versão impressa ISSN 0066-782Xversão On-line ISSN 1678-4170
Arq. Bras. Cardiol. vol.107 no.5 São Paulo nov. 2016 Epub 27-Out-2016
https://doi.org/10.5935/abc.20160147
O mecanismo da disfunção vascular induzido pelo consumo de etanol não é totalmente compreendido. Justifica-se, assim a identificação de mecanismos bioquímicos e moleculares que poderiam explicar tais efeitos.
Investigar se a ingestão aguda de etanol ativa a via vascular RhoA/Rho quinase em artérias de resistência e o papel das espécies reativas de oxigênio (ERO) derivadas da NAD(P)H oxidase nessa resposta. Nós também avaliamos se ocorreu translocação da p47phox e ativação da NAD(P)H oxidase após o consumo agudo de etanol.
Ratos Wistar machos foram tratados com etanol via oral (1g/kg, p.o. gavagem) ou água (controle). Alguns ratos foram tratados com vitamina C (250 mg/kg, p.o. gavagem, 5 dias) antes de água ou etanol. O leito arterial mesentérico (LAM) foi coleado 30 min após a administração de etanol.
A vitamina C preveniu o aumento da geração de ânion superóxido (O2 -) e lipoperoxidação no LAM induzidos pelo etanol. A atividade da catalase (CAT), da superóxido dismutase (SOD) e os níveis de glutationa reduzida(GSH), nitrato e peróxido de hidrogênio (H2O2) não foram afetados após a ingestão aguda de etanol. A vitamina C e o 4-metilpirazol preveniram o aumento na geração de O2 - induzido pelo etanol em cultura de células do músculo liso vascular (CMLV). O etanol não afetou a fosforilação da proteína quinase B (Akt) e nem da óxido nítrico sintase endotelial (eNOS) (nos resíduos de Ser1177 ou Thr495) ou a reatividade vascular do LAM. A vitamina C preveniu o aumento da razão membrana:citosol da p47phox e a expressão da RhoA no LAM de rato induzido pelo etanol.
A ingestão aguda de etanol induz a ativação da via RhoA/Rho quinase por um mecanismo que envolve a geração de ERO. Nas artérias de resistência, o etanol ativa NAD(P)H oxidase induzindo a translocação da p47phox por um mecanismo redox-sensível.
Palavras-chave: Etanol; NADPH Oxidase; Ratos; Estresse Oxidativo; Ácido Ascórbico; Proteína rhoA de Ligação do GTP
The mechanism underlying the vascular dysfunction induced by ethanol is not totally understood. Identification of biochemical/molecular mechanisms that could explain such effects is warranted.
To investigate whether acute ethanol intake activates the vascular RhoA/Rho kinase pathway in resistance arteries and the role of NAD(P)H oxidase-derived reactive oxygen species (ROS) on such response. We also evaluated the requirement of p47phox translocation for ethanol-induced NAD(P)H oxidase activation.
Male Wistar rats were orally treated with ethanol (1g/kg, p.o. gavage) or water (control). Some rats were treated with vitamin C (250 mg/kg, p.o. gavage, 5 days) before administration of water or ethanol. The mesenteric arterial bed (MAB) was collected 30 min after ethanol administration.
Vitamin C prevented ethanol-induced increase in superoxide anion (O2-) generation and lipoperoxidation in the MAB. Catalase and superoxide dismutase activities and the reduced glutathione, nitrate and hydrogen peroxide (H2O2) levels were not affected by ethanol. Vitamin C and 4-methylpyrazole prevented the increase on O2- generation induced by ethanol in cultured MAB vascular smooth muscle cells. Ethanol had no effect on phosphorylation levels of protein kinase B (Akt) and eNOS (Ser1177 or Thr495 residues) or MAB vascular reactivity. Vitamin C prevented ethanol-induced increase in the membrane: cytosol fraction ratio of p47phox and RhoA expression in the rat MAB.
Acute ethanol intake induces activation of the RhoA/Rho kinase pathway by a mechanism that involves ROS generation. In resistance arteries, ethanol activates NAD(P)H oxidase by inducing p47phox translocation by a redox-sensitive mechanism.
Keywords: Ethanol; NADPH Oxidase; Rats; Oxidative Stress; Ascorbic Acid; rhoAGTP-Binding Protein
O consumo excessivo de etanol, frequentemente referido na literatura como "binge drinking", é considerado um fator de risco para o sistema cardiovascular. Binge drinking está associado a um risco aumentado para eventos cardiovasculares, tais como aterosclerose, acidente vascular cerebral e infarto do miocárdio1-3. O mecanismo exato que envolve a disfunção cardiovascular associada com o consumo excessivo de álcool não foi totalmente elucidado, mas alterações da função vascular parecem exercer um papel fundamental4-6.
Um mecanismo importante pelo qual o etanol causa danos vasculares é pelo aumento da geração de espécies reativas de oxigênio (ERO). A formação de ânion superóxido (O2-) e peróxido de hidrogênio (H2O2) está associada à disfunção vascular.7,8 A enzima nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato, [NAD(P)H] oxidase, é a principal fonte de ERO nas células endoteliais e nas células do músculo liso vascular (CMLV)9, sendo um fator essencial na disfunção vascular induzida por etanol10. A ativação da [NAD(P)H] oxidase é um processo complexo, mas a translocação da subunidade p47phox para a membrana, com posterior associação com o citocromo b558, é uma etapa decisiva para a ativação da enzima.11 Achados recentes do nosso laboratório mostraram que a ingestão aguda de etanol aumenta a geração de ERO derivados da NADPH oxidase em artérias de resistência.12
ERO influenciam na ativação de diversas vias de sinalização, incluindo as proteínas quinases ativadas por mitógenos (MAPK) e a RhoA/Rho quinase, consideradas importantes mediadores de disfunção vascular. A ativação de vias redox-sensíveis regula o crescimento de células vasculares, a inflamação e a contração13. Um dado importante é que a ingestão aguda de etanol induz a ativação da [NAD(P)H] oxidase e a fosforilação de MAPK em artérias de resistência12. Além disso, o O2- é responsável pela rápida inativação do óxido nítrico (NO)14 e, alterações na síntese e/ou biodisponibilidade do NO estão envolvidas no desenvolvimento de eventos vasculares clinicamente significantes.
No presente estudo, buscamos investigar se a ingestão aguda de etanol ativa a via da RhoA/Rho quinase em células vasculares de artérias de resistência, e o papel das ERO derivadas da [NAD(P)H] oxidase nessa resposta. Além disso, avaliamos a translocação da p47phox para a ativação da [NAD(P)H] oxidase induzida por etanol, e o efeito das ERO induzidas pelo etanol sobre a produção de NO. O ácido ascórbico (vitamina C) foi o antioxidante escolhido, uma vez que, segundo estudos anteriores15,16, reduz o estresse oxidativo na vasculatura.
Dose de 1g/kg de etanol (10mL/kg de etanol a 13% diluído em água) foi administrado por gavagem a 20 ratos Wistar machos (200-250g) mantidos em jejum por 12 h.12,16 Aplicando esse modelo de administração, os níveis sanguíneos de etanol mantêm-se no intervalo entre 20 e 24 mmoL/L12,16,17. Ratos do grupo controle (n=20) receberam água (gavagem). Alguns animais foram tratados com vitamina C na dose de 250 mg/kg (gavagem) por 5 dias,16,18,19 antes da administração de água (n=18) ou etanol (n=19). O tamanho da amostra foi baseado em estudos prévios.12,16,17 O leito arterial mesentérico (LAM) foi isolado 30 min após a administração de etanol.17 Todos os experimentos estavam de acordo com os princípios e diretrizes do comitê de ética em uso de animais da Universidade de São Paulo (#10.1.235.53.0).
A produção de O2- no LAM de ratos foi medida pelo método da quimioluminescência da lucigenina, conforme descrito anteriormente.12 A luminescência foi medida em um luminômetro (Orion II Luminometer, Berthold detection systems, Pforzheim, Germany), e os resultados expressos em unidades relativas de luz (URL) por mg de proteína. As concentrações de proteína nas amostras foram medidas pelo método de Lowry (Bio-Rad Laboratories, Hercules, CA, USA).
Para medir a concentração de H2O2 no LAM de rato, foi utilizado o Amplex red® (#A22188, Invitrogen, Carlsbad, CA, USA), conforme descrito previamente.20 Os resultados foram expressos em nmol por mg de proteína.
A concentração basal de nitrato no sobrenadante do homogeneizado de LAM foi avaliado usando um analisador de óxido nítrico Sievers (NOA™ 280, Sievers Instruments, CO, USA), conforme descrito previamente.12 Os resultados foram expressos em µmol/L por mg de proteína.
A atividade da SOD no LAM de rato foi avaliada usando um kit disponível comercialmente (#19160, Sigma-Aldrich, St. Louis, MO, USA). A atividade da SOD foi expressa como taxa de inibição (%) / mg de proteína. A atividade da CAT foi determinada conforme descrito anteriormente.12 Uma unidade de CAT foi definida como a quantidade de enzima necessária para decompor 1 µmol de H2O2/min.
A concentração de GSH no LAM foi determinada conforme descrito anteriormente .12 Os resultados foram expressos em µg GSH por mg de proteína.
A concentração de TBARS no LAM foi determinada utilizando-se um kit disponível comercialmente (#10009055, Cayman Chemical, Ann Arbor, MI, USA). Os resultados foram expressos em nmol por mg de proteína.
O LAM de rato foi homogeneizado em um tampão de lise composto por 50 mmol/L Tris-HCl (pH 7,4), NP-40 (1%), desoxicolato de sódio (0,5%) e SDS (0,1%). As amostras foram centrifugadas a 5000 × g por 10 min (4ºC). Quarenta microgramas de proteína foram separadas por eletroforese em um gel de poliacrilamida a 10%, e transferida para uma membrana de nitrocelulose. Leite desnatado (5%) diluído em solução salina tamponada (Tris) com Tween 20 foi usado para bloquear sítios de ligação não específicos (1 h a 24ºC). As membranas foram incubadas por uma noite a 4ºC com os seguintes anticorpos primários: p-eNOS (Ser1177) (diluído 1:1000, 9571, Cell Signaling, Danvers, MA, USA), p-eNOS (Thr495) (diluído 1:1000, 9574, Cell Signaling), eNOS total (diluído 1:1000, 9572, Cell Signaling), P- proteína quinase B (P-Akt) (Ser473) (diluído 1:1000, 4058, Cell Signaling) e Akt total (diluído 1:1000, 9272, Cell Signaling). Em seguida, as membranas foram incubadas com anticorpos secundários por 90 min à temperatura ambiente e os sinais foram revelados pela exposição das membranas à uma solução de quimioluminescência e quantificados densitometricamente. Os resultados foram expressos pela razão entre proteínas não fosforiladas / proteínas totais.
O LAM de rato foi homogeneizado em tampão de lise contendo Tris-HCl 50 mmol/L (pH 7,4), EDTA 2,5 mmol/L, EGTA 5 mmol/L, e inibidor de protease. Em seguida, centrifugado a 100 000 × g por 1 h, a 4ºC. O sobrenadante (fração citosólica) foi coletado. O pellet, contendo a fração com partículas, foi ressuspenso em tampão de lise contendo Triton X-100 1%, e centrifugado a 10 000 × g por 10 min a 4 ºC. As membranas foram então incubadas com anticorpos específicos para RhoA (diluído 1:1000, sc-418, Santa Cruz Biotechnology, Dallas, TX, USA) ou p47phox (diluído 1:500, Santa Cruz Biotechnology), como publicado anteriormente.21
Ratos machos Wistar foram anestesiados com uretana (1,25 g/kg, i.p., Sigma-Aldrich, St. Louis, MO, USA), e sacrificados por exsanguinação da aorta. Segmentos do terceiro ramo das artérias mesentéricas, medindo aproximadamente 2 mm de comprimento, foram colocados em um miógrafo para pequenos vasos (Danish Myo Tech, Model 620M, A/S, Århus, Denmark), conforme descrito previamente.22 As artérias foram mantidas em solução Krebs Henseleit [(em mmol/L) NaCl 130, KCl 4,7, KH2PO4 1,18, MgSO4 1,17, NaHCO3 14,9, glicose 5,5, EDTA 0,03, CaCl2 1,6)], temperatura constante de 37°C, pH 7,4, e gaseificadas com uma mistura de O2 95% e CO2 5%. Curvas dose-resposta à fenilefrina (0,1 nmol/L-100 µmol/L) foram obtidas em artérias com endotélio intacto e na ausência de endotélio. As curvas para acetilcolina (0,1 nmol/L-10 µmol/L) foram obtidas nas artérias com endotélio intacto, pré-contraídas com fenilefrina (1 µmol/L). Curvas dose-resposta foram ajustadas com um programa não linear de ajuste de curvas (Graph Pad Prism 3.0; GraphPad Software Inc., San Diego, CA) e dois parâmetros farmacológicos foram analisados: pD2 (logaritmo negativo da concentração molar da droga produzindo 50% da resposta máxima) e Emax (efeito máximo induzido pelo agonista).
CMLV derivadas do LAM de ratos machos foram isoladas e caracterizadas como descrito anteriormente.23 Foram utilizadas células nas séries 4 a 8 isoladas de pelo menos 5 culturas diferentes de células primárias. As CMLV foram estimuladas com etanol (50 mmol/L, 5 min) na ausência e na presença de apocinina, um inibidor da NAD(P)H oxidase (10 µmol/L, 30 min), tiron (sequestrador de O2-, 10 µmol/L, 30 min), 4-metilpirazol (4-MP) (10 µmol/L, 30 min), um inibidor seletivo de álcool desidrogenase (ADH,) ou vitamina C (100 µmol/L, 24 h). A concentração e o período de exposição ao etanol e aos antioxidantes foram baseados em estudos prévios.12,24 A produção de ânion superóxido foi medida por quimioluminescência dependente de lucigenina como descrito acima, e expressa em porcentagem de aumento dos valores basais.
Os dados foram representados pela média ± erro padrão da média. A comparação entre os grupos foi realizada por análise de variância (ANOVA), seguida pelo teste de comparação múltipla de Bonferroni. Os dados apresentavam distribuição normal. Os resultados dos testes estatísticos com p<0,05 foram considerados significativos. As análises foram realizadas pelo programa Graph Pad Prism 3.0 (GraphPad Software Inc., San Diego, CA, USA).
Conforme descrito previamente,12,16,17 neste modelo de administração de etanol, os níveis sanguíneos de etanol variam de 20 a 24 mmol/L, os quais encontram-se dentro dos valores encontrados na corrente sanguínea humana após um episódio de binge drinking.25
Para verificar o efeito da ingestão aguda de etanol sobre a geração de ERO e peroxidação lipídica no LAM de rato, foi avaliada a geração de O2 - e H2O2, bem como a concentração de TBARS. A quimioluminescência dependente de lucigenina foi significativamente maior no LAM de ratos tratados com etanol, e o tratamento com vitamina C preveniu essa resposta (Figura 1A). Não foram observadas mudanças nos níveis de H2O2 após tratamento com etanol (Figura 1B). A vitamina C preveniu o aumento na concentração de TBARS induzido por ingestão aguda de etanol (Figura 1C). Uma vez que o estresse oxidativo está associado com menor biodisponibilidade de NO, nós avaliamos o efeito da ingestão aguda de etanol sobre a concentração de nitrato no LAM de rato. O tratamento com etanol não alterou os níveis basais de nitrato no LAM de rato (Figura 1D). Para avaliar o efeito do etanol sobre o estado antioxidante vascular, foram determinadas as atividades da SOD e CAT, bem como as concentrações de GSH no LAM de rato. Nossos resultados mostraram que a ingestão aguda de etanol não alterou as atividades da SOD e CAT (Figuras 2A e B), ou os níveis de GSH (Figura 2C).
Figura 1 Efeitos da ingestão aguda de etanol sobre os níveis de O2-, H2O2 e nitrato no leito arterial mesentérico de rato. Os níveis vasculares de O2- (A) e nitrato (D) foram determinados por quimioluminescência. Os níveis vasculares de H2O2 foram determinados por fluorimetria (B). Substâncias reativas ao ácido tiobarbitúrico (TBARS) foram medidas por colorimetria (C). Os resultados foram apresentados em média ± erro padrão da média de 6-9 experimentos. *Em comparação aos grupos controle, controle + vitamina C e etanol + vitamina C (p<0,05, ANOVA).
Figura 2 Efeitos da ingestão aguda de etanol sobre as atividades das enzimas superóxido dismutase (SOD) e catalase (CTA) e os níveis de glutationa reduzida (GSH) no leito arterial mesentérico de rato. As atividades da SOD e CAT (A e B) e os níveis de GSH (C) foram determinados colorimetricamente. Os resultados foram apresentados em média ± erro padrão da média de 6-8 experimentos.
O efeito antioxidante da vitamina C foi testado na cultura de CMLV derivadas do LAM. A vitamina C preveniu o aumento da geração de O2- induzida por etanol (50 mmol/L, 5 min) em cultura de CMLV. A fim de avaliar o papel de um metabólito de etanol sobre a geração de O2- induzida por etanol, as células foram incubadas com 4-MP, um inibidor de ADH. 4-MP preveniu a geração de O2- induzida por etanol na cultura de CMLV (Figura 3).
Figura 3 Efeito do tiron, da apocinina, do 4-metilpirazol (4-MP) e da vitamina C sobre a geração de O2- induzida por etanol na cultura de células vasculares do músculo liso de células do leito arterial mesentérico de rato. As células foram estimuladas com etanol (50 mmol/L, 5 min) na ausência de inibidor ou após incubação com tiron (10 µmol/L, 30 min), apocinina (10 µmol/L, 30 min), 4-MP (10 µmol/L, 30 min) ou vitamina C (100 µmol/L, 24 h). As barras representam média ± erro padrão da média de 7-11 experimentos. *Comparado ao veículo (p<0.05, ANOVA).
Nossos resultados mostraram que não houve alteração na fosforilação da Akt no resíduo de Ser473 ou da eNOS nos resíduos de Ser1177 e Thr495 após ingestão aguda de etanol ou tratamento com vitamina C (Figura 4).
Figura 4 Efeitos da ingestão aguda de etanol sobre a fosforilação da proteína quinase B (Akt) e óxido nítrico sintase endotelial (eNOS) no leito arterial mesentérico de rato. Parte superior: resultados de western blotting para expressão e fosforilação de Akt e proteína eNOS. Parte inferior: gráficos de coluna correspondentes mostrando dados densitométricos para fosforilação da Akt no resíduo de Ser473 (A), eNOS no resíduo de Ser1177 (B), eNOS no resíduo de Tre495 (C). Os resultados foram apresentados em média ± erro padrão da média de 4-6 experimentos.
Uma vez que a NAD(P)H oxidase é a principal fonte de ERO na vasculatura, e as ERO proveniente da NAD(P)H induzem a ativação da via de sinalização RhoA/Rho quinase, foi avaliado o efeito do etanol sobre a translocação da p47phox e RhoA. LAM de ratos tratados com etanol apresentaram um aumento significativo na expressão proteica da razão fração membrana/citosol da p47phox (Figura 5A) e na expressão proteica de RhoA (Figura 5B), indicando a translocação das proteínas. O tratamento com vitamina C preveniu o aumento da translocação da p47phox e da RhoA induzida pelo etanol.
Figura 5 Efeitos da ingestão aguda de etanol sobre a translocação da p47phox e RhoA no leito arterial mesentérico (LAM) de rato. O gráfico de barra representa a translocação da p47phox e RhoA como razão da expressão membrana/citosol (A e B) no LAM de rato. Parte superior: resultados de western blotting. Resultados são apresentados como média ± erro padrão da média de 5-7 experimentos. *em comparação aos grupos controle, controle + vitamina C e etanol + vitamina C (p<0,05, ANOVA).
O tratamento com etanol não afetou o relaxamento induzido por acetilcolina (Emax: 98,3 ± 1,5%; pD2: 8,2 ± 0,2, n=6), quando comparado aos grupos controle (Emax: 100,3 ± 2,3%; pD2: 8,1 ± 0,4, n=6), controle + vitamina C (Emax: 98,6 ± 1,8%; pD2: 8,1 ± 0,2, n=4) e etanol + vitamina C (Emax: 99,8 ± 0,4%; pD2: 7,8 ± 0,3, n=5). Nas artérias com endotélio intacto, a ingestão aguda de etanol não afetou a contração (% KCl 120 mmol/L) induzida por fenilefrina (Emax: 138,8 ± 10,4%; pD2: 5,9 ± 0,3, n=5), em comparação aos grupos controle (Emax: 136,3 ± 10,3%; pD2: 6,3 ± 0,2, n=4), controle + vitamina C (Emax: 112,9 ± 2,4%; pD2: 6,3 ± 0,1, n=4) e etanol + vitamina C (Emax: 122,3 ± 7,7%; pD2: 6,1 ± 0,1, n=6). O mesmo foi observado nas artérias sem endotélio, em que o tratamento com etanol não afetou a contração induzida por fenilefrina (Emax: 135,1 ± 7,2%; pD2: 6,1 ± 0,1, n=6), em comparação aos grupos controle (Emax: 120,7 ± 5,5%; pD2: 6,1 ± 0,3, n=5), controle + vitamina C (Emax: 116,3 ± 3,5%; pD2: 5,7 ± 0,1, n=4) e etanol+ vitamina ((Emax: 144.3 ± 10.4%; pD2: 6.1 ± 0.3, n=5).
Os resultados presentes mostram que a ingestão aguda de etanol induz a translocação da RhoA e a ativação da NAD(P)H oxidase, pela translocação da p47phox em artérias de resistência. Apesar de aumentar a geração de ERO, a ingestão aguda de etanol não afeta a síntese ou a biodisponibilidade de NO nas artérias de resistência. A relevância de nossos achados ganha força ao considerarmos estudos prévios de nosso grupo de pesquisa12,16,17 em que se demonstrou que, utilizando este mesmo modelo de administração de etanol, a concentração plasmática de etanol atingida é de 20-24 mmol/L, a qual corresponde à encontrada em humanos após consumo excessivo de álcool,25 ou em ratos após 30 min de administração oral de etanol.26
Nossos resultados demonstraram que o etanol aumentou a geração de O2- no LAM de rato, o que está de acordo com resultados prévios de nosso laboratório.12
Além disso, observou-se um aumento da peroxidação lipídica no LAM de rato após ingestão de álcool. O teste de quimioluminescência dependente de lucigenina baseia-se na ação enzimática da enzima NAD(P)H oxidase.27 Nesse sentido, o aumento na quimioluminescência descrito neste estudo sugere que a enzima NAD(P)H oxidase seja uma importante fonte de geração de O2- induzida pelo etanol nas artérias de resistência. Esta ideia é corroborada pelo fato de que a apocinina inibiu a geração de O2- na cultura de CMLV. A vitamina C é um eficaz agente sequestrador de O2,28 e, em nosso modelo, ela diminuiu a geração de O2- e a peroxidação lipídica em artérias de resistência. A propriedade antioxidante da vitamina C também está associada à menor ativação de NAD(P)H oxidase.15
Em culturas de células CMLV, a vitamina C preveniu a geração de O2- induzida pelo etanol, sugerindo que a inibição da NAD(P)H oxidase pela vitamina C também pode estar envolvida na diminuição da geração vascular de O2- induzida pelo etanol.
ADH é uma enzima que atua na metabolização do etanol, e é funcionalmente ativa na vasculatura.29 Foi descrito anteriormente que metabólitos do etanol estão envolvidos nos efeitos vasculares estimulados pelo etanol.30 Para determinar um possível papel dos metabólitos do etanol sobre a geração de O2- induzido por etanol em artérias de resistência, foi avaliado o efeito do 4-MP nesse processo. A inibição do metabolismo do etanol mediado pela ADH levou à diminuição da geração de O2- induzida pelo etanol na cultura de CMLV. Assim, apresentamos uma evidência de que um metabólito de etanol, possivelmente o acetaldeído, é responsável pela geração de ERO em artérias de resistência.
A NAD(P)H oxidase é a principal fonte de ERO na vasculatura. A prototípica, Nox fagocítica é composta por cinco subunidades - três subunidades citosólicas, p40phox, p47phox e p67phox, e dois componentes associados à membrana, denominados gp91phox (Nox2) e p22phox. O complexo enzimático encontra-se dissociado nas células de repouso, mas é rapidamente ativado à estimulação celular. A fosforilação da p47phox em um resíduo de serina inicia a ativação da enzima, desencadeando a formação de um complexo composto por subunidades citosólicas. Essa resposta é seguida pela translocação do complexo citosólico à membrana, e associação com as subunidades gp91phox e p22phox (citocromo b558). Os componentes da NAD(P)H oxidase são expressos em células endoteliais e CMLV, e a translocação da subunidade p47phox mostrou-se essencial para a produção de ERO nessa células.31 Em nosso estudo, foi observado o aumento da translocação da p47phox em LAM de ratos tratados com etanol, e tal efeito foi inibido pela vitamina C, sugerindo que o estresse oxidativo esteja envolvido na translocação da p47phox induzida pelo etanol e na ativação da NAD(P)H oxidase. Além disso, essa resposta reforça nossa ideia inicial de que a NAD(P)H oxidase esteja envolvida na geração de O2- induzida pelo etanol no LAM de rato. A ação inibitória da vitamina C sobre a translocação da p47phox foi previamente descrita.32 Os mecanismos pelos quais a vitamina C inibe a translocação da p47phox não foram totalmente elucidados, mas parecem envolver a inibição dos ativadores da enzima NAD(P)H oxidase. Um grande número de proteínas está envolvido no complexo NAD(P)H oxidase, que inclui Rac GTPases, proteína quinase C (PKC) e c-Src.11 Papparella et al.32 demonstraram que a vitamina C inibiu a ativação da PKC com subsequente redução na translocação da p47phox e geração de ERO. O presente estudo não abordou o mecanismo exato pelo qual o etanol modula a atividade da NAD(P)H oxidase. Diferentes estímulos, tais como endotelina-1, angiotensina II, catecolaminas, trombina e fatores de crescimento (p.ex.: fator de crescimento epidérmico e fator de crescimento derivado de plaquetas) promovem ativação aguda da NAD(P)H oxidase na vasculatura.33 Nós demonstramos anteriormente que o losartan, um antagonista de receptores AT1, não impediu a geração de ERO induzida por etanol em LAM de rato,12 descartando um possível papel da angiotensina II na ativação da NAD(P)H aqui descrita. Seria interessante outros estudos que avaliem a maneira exata que ingestão aguda de etanol induz a translocação de p47phox e a geração de ERO nas artérias de resistência.
Figura 6 Efeitos da ingestão aguda de etanol sobre a reatividade vascular à acetilcolina e fenilefrina. Curvas dose-resposta para acetilcolina foram obtidas no terceiro ramo das artérias mesentéricas com endotélio intacto (A). Curvas dose-resposta para fenilefrina foram obtidas nas artérias com endotélio (Endo+, B) e sem endotélio (Endo-,C). Resultados são apresentados como média ± erro padrão da média de 4-6 experimentos.
O ânion superóxido é uma molécula altamente instável, reduzida à H2O2 pela SOD34. Em nosso estudo, a ação antioxidante da vitamina C não estava relacionada com aumento da ativação da SOD, uma vez que não foi observada diferença na atividade da SOD no LAM após o tratamento com a vitamina. Além disso, uma vez que o tratamento com etanol não alterou a atividade da SOD, o aumento nos níveis de O2- induzido pelo etanol parece não estar relacionado com a redução da dismutação do O2- pela SOD. Tanto o O2- como o H2O2 atuam como moléculas de sinalização, sendo o H2O2 considerado o principal composto de sinalização, dado sua relativa estabilidade e localização subcelular 34. Por exemplo, o H2O2 ativa vias sensíveis à sinalização redox, tais como MAPK e Rho kinase35. H2O2 é intimamente regulado por enzimas intracelulares e extracelulares, incluindo CAT, que converte H2O2 em água e O2. Nossos resultados mostraram que a ingestão aguda de etanol não alterou os níveis de H2O2 ou a atividade da CAT no LAM de rato.
A disfunção endotelial é causada por um aumento na geração de ERO e redução na biodisponibilidade de NO, aumentando a inativação oxidativa do NO e/ou diminuindo sua síntese. No endotélio vascular, o NO é sintetizado pela eNOS. A Akt, uma proteína quinase serina/treonina, fosforila a eNOS, promovendo a ativação da enzima.36 A fosforilação da eNOS no resíduo de Ser177 é um requisito crucial para a ativação da eNOS, enquanto que a fosforilação no resíduo Tre495 leva à inativação da enzima.36 Neste trabalho, demonstramos que o etanol não teve efeito sobre a fosforilação Akt/NOS, o que corroborou a observação de que a concentração de nitrato no LAM de rato não foi afetada pelo etanol. O etanol induz um aumento transitório na atividade da SOD e CAT, e tal resposta pode mudar o equilíbrio entre EROs e NO em direção aos níveis de NO.37 Nesse sentido, o aumento induzido por etanol nas defesas antioxidantes poderia explicar a ausência de efeito do etanol sobre os níveis de NO no LAM de rato.
As ERO derivadas da NAD(P)H oxidase na vasculatura ativam alvos redox-sensíveis tais como RhoA/Rho quinase. O ânion superóxido e H2O2 ativam a via RhoA/Rho quinase, que representa uma importante classe de moléculas sinalizadoras reguladas pelo estado redox no sistema cardiovascular.13 A via RhoA/Rho quinase regula muitas vias de sinalização intracelulares na vasculatura. A proteína Rho permanece em um ciclo entre sua forma inativa ligada ao GDP no citoplasma, e sua forma ativa ligada ao GTP na membrana celular,38 e a translocação de RhoA para a membrana está associada com sua ativação. Os presentes achados mostraram que a ingestão de etanol aumentou a translocação de RhoA, o que sugere uma ativação da via RhoA/Rho quinase. Além do fato de a vitamina C ter prevenido a translocação de RhoA induzida pelo etanol sugerimos que essa resposta seja mediada por ERO. Esse resultado vai ao encontro de resultados anteriores mostrando que as ERO, principalmente O2 - e H2O2, estão ligados à ativação da via RhoA/Rho quinase.39 Até nosso conhecimento, este é o primeiro estudo demonstrando uma interação direta entre ingestão de etanol, ERO derivadas de NAD(P)H oxidase, e a ativação da via de sinalização da RhoA/Rho quinase. A RhoA é abundantemente expressa nas CMLV e participa da vasoconstrição via fosforilação da cadeia leve de miosina e sensibilização das proteínas contráteis ao cálcio. Além disso, a ativação aumentada de RhoA foi associada à disfunção endotelial, resistência periférica aumentada e hipertensão.40 Apesar da ativação da via de sinalização da RhoA/Rho quinase, a ingestão aguda de etanol não afetou a resposta contrátil induzida pela fenilefrina ou o relaxamento dependente do endotélio induzido por acetilcolina na artéria mesentérica. Esses resultados sugerem que a ativação da RhoA aqui descrita provavelmente ocorre antes do início das disfunções graves.
Algumas limitações do presente estudo devem ser consideradas. Em nosso estudo, todos os parâmetros foram avaliados quando o etanol atingiu sua concentração plasmática máxima. Não foi avaliado o período de ação do etanol na vasculatura após a administração de uma única dose. Portanto, seria interessante a realização de estudos sobre o efeito de uma única dose de etanol ao longo do tempo. Outro ponto a ser considerado é que enquanto binge drinking em humanos é amplamente definido como o consumo de uma grande quantidade de etanol (4-5 doses) em um período de duas horas, em nosso estudo, a quantidade total de etanol (1g/kg) foi administrada em uma única dose.
A ativação da NAD(P)H oxidase, com aumento subsequente na geração de ERO, e a ativação das vias de sinalização redox-sensíveis, tais como a via RhoA/Rho quinase, são eventos importantes ligados à disfunção vascular e, segundo estudos anteriores,9,11,13 exercem um papel na fisiopatologia de várias doenças cardiovasculares. Binge drinking está associado a um risco aumentado de eventos cardiovasculares, tais como acidente vascular cerebral, morte súbita, infarto do miocárdio, maior mortalidade após infarto do miocárdio,2-4 e a progressão de aterosclerose carotídea.1 Importante mencionar que mudanças na biologia vascular são mecanismos chaves para o risco aumentado de eventos cardiovasculares induzidos pelo consumo de álcool excessivo.6 Assim, nossos resultados levantam a possibilidade de que não somente a ingestão crônica de etanol seja um fator de risco para eventos cardiovasculares, como a ingestão aguda de etanol também pode aumentar o risco de causar danos vasculares pelo aumento da geração de ERO e ativação de vias redox-sensíveis. Em geral, essas respostas desencadeadas pelo etanol poderiam predispor ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares.
Em resumo, o principal achado inédito deste estudo é que a ingestão aguda de etanol induz a ativação da via RhoA/Rho quinase por um mecanismo que envolve a geração de ERO. Além disso, nós demonstramos, pela primeira vez, que o etanol ativa a NAD(P)H oxidase por estímulo da translocação da p47phox e por mecanismos redox-sensíveis em artérias de resistência.