumaça. Obesidade: Índice de massa corporal (IMC) ≥ 30 kg/m2; Sobrepeso: IMC de 25 a 29,9 kg/m2; Peso Normal: IMC < 25 kg/m2. p: diferenças entre usuários e não usuários de tabaco por meio do teste do qui-quadrado.
Tabela 4 Fatores de risco associados à hipertensão*
OR | IC 95% | |
---|---|---|
Tabaco sem fumaça (chimó) | 0,70 | 0,55 - 0,90 |
Frequência cardíaca | 1,01 | 1,01 - 1,01 |
Idade | 1,06 | 1,05 - 1,06 |
Diabetes tipo 2 | 1,62 | 1,17 - 2,22 |
Sobrepeso/Obesidade | 1,65 | 1,30 - 2,09 |
Hipertensão na Família | 2,19 | 1,75 - 2,70 |
* Regressão logística múltipla. |
OR: Razão de chances (odds ratio); IC 95%: Intervalo de confiança. Sobrepeso/Obesidade: IMC ≥ 25 kg/m2.
O uso de chimó, uma forma de TSF frequentemente consumida na região dos Andes na Venezuela, está associado a valores mais baixos de PA, frequência cardíaca, IMC e HAS em indivíduos com DM2 com idade acima de 50 anos. Este é o primeiro estudo mostrando uma associação entre chimó e taxas mais baixas de HAS e a razão para esta associação contraintuitiva é desconhecida. Este resultado alimenta a controvérsia em torno do uso de TSF e HAS e pode ser devido a um ou mais fatores.
A Índia tem uma alta prevalência de uso de TSF.21 Em um estudo transversal naquele país, avaliando 443 homens com mais de 15 anos de idade em um cenário rural, a prevalência de uso exclusivo de TSF (sem tabaco fumado) foi de 21%.22 O grupo que utilizou apenas TSF apresentou valores mais elevados de PA diastólica e uma prevalência mais elevada de HAS diastólica em comparação a indivíduos que não faziam uso de TSF, ou com usuários de TSF e tabaco fumado.22 A associação entre a PA elevada e uso de TSF pode estar relacionada aos níveis de nicotina e concentrações de sódio na composição do TSF. Este resultado pode ser explicado pelo fato de alguns produtos de TSF conterem grandes quantidades de sódio como parte do bicarbonato de sódio, tampão alcalino necessário para facilitar a absorção da nicotina. O excesso de sódio (excesso de 30 a 40 mEq de sódio por dia) poderia aumentar a PA.23 No entanto, em 1.061 jogadores profissionais de beisebol, o uso de TSF não esteve relacionado com PA mais elevada em comparação com indivíduos que não faziam uso de TSF.24 No estudo mencionado acima, a dosagem sérica de nicotina e cotinina (o principal metabólito da nicotina) foi avaliada. Os participantes que utilizaram rapé apresentaram níveis séricos de cotinina e nicotina mais elevados do que aqueles que utilizaram o tabaco de mascar. Os participantes com níveis mais elevados de nicotina apresentaram PA diastólica mais elevada.24 Assim, o teor de sódio e o teor e absorção de nicotina podem variar em diferentes preparações de TSF, potencialmente conferindo diferentes efeitos sobre a PA.
Outra possível explicação para o nosso resultado seria a ocorrência de HAS mascarada em usuários de tabaco. Este efeito foi relatado anteriormente em fumantes, mas não em usuários de TSF. Os fumantes tendem a ter uma PA ambulatorial diurna elevada (quando é mais provável que estes indivíduos fumem) em comparação com suas PAs de consultório (quando é menos provável que fumem).25 O Second Australian National Blood Pressure Study também demonstrou que o tabagismo prediz a HAS mascarada.26
O efeito do uso de TSF sobre o nível da PA, observado no presente estudo, foi significativo apenas em sujeitos com DM2. A sensibilidade à nicotina no DM2 foi avaliada comparando os efeitos da infusão aguda de nicotina em pacientes com e sem diabetes.16 A infusão de nicotina não afetou a quantidade de insulina necessária para manter os níveis de glicose em voluntários saudáveis, porém níveis mais elevados de insulina foram necessários em pacientes com diabetes, indicando que pacientes com DM2 são mais suscetíveis a um efeito negativo da nicotina sobre a sensibilidade à insulina.16
Em fumantes, a nicotina aumenta agudamente o gasto de energia e pode reduzir o apetite.27 Esse efeito poderia explicar a tendência apresentada por fumantes de terem peso corporal mais baixo do que não fumantes, além do ganho de peso que geralmente ocorre após a cessação do tabagismo.28 Neste estudo, sujeitos com DM2 que usavam TSF tinham IMC mais baixo que os que não a usavam TSF, resultados semelhantes aos observados nos tabagistas. Este estudo encontrou também uma frequência cardíaca mais baixa em usuários de TSF, que pode também ter sido ocasionada pela exposição a uma atividade cronotrópica negativa de alguns componentes do chimó.
O presente estudo tem algumas limitações. Em primeiro lugar, o chimó na Venezuela é produzido principalmente através de métodos tradicionais que geram muitas formulações diferentes para venda, sem doses fixas, e portanto, a dosagem não pode ser caracterizada como ocorre com cigarros. Além disso, a maioria dos componentes derivados da folha de tabaco e suas respectivas doses nas preparações de chimó é desconhecida. Segundo, as concentrações sanguíneas de nicotina ou cotinina não foram avaliadas. Terceiro, não foi realizado um exame oral para avaliar o uso de TSF. Por último, o DM2 foi diagnosticado apenas por autorrelato.
Este estudo demonstra pela primeira vez uma associação negativa entre o uso de chimó e HAS. Muitas formas de TSF têm sido associadas (com evidências contraditórias em alguns casos) com doença cardiovascular, câncer e alterações metabólicas. A base biológica dos achados deste estudo permanece desconhecida. Embora o uso de TSF não tenha sido associado a uma maior frequência de HAS neste estudo, enfatiza-se que o uso de TSF não é uma prática saudável em pacientes com DM2 e, mais importante ainda, o TSF não deve ser interpretado como um meio para reduzir o risco de HAS. Os efeitos da chimó são complexos, em geral não saudáveis e, na prática, um problema de saúde pública que requer mais estudo científico.