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O cuidado de idosos como um campo intersubjetivo: reflexões éticas

O cuidado de idosos como um campo intersubjetivo: reflexões éticas

Autores:

Katia Cherix,
Nelson Ernesto Coelho Júnior

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.21 no.62 Botucatu jul./set. 2017 Epub 16-Nov-2016

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622015.0492

RESUMEN

El objetivo de este artículo es ampliar la reflexión sobre el cuidado a los ancianos, teniendo como telón de fondo el texto “Figuras de la intersubjetividad en la construcción subjetiva: dimensiones de la alteridad”, publicado en 2004 por Nelson Coelho Júnior y Luís Cláudio Figueiredo. Por medio de una articulación de los conceptos de empatía, en Ferenczi, identificación proyectiva, en Klein, y alteridad radical, en Lévinas, pretendemos mostrar cómo las contribuciones del campo del sicoanálisis y de la filosofía permiten un cuestionamiento de la noción de cuidado como vinculada a la caridad y al amor que pueden traer consigo una sumisión por parte del anciano. En contrapartida, proponemos una comprensión del cuidado, en la cual el anciano y el cuidador se encuentran en una relación intersubjetiva multi-facetada que implica tensiones y posibilidades de transformación sin nunca perder el horizonte ético en el que ambos son respetados en sus idiosincrasias y diferencias.

Palabras-clave: Ancianos; Cuidado; Envejecimiento; Sicoanálisis; Ética

Envelhecimento e cuidado

O Brasil encontra-se num período de transformação demográfica que engendra mudanças familiares, sociais e políticas. De 1980 a 2005, o crescimento da população idosa foi de 126,3%, ao passo que o crescimento da população total foi de apenas 55,3%. Nesse mesmo intervalo, o segmento de oitenta anos ou mais apresentou um crescimento de 246%, representando 14% da população idosa brasileira. A longevidade acarreta um aumento do número de idosos dependentes e de cuidadores, sejam formais (que exercem o cuidado numa situação profissional), sejam informais (familiares que exercem o trabalho de cuidar, sem uma remuneração). Por falta de recursos financeiros e de uma rede de assistência que ofereça o serviço de cuidado de forma gratuita, a grande maioria dos idosos, no Brasil, é cuidada por mulheres da famíliac, muitas vezes, elas mesmas idosas, sem preparação para esse tipo de trabalho e sem uma rede que propicie amparo para que possam oferecer um cuidado de qualidade aos familiares que delas dependem1.

Partindo desse contexto mais amplo, é possível direcionarmos nosso olhar para um cenário mais circunscrito: o do idoso dependente e seu cuidador. O grau de dependência de um idoso é avaliado de acordo com sua capacidade de executar as atividades da vida diária (AVD), as quais se dividem em: (1) atividades básicas da vida diária – tarefas próprias do autocuidado; (2) atividades instrumentais da vida diária – indicativas da capacidade para uma vida independente, como realizar tarefas domésticas, administrar as próprias medicações, manusear dinheiro; e (3) atividades avançadas da vida diária – indicadores de atos mais complexos ligados à automotivação, como trabalho, atividades de lazer, exercícios físicos. A dependência se traduz por uma ajuda indispensável para a realização dos atos elementares da vida3.

A dependência para as AVDs pode ser reduzida, se houver assistência adequada, por exemplo, com a adaptação da residência ou uso de tecnologia. Porém, ao sentir-se dependente, o sujeito entra em contato com sentimentos de fragilidade e desamparo relacionados com uma condição física instável, a qual implica um risco de declínio funcional. A condição de fragilidade será maior se, ante a realidade de perdas, o sujeito não encontrar um amparo. Assim, fatores subjetivos e culturais também contribuem para a situação de fragilidade. Por vivermos numa sociedade na qual os valores capitalistas ligados à produtividade, beleza e juventude imperam, alguns idosos podem sentir que lhes sobra um lugar de pouco reconhecimento simbólico e social. Além dessa posição social negativa, há uma questão existencial que envolve o sentimento de finitude. Tanto a relação de dependência, como a fragilidade e a exclusão social, e sentimentos ligados às mudanças do corpo, à proximidade da morte e à elaboração das perdas podem levar alguns sujeitos a sentirem o desamparo3.

Diante de situações concretas de dependência e adoecimento que marcam algumas histórias de envelhecimento, é possível refletir sobre o impacto dessas vivências nos sujeitos, assim como o impacto de suas reações sobre os outros à sua volta. O tema do cuidado ao idoso nos leva a pensar sobre a história de cuidado de cada um, a qual ressoa tanto no idoso como em seu cuidador, remetendo-nos a experiências inaugurais de cuidados. Para a Psicanálise, o bebê humano nasce em condição de grande fragilidade, necessitando de um outro que cuide dele, pois depende inteiramente de outrem para a satisfação de necessidades vitais. Essa condição provoca sensações de desamparode angústia, que deixarão marcas psíquicas. Essa primeira experiência de vínculo cria uma condição de estruturação psíquica e inaugura a relação com o outro como fundadora do sujeito. Assim, desde o início, estamos, em algum grau, em situação de dependência do outro. Essa situação vivida pelo bebê é diferente da situação de dependência do idoso, porque este já se constituiu como sujeito e tem muitas possibilidades de significar a situação de dependência e cuidado. Entretanto, de alguma forma, experiências primitivas de medo, confiança, prazer, ódio e amor, vividas na primeira relação de cuidado, ficam como uma matriz para vivências posteriores. A partir dessa experiência de dependência e cuidado vital, uma das maiores ameaças que pode atingir o ser humano é a fragilidade dos vínculos e o medo de perder o amor do outro, o qual, de certa maneira, o protege diante de perigos e sofrimentos4.

De sorte a lidar com a angústia dessa situação de proximidade com aspectos sombrios do envelhecimento, como perda de funcionalidade do corpo, perdas cognitivas e dependência física, podemos pensar que os cuidadores fazem uso de diversos mecanismos de defesa do Eu, a fim de manterem sua saúde mental frente a um cotidiano tão rude. Um desses mecanismos parece ser a infantilização do idoso, que permite, ao cuidador, reduzir a situação de cuidado à situação familiar e agradável de cuidado de uma criança, protegendo-se do fato de que aquele idoso é um adulto, com uma história subjetiva singular, e que a situação de dependência na qual se encontra pode estar no horizonte de qualquer um de nós. De certa forma, essa identificação com o outro velho pode ser sentida como perigosa ou indesejada. Uma pesquisa feita em Cuiabá3 com cuidadores familiares de idosos elucida esse ponto:

“O idoso no caso dele se torna uma criança [...] vai dar um remédio, engasga, se tem comida seca, não pode dar [...] fica assim teimoso, você fala uma coisa ‘não faz isso’!!! Ele faz [...] (C14); [...]é pior do que você cuidar de um bebê recém-nascido. Você olha assim e não é uma pessoa adulta que você vê, porque se torna uma criança. Faz birra porque não quer comer, fica com aquele bicão (C3); Eu levo ele, deito e enrolo, bonitinho como uma criancinha, sabe? Aí, ele dá uma risadinha, tipo um bebezinho, tão bonitinho [...] [risos]”. (C7)

É possível inferir desse relato que, ao olhar para o idoso como um “bebê recém-nascido”, o cuidador o priva de exercer um papel de sujeito autônomo e tomar decisões acerca do seu próprio cuidado. Dentro desse contexto, cuidar de alguém acaba significando decidir pelo outro. Muitos cuidadores se referem ao cuidado como um ato de amor. Por trás dessa fala, é possível ver que o cuidador se coloca num lugar de potência onde ele banho no idoso, comida, atenção e, assim, procura certo reconhecimento social como uma figura que se sacrifica pelo outro, figura piedosa e generosa, figura abastada, que é capaz de dar tudo a quem nada tem. Nessa lógica, o idoso encontra-se no lugar de quem não tem nada e precisa de tudo, de maneira que o “fazer pelo outro” acaba sendo o significado primordial por trás do cuidado. Esse tipo de cuidado priva o outro de sua autonomia e possibilidades de expressão de sua subjetividade3. Como mostrado acima, tentativas de expressão do idoso são entendidas como “teimosia” e rebeldia, em face da suposta autoridade do cuidador.

Ao considerarmos a situação de infantilização como uma proteção diante de situações de doença e morte, podemos pensar em relações hierárquicas como num hospital. Varella6 apresenta interessante relato sobre a experiência que teve, quando foi hospitalizado:

Um técnico de laboratório passou um garrote para colher sangue e ligar o frasco de soro: “Vou dar uma picadinha.” Foi uma série infindável de diminutivos que viriam a ser pronunciados. [...] O emprego do diminutivo infantiliza o cidadão. Deitado de camisola e pulseirinha, sem forças para agir por conta própria, cercado de gente que diz: “Vamos tomar um remedinho”; “Abre a boquinha”; “Levanta a perninha”... Há maturidade que resista? (p. 24)

O outro como semelhante: a empatia no encontro

Além de estabelecer uma relação de autoridade, de saber sobre o outro, podemos pensar que cuidar ganha outro significado numa relação intersubjetiva. Reconhecer o outro como sujeito constituinte dessa relação significa reconhecer necessidades e desejos do outro, no sentido de que há algo nele de semelhante com o qual posso me identificar, e algo nele que implica uma alteridade radical com a qual posso entrar em contato, porém, nunca reduzi-la a algo conhecido. Nos trabalhos publicados sobre cuidado no envelhecimento, são ressaltados aspectos do cuidado ao corpo, especialmente sob a perspectiva da qualidade de vida e da autonomia. Esse cuidado, pautado nos valores da biomedicina, pode mostrar-se extremamente técnico e eficaz para a manutenção da vida biológica, mas tende a não levar em conta aspectos afetivos, psicológicos e éticos que estão em jogo nessa relação. Numa tentativa de ampliar o olhar para essa relação de cuidado, procuramos a contribuição de autores da Filosofia e da Psicanálise.

Coelho Júnior e Figueiredo7, baseados em autores da Filosofia, Psicologia e Psicanálise, apresentam quatro possíveis matrizes para se compreenderem distintos modos de intersubjetividade, ou seja, formas de relacionamento do Eu com o outro. A primeira matriz foi chamada de intersubjetividade transubjetiva, pois faz referência a experiências pré-subjetivas de existência, a um campo de indiferenciação Eu-outro. A segunda matriz, inspirada no trabalho de Lévinas, é nomeada de intersubjetividade traumática, pois postula a presença do outro como, simultaneamente, constitutiva e traumática. A terceira matriz se refere à intersubjetividade interpessoal, e, das quatro matrizes, é a única que pressupõe uma relação simétrica entre Eu e o outro, visto que aponta um campo de relacionamento entre dois sujeitos independentes, totalmente constituídos. A última matriz, chamada de “intersubjetividade intrapsíquica”, mostra um funcionamento psíquico baseado na teoria psicanalítica, no qual existiria uma relação entre o Eu e seus objetos psíquicos, os objetos introjetados. Esse tipo de conceptualização nos permite refinar nosso olhar acerca dos processos relacionais, e dimensionar a complexidade envolvida nas dinâmicas intersubjetivas, processos em constante trânsito e transformação.

Para articular esses conceitos com o tema do cuidado de idosos, iniciaremos nossa reflexão nos primórdios da Psicanálise, quando Freud8 e Ferenczi9 usam a palavra empatia (Einfühlung), que significa possibilidade de estar junto do outro, em seu sofrimento, capacidade de compreender os sentimentos do outro, colocando-se em seu lugar. Freud considera central a experiência da empatia para o trabalho terapêutico, não obstante, em sua obra, a palavra revela ter um sentido mais cognitivo que afetivo, referindo-se à capacidade cognitiva do analista de colocar-se no lugar do paciente, dentro de uma relação assimétrica que mantém a autoridade do médico.

Baseado em experiência clínica, Freud cria conceitos para dar conta de novos aspectos do trabalho terapêutico. Um dos conceitos mais importantes foi o de Transferência (Übertragung), apresentado em 189510, que designa o fato de que o paciente transfere para o analista sentimentos que tem ou teve em relação a outra(s) pessoa(s) em sua vida. A princípio, acreditou que a transferência fosse uma resistência que impedia o paciente de entrar em contato com as lembranças ligadas aos eventos traumáticos, todavia, percebeu que a transferência se apresentava como uma ferramenta importante do processo psicanalítico, já que, por meio dela, pela repetição de padrões de relacionamento, poderia acessar conteúdos reprimidos do paciente11. Já o conceito de contratransferênciae (Gegenübertragung), o qual, na Psicanálise contemporânea, ganhou grande destaque, foi pouco estudado por Freud. No começo, a contratransferência também foi sentida como um problema, como uma resistência inconsciente do analista de entrar em contato com os conteúdos expostos pelo paciente12. Em um segundo momento, Freud destaca a importância de o analista estar atento a seus conteúdos inconscientes, para maior compreensão do funcionamento psíquico do paciente13.

Na mesma época, Ferenczi desenvolveu um trabalho frisando a importância dos sentimentos contratransferenciais do analista. A abertura mental do analista aos seus próprios sentimentos torna-se elemento essencial para a escuta e a compreensão empática do paciente. Diferentemente de Freud, ao avançar no desenvolvimento de sua teoria, Ferenczi propôs uma técnica na qual o analista poderia ter um papel mais ativo, com o intuito de provocar elaborações no paciente. Nessa direção, passou a usar o conceito de empatia, ou “tato psicológico”, para guiar o tratamento. O analista é assim visto como uma banda elástica que pode moldar-se às necessidades dos pacientes. Ao arriscar-se nessa posição heterodoxa, Ferenczi ampliou o campo da psicanálise, no sentido de pensar como as ideias e os afetos do analista acabam, inevitavelmente, entrelaçando-se com os do paciente, por estarem numa relação intersubjetiva14.

Se levarmos adiante a reflexão acerca dos conceitos de empatia, transferência e contratransferência, é possível pensar que, assim como Freud, no início de sua prática, poderia ser visto como alguém que se colocava como autoridade em relação aos pacientes, muitos cuidadores parecem se sentir nesse tipo de relação com os idosos de quem cuidam, esquecendo-se da possibilidade de entrar em contato com o sujeito e seus afetos, como indicado por Ferenczi. Ao se cuidar de uma pessoa dependente, é possível ter uma relação empática e colocar-se no lugar do outro, a fim de melhor compreender suas necessidades, ou sentir-se numa relação de poder, na qual o outro está assujeitado. Obviamente, a relação entre cuidador e idoso não tem um objetivo terapêutico como uma situação analítica, porém, é uma relação de muita proximidade física e psíquica, na qual, inevitavelmente, acontecem transferências relacionadas à neurose de cada um. Isso quer dizer que é possível que alguns idosos revivam situações ligadas à infância e outras situações de dependência e cuidados com o cuidador, assim como o cuidador também pode reviver situações ligadas à sua história pessoal. Dessa maneira, a relação de cuidado é compreendida como singular, marcada pelas histórias afetivas de cada um, porém, espera-se que quem se encontra no lugar de cuidar esteja preparado ou disposto a entrar em contato com um outro que está numa situação de fragilidade, dependência e sofrimento. Tal disponibilidade implica se identificar com o outro, num primeiro momento, para poder aproximar-se dele, escutá-lo e conhecê-lo num segundo momento e, assim, atender às suas necessidades, num terceiro momento.

Klein15, ao estudar mecanismos de defesa precoces, introduz o conceito de identificação projetiva no campo da Psicanálise. Ela se refere ao ato de colocar para fora, no outro, afetos que não podem ser suportados no interior do aparelho psíquico. Esse mecanismo é inconsciente, e o emissor não reconhece que o que foi projetado para dentro do outro lhe pertence. Esse tipo de mecanismo intrapsíquico tem consequências reais para a relação intersubjetiva, pois o objeto externo pode reagir ao comportamento estranho do sujeito em relação a ele, reafirmando sua fantasia. No início, esse conceito foi concebido como apenas um mecanismo de defesa com repercussões intrapsíquicas, no entanto, rapidamente, a Psicanálise começou a entendê-lo como uma possibilidade de comunicação com o outro, com o intuito de provocar sentimentos no outro para se fazer compreender.

Um dos psicanalistas que mais trabalhou com essas formas de comunicações rudimentares foi Bion, mostrando que a criança é capaz de se relacionar com o mundo externo, por meio da mediação realizada pela mãe, a qual funciona como um continente que acolhe e traduz os conteúdos assustadores que a criança projeta, e depois os devolve para ela se responsabilizar por seus conteúdos. É possível inferir que esse campo da comunicação não verbal inaugurado na relação mãe-bebê se mantém nos relacionamentos adultos. No trabalho terapêutico, assim como na relação da mãe com o bebê, o ideal é que o analista consiga receber essas identificações, elaborá-las e devolvê-las ao outro, para que este possa reconhecer, cada vez mais, seus sentimentos e dar sentido a eles. Assim, o analista usa seu próprio pensamento para dar continência e sentido ao afeto recebido, ao invés de reagir emocionalmente.

Trazendo esses conceitos elaborados por Klein e Bion para o campo do trabalho dos cuidadores de idosos, podemos pensar que um idoso fragilizado pode estar sobrecarregado com sentimentos assustadores e projetá-los nos outros. Por sua vez, o cuidador é chamado a fazer um trabalho psíquico parecido com o da mãe/continente, acolher e dar sentido a esses sentimentos, sem reagir a eles. A relação entre cuidador, idoso, família e instituição é extremamente complexa e singular, contudo, podemos propor um ângulo de análise no qual o idoso coloca o cuidador num lugar de suposto saber e de depositário dos recursos que não se acha mais capaz de exercer. Por um lado, o cuidador pode cair na armadilha de tomar para si esse lugar de saber sobre o outro, de decidir por um idoso que se vê numa posição passiva de receber. Ao olharmos mais de perto, é possível perceber que a potência do cuidador se encontra intrinsecamente ligada à passividade e assujeitamento do idoso e, dessa forma, não seria do interesse desse cuidador, o qual se encontra narcisicamente nutrido por tal lugar de potência, fortalecer a autonomia do idoso. Por outro lado, o cuidador, assim como um analista que recebe um novo paciente, precisa minimamente aceitar ocupar essa posição de suposto saber para, num segundo momento, se deslocar desse lugar e ajudar o idoso a redescobrir em si os recursos que necessitou provisoriamente projetar no outro.

Os conceitos psicanalíticos de transferência, contratransferência e identificação projetiva revelam um aspecto do conceito de “intersubjetividade” intrapsíquica, formulado por Coelho Júnior et al.14, presente na relação de cuidado. Isso significa que, quando nos relacionamos com alguém, não estamos nos relacionando com um sujeito integrado e unidimensional, mas com um sujeito povoado de “outros”, de objetos, histórias e identificações do passado, os quais se fazem constantemente presentes nas relações intersubjetivas atuais. Podemos, assim, imaginar um encontro de um sujeito habitado por múltiplos “outros” com outro sujeito igualmente “múltiplo”. Esse encontro com aspectos multifacetados de cada um requer compreensão e cuidado.

Fica claro que o trabalho de cuidar gera muito estresse, principalmente quando os idosos se encontram em situação de grande sofrimento, de dor crônica ou perdas cognitivas. Oliveira16, em pesquisa realizada com familiares que cuidavam de idosos com Alzheimer, constatou que essa relação gerava tensão, exaustão e estresse no cuidador. As familiares (em grande número, filhas que cuidavam dos pais) relatavam sentir compaixão, ao se identificarem com a situação difícil pela qual passava o idoso, além de certa satisfação em poder retribuir o cuidado que um dia receberam. Por outro lado, sentimentos ambíguos se alternavam frente às situações cotidianas, como: raiva, impaciência, solidão, vergonha, frustração e medo. Expressaram dificuldade em manter o autocontrole, no processo do cuidado, com respeito a sentimentos tão intensos.

Em outro cenário, em uma Instituição de Longa Permanência para Idosos (ILPI), Barbieri17 reflete acerca do cuidado oferecido por cuidadores profissionais dentro de um enquadre institucional. A instituição asilar, por motivos históricos, é compreendida como um lugar de caridade que oferece ajuda aos idosos, os quais são vistos como abandonados, apesar de pagarem mensalidades pelos serviços prestados. A autora discute como essa marca histórica estabelece uma relação desigual entre idoso e cuidador, entre o necessitado e o homem piedoso. Nesse caso, o cuidado não é sentido como um campo intersubjetivo de mútuo reconhecimento, porém, como um campo coercitivo em que um exerce o poder sobre o outro, tanto o cuidador sobre o idoso quanto o idoso sobre o cuidador, e a instituição sobre ambos.

Para a autora, a relação de assimetria entre quem cuida e quem é cuidado não equivale a uma relação de desigualdade, mas se refere ao encontro em que um demanda ajuda e o outro quer ajudar. Em teoria, essa relação com lugares distintos não pressuporia uma hierarquia de poderes. Todavia, na prática, os cuidadores priorizavam um modelo de cuidado técnico que não abria um campo para o reconhecimento do idoso como um sujeito capaz e potente. Cuidadores relataram ter uma relação de “amor” com os idosos, a qual estaria além da relação profissional, porém, sem nenhuma perspectiva de reconhecimento da alteridade. A proximidade com a velhice fragilizada provoca reações de apego ao idoso ou de afastamento relacionadas à transferência de sentimentos de relações vividas anteriormente. Os profissionais assinalaram que é preciso se cuidar para não fazer confusões e estabelecer a mesma relação que estabelecem com um familiar lembrado por aquele idoso. Além disso, enfatizaram sofrer agressões físicas e verbais, mas, dentro do contexto institucional, conseguiram dar um sentido para essas vivências como sendo parte da condição do trabalho, de maneira a não retaliarem ou se abaterem pessoalmente com o ocorrido.

Neste ponto, podemos fazer uma breve reflexão acerca de como é estar numa relação intersubjetiva com um idoso acometido de perdas cognitivas e, assim, incapaz de identificar o dentro e o fora, o Eu e o outro. Um idoso confuso impõe aos outros reviverem, repetidamente, situações intrapsíquicas, as quais podem não estar diretamente ligadas à realidade compartilhada. Nesse sentido, o cuidador necessita fazer um grande esforço para se situar dentro da realidade psíquica do paciente, que está sendo exteriorizada, de sorte a significar seus comportamentos de outra forma, já que não estão diretamente ligados à relação intersubjetiva vivida no presente. Pensando nas matrizes de intersubjetividade7, podemos inferir que, nesse momento, o cuidador precisa estar disposto a participar de uma relação intersubjetiva transubjetiva, na qual partilha com o outro um campo de indiferenciação e os impactos que essa vivência acarreta, em ambas as subjetividades.

O outro como alteridade radical: o (des)encontro traumático

Muitas teorias têm dado importância à alteridade nos processos de constituição do Eu, valorizando estudos sobre as formas intersubjetivas de comunicação. A noção de intersubjetividade, tomada como capacidade de estabelecer inferências sobre intenções e sentimentos de outros, envolve a capacidade de “leitura” de estados mentais alheios. Essa noção, que, de alguma maneira, nos remete ao conceito de empatia, abre um campo interessante para a reflexão de todo tipo de relacionamento humano.

Nessa linha, Lévinas, filósofo do século XX, que foi discípulo de Husserl e estudioso da obra de Heidegger, traz um ponto de vista peculiar, a propósito da presença do outro como simultaneamente constitutiva e traumática. Salienta que há algo no outro que me interpela e impõe uma responsabilidade. O rosto do outro expõe sua vulnerabilidade e pede cuidado (n)um dizer mudo. O encontro com a alteridade radical do outro, a eleidade, o outro do outro, o ele do tu, o que vem do outro e não é assimilável ao eu-mesmo se faz sempre presente. Assim, a relação com outra pessoa sempre ultrapassará nossa compreensão e nossa capacidade de assimilação. Haverá sempre um excesso que me ultrapassa, pois não tem como ser transformado em algo semelhante a mim e assim ser assimilado.

O pensamento de Lévinas nos coloca uma questão ética que, resumidamente, poderia ser entendida como o outro precedendo o Eu e o constituindo e traumatizando simultaneamente, com sua presença que impõe uma diferença. O contato com a alteridade pode trazer dor e sofrimento, impondo transformação ao Eu e esforço para lidar com essa alteridade. Não há uma plena adaptabilidade entre Eu e outro, sua presença engendra uma experiência traumática7.

Em face dessas proposições, é possível retornar à Psicanálise para refletir acerca da relação Eu/outro marcada pelo desamparo original. Por meio de seu grito, o bebê convoca o outro a atender às suas necessidades. Esse socorro se dá como uma “ajuda estrangeira”, já que um desconhecido próximo irá ajudar – a figura materna –, a qual pode ser sentida como um objeto hostil, quando não consegue satisfazer o bebê e como um objeto bom e potente capaz de satisfazer parcialmente suas necessidades18. Essa alternância entre presença e ausência permitirá, ao bebê, desenvolver uma capacidade de espera e um pensar que se tornará, ao longo de múltiplas experiências, um Eu capaz de cuidar de si e do outro. A presença do outro para a Psicanálise também pode ser compreendida como traumática, visto que a mãe invade o bebê com sua sexualidade, expectativas e afetos, com sua alteridade radical e incompreensível.

Fica claro que somos afetados pelo outro para além do que conseguimos representar sobre quem ele é. O outro inquietante desaloja o sujeito do conhecido, promovendo um desassossego. Assim, viver eticamente seria constantemente retomar essa abertura e possibilidade de afetação pelo outro, deixando-se desfazer; deixar-se afetar pelo sofrimento alheio e pelo desconhecido, o qual promove um trabalho de constante transformação de si.

Trazendo a reflexão sobre a matriz de intersubjetividade traumática para o campo do cuidado de idosos, vemo-nos diante de uma questão ética, porque reconhecer o outro na sua alteridade radical implica que um saber total sobre o outro nunca é possível. Desse modo, uma relação de respeito pressupõe uma abertura para o contato, escuta, descoberta do diferente do que eu sou, domino e conheço. Manter-se constantemente nessa posição de abertura e acolhimento do diferente é uma tarefa árdua, já que exige uma constante transformação do Eu. Não obstante, entre uma posição de constante abertura e uma de constante fechamento – na qual o outro seria reduzido ao que eu já sei e ao que eu conheço e imagino dele – existe um grande espectro de formas de relacionamentos intersubjetivos que envolvem reconhecer ou não o outro como um sujeito portador de saber sobre si. Abrir um espaço para o idoso falar de si e participar da atividade de cuidado proporciona um campo de encontro intersubjetivo, no qual pode expressar sua subjetividade, e o cuidador se transformar para oferecer um cuidado singular que contemple as demandas e limites daquela relação que é única. Tanto o cuidador – com sua bagagem sobre o que é cuidar e envelhecer, como sua história pessoal – pode “traumatizar” o idoso, no sentido de impactá-lo e produzir efeitos na sua subjetividade, quanto o idoso, com suas vivências, também “traumatiza” o cuidador, o qual precisa lidar com excitações que podem estar exacerbadas e não encontram outros objetos, além do cuidador, para ganhar contorno e sentido.

Considerações finais

De acordo com Almeida e Ribeiro Júnior19, para Heidegger, o cuidado é próprio da existência humana, em todas as suas esferas, pois apresenta três dimensões: sorge (cuidar de si), fürsorge (cuidar de alguém) e besorgen (cuidar de algo). Inspirados pela filosofia levinasiana, pensam num tipo de prática de profissionais de saúde não tocado pela alteridade, em que o profissional vê, no outro, uma extensão de si. Sem levar em conta a alteridade do outro e ser afetado pelo encontro com ela, não é possível oferecer um cuidado ético, pois um agir responsável faz referência ao encontro da liberdade do profissional, no limite dado pela subjetividade do outro.

Assim, para Lévinas,20 o registro ético é anterior ao psíquico, uma vez que o outro antecede o Eu. A ética se configura como uma relação Eu-Outro, na qual o elemento que constitui a definição do sujeito ético é constituído pelo outro, e não pelo Eu. Com isso, o Eu é implicado pelo outro, desde seus primórdios, e a subjetividade tem sua origem fora do Eu. Para a Psicanálise, o outro também tem extrema importância na constituição do Eu, por meio do cuidado do bebê desamparado e da transmissão da cultura, por intermédio da linguagem. É possível pensar que, quando atingimos a idade adulta, nós nos sentimos relativamente autônomos, livres e independentes do cuidado do outro, porém, com o envelhecimento, a situação de dependência, desamparo e cuidado retorna e será determinada pela qualidade de experiências de cuidado anteriores.

A compreensão da relação entre idosos e cuidadores como um ato de amor e sacrifício, como um favor, um ato de bondade, traz implicações éticas de quem exerce essa função, profissional ou informalmente, assim como para quem depende desse tipo de serviço. Por questões culturais ligadas à caridade, é possível entender que quem fica no lugar de cuidador, pode, mesmo sem pensá-lo conscientemente, buscar um reconhecimento social que viria por meio do assujeitamento do outro, colocando o velho que perdeu aspectos funcionais no lugar de incapaz e dependente.

O conceito de empatia de Ferenczi9 nos chama a atenção para o semelhante no outro, para uma possível identificação com a situação de sofrimento que nos permite oferecer um cuidado baseado autenticamente na necessidade e vontade comunicada pelo idoso. Já o conceito de identificação projetiva de Klein nos joga no campo das trocas inconscientes, no qual o idoso pode depositar conteúdos relacionados a sentimentos de medo e agressão no cuidador, criando situações paranoides que quebram a confiança na relação, assim como o cuidador pode se ver tomado pelas emoções despertadas por tais projeções e reagir de forma veemente, alimentando uma relação de agressão e medo.

Já Lévinas20 dá relevância ao aspecto traumático de toda relação, pois o contato com a alteridade sempre terá uma parcela “estranha” que nos forçará a nos deslocarmos de um lugar conhecido e confortável. Seja pelo ângulo da empatia, seja pelo do trauma ou do entrelaçamento das emoções intrassubjetivas presentes na relação do cuidado, o objetivo deste trabalho foi promover um questionamento acerca da complexidade dessa relação. A situação de fragilidade dos idosos dependentes e o pouco respaldo encontrado pelos cuidadores para exercer a função de cuidar trazem grandes implicações éticas a todos nós, visto que, em algum momento, podemos nos encontrar nessa situação de ser cuidado ou cuidar de alguém e, aí sim, ficaremos mais atentos para que essa situação de cuidado seja múltipla, respeitando todos os aspectos envolvidos numa complexa relação intersubjetiva.

REFERÊNCIAS

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