versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.1 Rio de Janeiro jan. 2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232018241.35012016
O marco central que institucionaliza a participação social no Brasil é a Constituição Federal de 1988. Especificamente na área da saúde, o referencial para a posterior consolidação legal desse instituto, definido a partir de 1990 por meio de legislações infraconstitucionais, recebeu influência externa, decorrente da Conferência de Alma-Ata, que instituiu a participação como direito e dever dos povos1.
No plano interno, foi decisiva para essa conquista a conjuntura do final daquela década, fortemente marcada pela queda do regime militar, por pressões de movimentos sociais e de comunidades eclesiais de base, assim como por reivindicações de entidades profissionais pela redemocratização do País. Nesse contexto, não se pode deixar de destacar o Movimento pela Reforma Sanitária que, com a efervescência política que vinha se fortalecendo desde a década de 1970 em busca da criação de um sistema nacional de saúde público, participativo, descentralizado e de qualidade, foi o grande propulsor dessa conquista, juntamente com a Oitava Conferência Nacional de Saúde, ocorrida em 19862.
Na área de saneamento, data de 2004 o início da construção do marco que institui a participação e, nesse contexto, há que se levar em conta a influência da área de saúde inserindo na pauta de discussões a adoção de princípios norteadores da prestação dos serviços, dentre os quais está a participação3.
Apesar dessa conquista, por conta das injunções políticas e econômicas que marcaram o País desde os anos 1990, com a reconfiguração do processo de acumulação do capital e a mercantilização de alguns serviços essenciais, inclusive, em parte, o direito à saúde4–6, a área de saneamento viu-se também impactada. Tomando como referência a promulgação da Primeira Lei Orgânica da Saúde, que ocorreu em 1990, foi requerido ainda o espaço de 17 anos para se ver aprovada, em 2007, a Lei Nacional do Saneamento Básico (LNSB), que institui os princípios acima citados, dentre os quais a participação por meio do controle social.
Assim, pergunta-se: diante das injunções referidas e que continuam exacerbadas nos dias de hoje, em que aspectos específicos o marco da saúde influenciou o de saneamento no que diz respeito ao controle social? Para responder a esta pergunta, e tendo em vista o pioneirismo já destacado da área de saúde, este trabalho tem como fio condutor a comparação entre os marcos legais federais das duas áreas em questão, na perspectiva do controle social.
Considera-se que os comparar, a partir de critérios definidos, enseja reflexões oportunas sobre a possibilidade de o marco do saneamento lograr produzir práticas efetivas de condução da política pública correlata, tendo como parâmetro o marco da saúde, produto de um esforço histórico e progressista, mas que, por sua vez, vem sendo objeto de contrarreformas promovidas por forças que cerceiam os direitos sociais4. Por conta disto, considera-se a relevância deste trabalho, aliada ao ineditismo de que se reveste, uma vez que são ainda pouco numerosos os estudos sobre a temática em saneamento7.
Nas seções seguintes, apresenta-se uma discussão conceitual sobre controle social, além de um breve panorama sobre as práticas participativas nacionais e internacionais em saneamento e saúde. Na sequência, estão a metodologia, os resultados obtidos e sua discussão e as considerações finais.
O controle social é entendido neste texto na perspectiva da relação Estado-sociedade civil, de acordo com o aparato teórico gramsciano. Isto significa que a análise proposta parte de três pressupostos: 1) não há separação entre Estado e sociedade civil, pois estes constituem uma unidade orgânica, sendo a sociedade civil um momento do Estado, havendo, apenas, uma separação metodológica; 2) a sociedade civil não é homogênea e, sim, espaço onde circulam interesses antagônicos; 3) o Estado, na função de mantenedor da classe dominante, incorpora demandas das classes subalternas.
Para o entendimento do primeiro pressuposto, necessário se faz compreender que, para Gramsci, há o Estado como totalidade social e o Estado comostricto sensu.O Estado comostricto sensu, também chamado de Estado-coerção ou ainda sociedade política, constitui olócus do poder político, da força de coação. Dele fazem parte os aparelhos de coerção controlados pelas burocracias executiva e policial militar. Corresponde a um momento do Estado em sentido ampliado, como totalidade social, juntamente com a sociedade civil8.
Assim, Estado restrito e sociedade civil formam uma “unidade na diversidade”8. A distinção entre ambos é de natureza metodológica e não orgânica, a despeito de haver interpretações que, ao contrário, identificam uma dicotomia a respeito, negando a unidade dialética entre política e sociedade9.
A sociedade civil, para Gramsci, composta por um conjunto de aparelhos privados de hegemonia (escolas, igrejas, sindicatos, meios de comunicação), é um espaço em que se dá a formação do poder ideológico para o exercício do consenso e o estabelecimento da hegemonia, ou seja, do predomínio ideológico de valores e normas de uma classe social sobre as demais, não pela força, mas pela cultura que produz e difunde e que é por elas incorporada e assumida10,11.
Por isso, para Gramsci, o poder de uma classe, antes de se vincular ao controle do aparelho estatal, está em sua capacidade de dirigir, intelectual e moralmente, o conjunto da sociedade e gerar consenso em torno de si. Desse modo, exerce hegemonia sobre as demais classes e, como consequência, pode alcançar o controle do Estado12.
Assim, a classe dominante não se mantém no poder apenas por meio de ações coercitivas praticadas pelo Estado em seu favor mas, também, pelo consentimento das próprias classes que estão à margem do poder econômico e político, ditas subalternas4. Estas, envolvidas por sofismas ideológicos, asseguram àquela a hegemonia por meio do “consentimento ativo”.
A cultura, relativamente às classes subalternas, para Gramsci, seria “capaz de romper com a sua desagregação e abrir caminhos para a construção de uma vontade coletiva, contrapondo-se às concepções de mundo oficiais”13. Em outras palavras, nessa perspectiva, trata-se da construção de uma racionalidade nova, de uma “novaciviltà”14.
A hegemonia das classes subalternas, em Gramsci, é a contra hegemonia concretizada pela “guerra de posição”, que significa ocupar e sitiar (e não tomar por meio de uma “guerra de movimento”) o aparelho do Estado com uma força contra hegemônica criada e difundida pela organização e pela cultura da classe trabalhadora11.
Isto significa que, para Gramsci, a hegemonia está relacionada ao poder e ao saber. Nesse sentido, ele afirma que a falta de uma educação crítica possibilita a incorporação da ideologia da classe dominante pelas massas e que toda a relação de hegemonia constitui um ato pedagógico. No entanto, ressalta que essa ação pedagógica não envolve apenas relações escolares, de instrução ou acúmulo de noções15. Trata-se, na verdade, de “universalizar a capacidade de pensamento crítico”16.
De acordo com o segundo pressuposto, Gramsci considera que a sociedade civil é um espaço no qual os organismos privados, já citados, representando interesses díspares e não homogêneos, elaboram e/ou difundem suas ideologias e entram em disputa entre si pelo consenso e a hegemonia, para que possam ter influência sobre o aparelho estatal e, assim, ver atendidas suas demandas em forma de políticas públicas.
As ideologias, portanto, circulam no seio da sociedade civil, produzidas a partir dos interesses diversos e não homogêneos dos variados segmentos presentes nessa arena de disputas17. Ela se constitui, portanto, heterogênea “e, por conseguinte – em vez de unificada por compromissos e valores comuns – é perpassada por divergências e conflitos (…)”18.
Tal característica igualmente marca as classes subalternas, que também disputam entre si e com as classes dominantes o consenso e a hegemonia. O refluxo dos movimentos sociais, que ocorre no Brasil desde os anos 1990, diferentemente do fluxo que tiveram na década anterior19, revela que, após alcançados, de alguma forma, os objetivos comuns que os entrelaçam e que sustentam aluta coletiva, há uma mudança de foco, que se transfere para aluta corporativa, voltada para alcançar objetivos específicos, imediatos, próprios de cada grupo ou segmento social17.
Nesse sentido, mais corporativo que coletivo, surgem alianças no seio da sociedade civil, articulações entre partes de seus segmentos e entre estes e a sociedade política, que podem ser entendidas como o exercício da “guerra de posição” para a construção de um movimento de contra hegemonia na disputa com os não aliados, ou que podem representar a cooptação desses segmentos pelas elites, para a manutenção de sua hegemonia.
Isto leva à discussão do terceiro pressuposto, segundo o qual Gramsci considera que, no Estado ampliado, o Estado restrito assume o papel de mantenedor do consenso e da hegemonia da classe dominante sobre as classes subalternas11. Para isto, chega mesmo a fazer concessões a estas, incorporando algumas de suas demandas e interesses.
Assim, tendo em vista tais concessões e a “guerra de posição” travada na sociedade civil com o fim de sitiar o Estado, localiza-se o controle social exercido pelas classes subalternas. Nessa perspectiva, para essas classes, ele “envolve a capacidade que os movimentos sociais organizados na sociedade civil têm de interferir na gestão pública, orientando as ações do Estado e os gastos estatais na direção dos interesses da maioria da população”4.
Esse controle é, portanto, uma possibilidade do ponto de vista das classes subalternas, pois depende da correlação de forças que, na sociedade civil, se estabelecer na disputa contra a hegemonia conquistada pelo poder. Sendo assim, os conselhos gestores e as conferências de políticas públicas, como mecanismos de controle social, “não são mecanismos acima da sociedade, nem são instâncias isoladas imunes aos conflitos de interesse, cooptação, disputas da direção da política social articuladas a projetos societários, mesmo que isto não esteja explicitado”17.
Uma observação do panorama latino americano do controle social em saneamento, mais especificamente no que tange aos serviços de abastecimento de água, permite identificar tendências que caracterizam as políticas adotadas em diversos países. As práticas envolvidas, que marcam a gestão dos serviços e que se intercambiam ao longo do tempo como resultado de fatores socioeconômicos, políticos e culturais, estão ligadas a: 1) formas de gestão tecnocrata não participativa (o usuário não é visto como cidadão e nem mesmo como cliente-consumidor com direito de se manifestar); 2) formas de gestão com participação restrita (concedem de “cima para baixo” alguma participação circunscrita aos direitos do consumidor em espaços limitados); 3) formas de participação “desde a base” (produzidas por trabalhadores, usuários, comunidades, organizações não governamentais)20.
O primeiro caso corresponde a uma tendência identificada no Brasil durante o regime militar (1964-1985) e, em boa medida, mesmo depois dele21, pois ainda há exemplos de forte influência desse modelo limitando a participação de usuários dos serviços7,22,23, o que também é uma realidade vigente no México, dentre outros países24. Na Argentina, essa tendência igualmente se mostrou evidente no período entre 1993 e 2006, ao longo de um processo de privatização em massa dos serviços, marcado pela total ausência de participação popular, o que igualmente ocorreu na Bolívia e no Uruguai25.
Algumas formas de gestão com participação restrita foram postas em prática na Argentina, especialmente ao final da década de 1990, como concessão para aplacar o crescente descontentamento dos usuários dos serviços privatizados26, no México, na mesma década27, assim como no Brasil, desde 2003, e na Bolívia, entre 1999 e 200620.
Este tipo de participação também ocorre no âmbito da Comunidade Europeia, assim como nos Estados Unidos. No Bloco Europeu, relativamente à política de governança da água, são definidas a consulta e a mobilização públicas como mecanismos participativos, há, porém, críticas à capacidade de integração, na decisão final, do resultado das discussões promovidas28. Nos Estados Unidos, há referências à ampliação da jurisprudência ambiental, que passou a permitir reivindicações baseadas em motivações diferentes dos tradicionais interesses pessoais econômicos29.
Finalmente, em relação à participação “desde a base”, são destacados os exemplos de mobilizações sociais na Argentina, Bolívia, México, Nicarágua, Uruguai, Equador e Venezuela contra a privatização dos serviços30–32, o que também ocorreu no Brasil20e na Espanha33.
Outras formas, dentro dessa mesma tendência, são encontradas no Brasil e incluem a participação por meio de conselhos gestores e de conferências das cidades. A depender da representatividade dos movimentos sociais na composição dessas instâncias, dentre diversos outros fatores34, a participação pode ser mais ou menos efetiva, aproximando-se, no segundo caso, da gestão participativa com restrição.Este tipo de tendência “desde a base” é encontrado também na área de saúde em diversos países, tais como Itália35, Portugal e Espanha36, Inglaterra37, Finlândia e Nova Zelandia38.
O estudo tem natureza descritiva39 e se baseia na análise documental40. Por meio de pesquisa em sítios eletrônicos institucionais, com destaque para o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Saúde, o Ministério das Cidades e o Conselho das Cidades, identificou-se, por meio de leitura minuciosa, o arcabouço legal relativo ao tema de interesse nas duas áreas de estudo. Foram considerados como integrantes desse conjunto leis, decretos, resoluções e outras normativas federais que estabelecem diretrizes, princípios, obrigações e regulamentações relativas ao exercício do controle social.
A análise desse material se deu a partir de leitura crítica, ancorada em critérios representativos de aspectos relevantes para a abordagem proposta, reveladores domodus operandi do controle social em cada área e identificados a partir de estudos realizados sobre conselhos de saúde6,34. Os critérios foram: 1) mecanismos de controle social definidos; 2) caráter conferido ao controle social; 3) responsabilidade, recomendações e apoio para viabilizar o controle social; 4) acesso a informações; 5) controle sobre o uso dos recursos disponíveis; 6) controle da implementação das deliberações.
A análise possibilitou a comparação entre os marcos legais, a identificação de dispositivos que constituem avanços de um em relação ao outro e a construção de uma resposta ao problema de pesquisa.
São apresentados, a seguir, os marcos legais do controle social nas duas áreas, bem como seus dispositivos, a partir dos seis critérios de análise definidos.
Relativamente ao marco do saneamento, o Quadro 1 indica, por ordem cronológica, as normativas identificadas.
Quadro 1 Marco legal do controle social em saneamento.
Identificação | Ano de Publicação |
---|---|
Resolução ConCidades n° 13 | 2004 |
Resolução Administrativa ConCidades n° 02 | 2006 |
Lei n° 11.445 | 2007 |
Resolução Recomendada ConCidades nº 02 | 2009 |
Decreto n° 7.217 Lei n° 12.305 Decreto n° 7.404 |
2010 |
Regimento Interno do ConCidades | 2011 |
Decreto nº 8.211 | 2014 |
Considerando que, em nível nacional, o Conselho das Cidades (ConCidades) representa o órgão colegiado de controle social na área (o Decreto n° 5.790/2006 define em seu Art. 3°, inciso II, que o Conselho deve acompanhar e avaliar a implementação da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano, incluindo-se o saneamento), destacam-se como de interesse para este trabalho três resoluções: a Resolução n° 13/2004, que propõe diretrizes para o exercício do controle social; a Resolução Administrativa n° 02/2006, que cria um grupo de trabalho composto por integrantes do Conselho das Cidades para acompanhamento do orçamento do Ministério das Cidades; a Resolução Recomendada nº 75/2009, que estabelece orientações para o exercício do controle social na atividade de planejamento em saneamento. Inclui-se também nesse rol o Regimento Interno do Conselho, cujo texto sofreu alterações determinadas por diversas resoluções normativas, sendo a última em 2011.
Completando esse conjunto, a Lei n° 11.445/2007, que corresponde à LNSB, inscreveu o controle social como princípio fundamental para a prestação dos serviços de saneamento. Os Decretos n° 7.217/2010 e n° 8.211/2014 definiram a aplicação desse princípio com maior detalhamento. A Lei n° 12.305/2010, ao criar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), o estabeleceu como princípio norteador dessa política, o que foi ratificado pelo Decreto n° 7.404/2010.
No que tange ao marco da saúde, o Quadro 2 relaciona, por ordem cronológica, as leis, decretos e resoluções identificadas.
Quadro 2 Marco legal do controle social em saúde.
Identificação | Ano de Publicação |
---|---|
Constituição Federal | 1988 |
Lei n° 8.080 Lei n° 8.142 |
1990 |
Decreto n° 1.651 | 1995 |
Resolução CNS n° 354 | 2005 |
Decreto n° 5.839 Portaria Ministerial n° 399 Resolução CNS n° 363 |
2006 |
Resolução CNS n° 407 | 2008 |
Portaria Ministerial n° 1.820 | 2009 |
Resolução CNS n° 435 Regimento Interno do CNS |
2010 |
Decreto n° 7.508 | 2011 |
Lei Complementar n° 141 Decreto n° 7.827 Resolução CNS n° 453 Resolução CNS n° 454 |
2012 |
O primeiro componente desse marco é a Constituição Federal de 1988, que trata daparticipação da comunidade no SUS. Na sequência, vêm: a Lei n° 8.080/1990 – Primeira Lei Orgânica da Saúde –, que dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes; a Lei n° 8.142/1990 – Segunda Lei Orgânica da Saúde –, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde; o Decreto n° 1.651/1995, que regulamenta o Sistema Nacional de Auditoria (SNA) no âmbito do SUS; o Decreto n° 5.839/2006, que dispõe sobre a organização, atribuições e processo eleitoral do CNS; a Portaria Ministerial n° 399/2006, que divulga o Pacto pela Saúde; a Portaria Ministerial n° 1.820/2009, que dispõe sobre os direitos e deveres dos usuários da saúde; o Decreto n° 7.508/2011, que regulamenta a Lei n° 8.080/1990; a Lei Complementar n° 141/2012, que regulamenta o Art. 198, parágrafo 3° da Constituição sobre valores a investir em saúde; o Decreto n° 7.827/2012, que regulamenta procedimentos de transferência de recursos.
Quanto às resoluções do CNS, têm-se: a Resolução n° 354/2005, que aprova o documento Diretrizes Nacionais para o Processo de Educação Permanente no Controle Social do Sistema Único de Saúde; a Resolução n° 363/2006, que aprova a Política Nacional de Educação Permanente para o Controle Social no SUS, para implementação nas três esferas de Governo; a Resolução n° 407/2008, que aprova o Regimento Interno do CNS; a Resolução n° 435/2010, que altera o Regimento Interno do CNS; o Regimento Interno do CNS; a Resolução n° 453/2012, que define diretrizes para instituição, reformulação, reestruturação e funcionamento dos Conselhos de Saúde; a Resolução n° 454/2012, que estabelece sistemática, rotinas e procedimentos que visem e viabilizem o permanente monitoramento, por parte do CNS, acerca dos encaminhamentos e efetivação das deliberações aprovadas nas Conferências Nacionais de Saúde.
A leitura crítica dos dois marcos apresentados possibilitou a identificação dos dispositivos de interesse para este trabalho, conforme está resumido no Quadro 3.
Quadro 3 Dispositivos do marco legal do controle social em saneamento e em saúde.
Critério | Saneamento | Saúde |
---|---|---|
Mecanismos de controle social definidos | Debates, consultas e audiências públicas, órgãos colegiados consultivos e conferências das cidades | Conferências da saúde de caráter propositivo. Conselhos de saúde de caráter permanente e deliberativo. |
Caráter conferido ao controle social | Princípio fundamental da gestão. Condição de validade dos contratos de prestação. Condição de acesso a recursos. Instrumento da PNRS. | Diretriz e princípio do SUS. Condição de acesso a recursos. |
Responsabilidades, recomendações e apoio para viabilizar o controle social | Responsabilidade do titular. Planejamento participativo. Participação de órgãos de controle do SUS. | Normativas para o CNS. Formação de conselheiros e educação popular. Incentivo ao controle social. |
Acesso a informações | Criação de sistemas de informação sobre os serviços. Acesso a manual de prestação e atendimento ao público. | Prestação de contas e de gestão do SUS pelos órgãos gestores. |
Controle sobre o uso dos recursos disponíveis | ConCidades acompanha e avalia execução orçamentária no âmbito do Ministério das Cidades. | Conselhos de saúde definem diretrizes para o uso dos recursos e fazem fiscalização. |
Controle da implementação das deliberações | ConCidades acompanha e avalia cumprimento das resoluções das Conferências Nacionais das Cidades e de suas resoluções. | Conselhos de saúde monitoram encaminhamento e efetivação das deliberações das conferências nacionais. Dependem de homologação do Executivo. |
A comparação entre os marcos legais em estudo é apresentada de forma resumida no Quadro 4, a partir de cada critério definido para análise.
Quadro 4 Comparação entre os marcos legais do controle social em saneamento e em saúde.
Critério | Comparação |
---|---|
Mecanismos de controle social definidos | Saúde define mecanismos mais democráticos (propositivos e deliberativos) |
Caráter conferido ao controle social | Ambos atribuem caráter relevante, como princípio e condicionante das ações |
Responsabilidades, recomendações e apoio para viabilizar o controle social | Saúde destaca preocupação com a formação de conselheiros e a educação popular |
Acesso a informações | Saúde define acesso público a informações sobre a gestão dos recursos financeiros envolvidos |
Controle sobre o uso dos recursos disponíveis | Saúde estabelece que conselhos definem e fiscalizam o uso dos recursos |
Controle da implementação das deliberações | Saneamento define mais amplo monitoramento da implementação das deliberações |
Observa-se que, à exceção dos critérioscaráter conferido ao controle social econtrole da implementação das deliberações, todos os demais posicionam o marco da saúde à frente do marco do saneamento, uma vez que ele: 1) define mecanismos mais democráticos, inclusive por serem deliberativos, ensejando a possibilidade de controle das ações do Estado por parte dos movimentos sociais que, organizados e representados, podem atuar a partir de um movimento participativo “desde a base”20; 2) evidencia preocupação com a necessidade de promover ações educativas, tanto dos conselheiros, quanto da população em geral, em um movimento que pode estimular o desenvolvimento do pensamento crítico16; 3) determina o acesso público a informações com vistas à fiscalização do uso dos recursos, o que é reconhecido como um fator favorecedor do controle social41.
Relativamente ao critériocaráter conferido ao controle social, a comparação revela equivalência entre os documentos em estudo. Tanto o marco da saúde quanto o de saneamento destacam o controle social como fundamento para as ações correlatas e como condição de acesso aos recursos públicos federais. Da mesma forma, é dado destaque ao controle social como condição de validade dos contratos de prestação dos serviços de saneamento, o que também é contemplado na área de saúde, considerando-se que a legislação determina ser a gestão do SUS – de modo geral e sem ressalvas – objeto de controle social.
Assim sendo, considera-se significativa a importância conferida ao controle social em ambos os marcos. A depender, contudo, do consenso e da hegemonia estabelecidos10,11, haverá a possibilidade de as classes subalternas lograrem direcionar o uso de recursos para atender suas demandas.
Quanto ao critériocontrole da implementação das deliberações,o marco do saneamento se mostra mais avançado, uma vez que nele está mais evidente a preocupação em monitorar também a implementação das resoluções do plenário do conselho e não apenas as das conferências, como no marco da saúde.
Além disso, no marco da saúde, está definida a necessidade de homologação das decisões pelo dirigente do SUS, no Executivo, o que pode ser compreendido como uma restrição ao controle social42, embora, igualmente, ele defina que, em caso de não homologação, o conselho poderá recorrer ao Ministério Público. Tal fato, remetendo ao terceiro pressuposto do aparato de Gramsci, corresponde a um limite que tem por fim assegurar a manutenção da hegemonia da classe dominante, apesar da incorporação, pelo Estado, das demandas de usuários dos serviços, por exemplo, dentro do que constitui a representação da sociedade civil no pleno do conselho11.
Em que pese o avanço do marco da saúde sobre o de saneamento, levando em conta o indicativo da maioria dos critérios utilizados na análise, seria inadequado, posto que simplista, encerrar neste ponto a discussão desses achados, sem fazer considerações adicionais, que relativizam tal avanço.
Como já mencionado, embora os órgãos colegiados em saúde tenham natureza deliberativa, suas deliberações dependem da homologação do Executivo, sem contar com inúmeros outros fatores que comprometem sua efetividade17,42–45. Por outro lado, em saneamento, há duas questões a considerar: 1) o entendimento sobre a possibilidade de escolha, por parte dos municípios, acerca do caráter dos conselhos de saneamento, não havendo referências à necessidade de homologação das resoluções; 2) a existência de órgãos colegiados deliberativos cujo presidente é regimentalmente um represente do Executivo.
Segundo o disposto na Lei nº 11.445/2007 (Art. 47) e no Decreto nº 7.217/2010 (Art. 34), o controle social em saneamentopoderá se dar por meio de órgãos colegiadosde caráter consultivo. Sendo assim, admite-se duas interpretações diferentes: 1) a Lei e o Decretopermitem apenas a criação de órgãos colegiados consultivos; 2) a Lei e o Decretosugerem a criação de órgãos colegiados consultivos e não restringem a criação de órgãos colegiados deliberativos.
Aproximando-se da primeira interpretação, está o entendimento proposto pelo Consórcio PRÓ-SINOS em um documento orientativo sobre a constituição dos conselhos municipais de saneamento para os municípios que o integram46.
No entanto, ao se reportar à Resolução Recomendada n° 75/2009 do ConCidades, que prevê a criação de órgãos colegiados deliberativos, esse mesmo documento considera a possibilidade da escolha, por parte dos municípios, entre o que estabelecem a Lei e o Decreto e o que recomenda a Resolução, indiretamente admitindo a segunda interpretação.
Se tal escolha recair sobre a criação de conselhos consultivos, não se confirma a possibilidade de igualdade entre os marcos, uma vez que poderá ficar empanado o sentido de participar de uma discussão sabendo-se que seu produto em nada ou muito pouco poderá alterar qualquer decisão já tomada pelo grupo dirigente. O que poderia constituir um movimento das classes subalternas, ou de segmentos delas, para orientar as ações e os gastos estatais na direção de seus interesses – propósito do controle social – reduz-se, por mais forte que seja, a um movimento de pressão com maior ou menor impacto sobre o aparelho estatal, que poderá ou não incorporar as demandas em questão.
Sem dúvida, isto pode ser interpretado como um obstáculo ou mesmo um cerceamento ao controle social pelas classes subalternas, até porque remete ao terceiro pressuposto do aparato gramsciano: o Estado incorpora demandas das classes subalternas para manter a hegemonia da classe dominante. Nesse sentido, é atendida a demanda pela participação na formulação de políticas e no planejamento e avaliação dos serviços, mas, dentro de certos limites que mantenham a salvo os interesses hegemônicos.
Há, contudo, outro aspecto a observar, que aponta não para uma limitação ao controle social, mas para uma relativização a respeito. Levando-se em conta que, para Gramsci, o poder de uma classe, antes de se vincular ao controle do aparelho estatal, está em sua capacidade de dirigir, intelectual e moralmente, o conjunto da sociedade e gerar consenso em torno de si, pode-se considerar que o movimento de pressão social acima destacado é fruto do processo de construção de um novo consenso. Isto já é algo significativo.
Se a escolha sobre a natureza do órgão colegiado recair, entretanto, sobre a criação de conselhos deliberativos, ainda assim a efetividade do controle social não estará necessariamente assegurada. Nesse caso, diversos fatores a condicionam, como por exemplo, as experiências e tradições participativas regionais47 e a obrigatoriedade, estabelecida por meio de suas leis de criação e regimentos internos, de que sua presidência seja exercida por representante do Executivo. Isto, por si, é forte indicativo do limite imposto à livre atuação do conselho11,20.
Em linhas gerais, pode-se perceber que, em termos de intensidade da participação, o marco do controle social em saneamento não incorporou os avanços alcançados na área da saúde, que podem ser assim descritos: 1) mecanismos mais efetivos por serem propositivos e deliberativos; 2) uma política de formação de conselheiros e de educação popular como incentivo e fortalecimento ao controle social; 3) mecanismos de ampla divulgação da prestação de contas e da gestão do SUS; 4) atribuições expressas para os órgãos de controle social quanto à fiscalização do uso dos recursos financeiros disponibilizados para a saúde.
Por essa razão e a despeito das dificuldades de implementação desses avanços legais, identificadas na literatura, e da limitação que esse marco apresenta diante do marco do saneamento, no que diz respeito ao controle da implementação das deliberações, pode-se considerar que tal arcabouço tem maior possibilidade de produzir práticas mais efetivas, do ponto de vista das classes subalternas.
Essa constatação parece sinalizar que o caminho a percorrer deve ser o da continuação da “guerra de posição” em prol de um saneamento apreendido como direito social e dever do Estado, luta essa que entrou em fase mais acelerada e produtiva desde 2003 e que, desde 2016, requer intensificação.
Entre avanços e ambiguidades, até 2015 muito se construiu no campo do saneamento (criação do ConCidades, promulgação do arcabouço legal nacional, implantação de programas públicos de investimentos, aprovação do Plano Nacional de Saneamento Básico) e, para a consolidação e ampliação desses avanços ao longo tempo, destacava-se a contribuição do controle social.
No presente, se intensifica a relevância desse controle, tendo em vista a radical marca neoliberal assumida pelo governo que tomou posse em 31 de agosto de 2016, voltada para o congelamento dos gastos públicos e a privatização dos serviços, o que inclui os de saneamento, recrudescendo a necessidade de firmar-se posição contrária a um saneamento entendido como mercadoria.
Além disso, também é relevante buscar-se o aperfeiçoamento do marco legal para a superação de suas limitações, como também a qualificação dos segmentos mais vulneráveis da sociedade civil – usuários e não usuários – principalmente aqueles habitantes de áreas caracterizadas por elevado déficit em saneamento, para que possam atuar de forma crítica e democrática, lutando e pressionando contra ostatus quo. Apesar de também ter suas limitações, o marco da saúde pode ser considerado uma referência auxiliar nesse processo.