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O cuidado longitudinal difícil de uma usuária em situação de grave cronicidade: análise de caso emblemático

O cuidado longitudinal difícil de uma usuária em situação de grave cronicidade: análise de caso emblemático

Autores:

José Roque Junges,
Raquel Brondísia Panizzi Fernandes,
Noéli Daiam Raymundo Herbert,
Francine Tomasini,
Leonice Werle,
Cátia Pereira,
Andressa Wagner Moretti

ARTIGO ORIGINAL

Interface - Comunicação, Saúde, Educação

versão On-line ISSN 1807-5762

Interface (Botucatu) vol.21 no.62 Botucatu jul./set. 2017 Epub 20-Mar-2017

http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0228

RESUMEN

Los problemas éticos enfrentados por los profesionales del nivel primario son complejos puesto que surgen de situaciones únicas por la variedad de dimensiones del cuidado. El acompañamiento de pacientes resistentes al tratamiento, difíciles de cuidar, es una de esas situaciones que precisa un manejo diferenciado. Para discutir tal cuestión se analizará un caso de difícil acompañamiento relatado por un equipo de atención primaria. El caso surgió durante una encuesta cualitativa sobre problemas éticos realizada en un municipio de la región metropolitana de Porto Alegre. La colecta de datos se realizó por medio de discusiones en grupo sobre problemas éticos y sus cursos de solución. Para superar las dificultades de la relación terapéutica entre usuarios y profesionales, los resultados mostraron una necesidad de ampliar la comprensión de las necesidades de salud, de reconocer el contexto relacional de la aplicación de los procedimientos clínicos y la importancia de la experiencia subjetiva de la enfermedad.

Palabras-clave: Atención primaria a la salud; Necesidades y demandas de servicios de salud; Asistencia a la salud; Barreras de comunicación; Bioética

Introdução

Em geral, define-se o nível terciário hospitalar da atenção à saúde como complexo, devido à sua gradativa tecnificação, mas, quando se parte de uma visão ampliada do processo saúde doença, a complexidade está presente, primordialmente, no âmbito primário, porque ali se manifestam os determinantes psicológicos, sociais e culturais de uma atenção continuada desse processo. No atendimento terciário, estão mais implicados recursos tecnológicos, conformando os problemas éticos do cuidado dos pacientes. Na atenção primária, o cuidado é configurado pelas delimitações humanas e socioculturais do usuário, que é acompanhado longitudinalmente em seu percurso existencial. Por isso, os problemas éticos enfrentados pelos profissionais do nível primário são mais complexos, porque implicam a incidência de determinantes humanos diversificados e imbricados entre si, ligados à vida da pessoa, fazendo emergir situações únicas e instigantes para o cuidado.

Uma dessas situações desafiadoras para os profissionais são os pacientes resistentes ao atendimento e difíceis de cuidar. Saber lidar com suas reações e comportamentos necessita de um atendimento diferenciado. Por isso o acompanhamento longitudinal primário de pacientes difíceis tem uma complexidade própria, porque implica a integralidade do acolhimento e a temporalidade do cuidado, isto é, compreendidos na singularidade do seu caso e certos de uma atenção continuada do percurso temporal dessa situação.

A questão dos pacientes difíceis é pesquisada na literatura. A discussão é geralmente sobre a causa dessa dificuldade, identificada com a associação da doença com estados psiquiátricos e psicopatológicos1-5. Para esses autores, o problema está nos comportamentos dos pacientes que estressam o atendimento dos profissionais. Mas não se perguntam por que o paciente reage negativamente diante daquilo que lhe é proposto como benefício.

Por isso, nos últimos tempos, o acento mudou para as relações entre os pacientes e profissionais que são difíceis. Um estudo de coorte mostrou que o problema na interação é causado pelas expectativas e nível de satisfação dos pacientes com a atuação do profissional. Geralmente, tratam-se de pacientes com uma diversidade de sintomas severos, estado funcional muito deteriorado, alta utilização de serviços clínicos associados a desordens mentais. Por outro lado, nesses encontros difíceis, os profissionais manifestam atitudes psicossociais inadequadas e pouca experiência em tratar de pacientes com um quadro terapêutico difícil6.

Tendo presente essa mudança de perspectiva, os artigos mais recentes procuram propor estratégias para superar as dificuldades e melhorar os encontros. O profissional dar-se conta de como os elementos singulares desse caso podem incidir para dificultar a relação; como ele se sente em tratar esse paciente, e como o seu atendimento entra na sua agenda do dia. Tomar, com antecedência, consciência da singularidade desse paciente pode criar as condições para um encontro com melhores resultados7. Trata-se de passar de uma atitude defensiva para colaborativa com os pacientes que se mostram difíceis, partilhando a responsabilidade pelo seu cuidado e usando estratégias de coping. Para isso, o profissional precisa coletar informações para entender a totalidade do doente em sua família e contexto sociocultural, refletindo sobre o modo de levar a consulta, facilitando o coping do paciente a partir desses dados e evitando o estresse no encontro8.

Para Fiester9, colocar o problema nas patologias físicas e mentais do paciente não é apenas uma explicação insuficiente, mas eticamente irresponsável, porque não explora dinâmicas causais mais aprofundadas. Por isso, defende que é necessário repensar completamente o modo de entender e tratar o paciente difícil, colocando o foco nas relações e considerando sua fratura e dificuldade como uma questão ética. Se o paciente não se experimenta bem tratado, dificultando a relação, embora o médico tenha tido as melhores das intenções, isso gera o dever ético, para o profissional, de reparar e emendar essa sensação. Essa obrigação independe se esse dano é real ou não, mas como é percebido. Se o comportamento do profissional é reativo em relação ao paciente, a solução é mudar a percepção sobre ele para poder melhorar o clima do encontro e a conduta do paciente na relação. Portanto, se o problema está nas relações difíceis, trata-se de uma questão ética para os profissionais9.

Se essa análise vale para qualquer relação clínica, muito mais quando ela acontece num serviço de atenção primária, porque ali existe um acompanhamento mais próximo inserido no contexto vivencial do paciente e um cuidado que se prolonga pelo percurso de vida da pessoa. Nesse contexto de acompanhamento da saúde, as relações difíceis são mais frequentes do que em qualquer outro serviço, sendo indispensável analisar essas situações para ajudar os profissionais a se darem conta dos elementos que estão interferindo na qualidade do encontro e a melhorar o clima da relação clínica. Por isso é importante avaliar a atenção primária na perspectiva do acolhimento, vínculo-responsabilização e qualidade da atenção, pois a efetivação desses conceitos pode incidir na construção da integralidade10.

Tendo presente o referencial teórico, se irá discutir um caso de difícil acompanhamento de uma usuária com um quadro severo de doença crônica, que surgiu numa pesquisa sobre problemas éticos na atenção primária de um município da região metropolitana de Porto Alegre. Discute-se o caso que foi relatado durante a discussão focal para a coleta de dados de um estudo qualitativo, desenvolvido em sete equipes de saúde da família, com vistas a reconhecer os problemas éticos que os profissionais experimentavam em sua prática e quais os cursos de solução para estes. Numa das equipes foi feito um longo relato, descrevendo detalhadamente: o quadro clínico, a prática de atendimento e as dificuldades do acompanhamento de uma usuária poli queixosa que causava muito estresse nos profissionais. Achou-se que valia a pena tomar esse relato como um caso emblemático de cuidado longitudinal na atenção primária a ser analisado e discutido. O projeto foi aprovado pelo CEP da universidade, com a Resolução 031/2013, e todos os profissionais assinaram o Termo de Consentimento.

Relato do caso

A longa descrição feita pela equipe foi resumida no relato abaixo, procurando recolher os elementos básicos importantes para entender o caso da usuária chamada, ficticiamente, de Rosa.

Rosa tem 67 anos, analfabeta, não tem filhos, foi profissional do sexo, atualmente vive com um companheiro, mas ausente, porque passa trabalhando fora. Por isso está sozinha a maior parte do tempo, atendendo a um bar e, como mora na frente de um cemitério, aproveita para vender flores. Rosa é cadeirante em decorrência de uma amputação anterior de membro inferior e apresenta graves lesões nos dedos da mão, ocasionadas por questões vasculares, diabete, hipertensão, acrescidas por tabagismo pesado e com grande dificuldade de adesão ao tratamento e mudança de estilo de vida.

Durante o processo de cuidado mostra-se poli queixosa solicitante telefonando diversas vezes para a unidade; dirige-se aos profissionais com palavras de baixo calão agredindo-os verbalmente, mas, por outro lado, cria intimidade presenteando a equipe com flores; à revelia da equipe, solicita a ajuda de uma vizinha manicure para curativos das lesões e a mesma, até retira unhas e tecidos necrosados, utilizando alicates de unha. Pautada por essa sua inciativa, Rosa sugere que a enfermeira realize os curativos da mesma forma que a vizinha, tentando conduzir o modo como a profissional deveria realizar o procedimento. A equipe acompanha a mesma três vezes na semana para os curativos, sendo os outros dias realizados por essa vizinha que não segue as orientações médicas e de enfermagem para realizá-los.

A complexidade do caso de Rosa demanda da equipe uma abordagem não tradicional pautada pela equidade, uma vez que o atendimento é realizado em seu domicílio, exigindo um atendimento permanente e diferenciado. Entretanto a própria equipe se pergunta se esse atendimento é equidade, pois a usuária ultrapassa os limites da relação ao solicitar ações domésticas que não fazem parte do cuidado e ao tentar conduzir a forma como a equipe deve agir nos procedimentos clínicos. Além disso, qualquer sucesso que a mesma apresente em relação as suas lesões, são, segundo ela, em decorrência do trabalho da vizinha, e isso é declarado verbalmente. A independência e desorganização de Rosa quanto às medicações e à falta de adesão ao tratamento com o consequente agravamento do quadro clínico criam sérias dificuldades para o cuidado. Essas dificuldades provocam nos profissionais o sentimento de frustração, impotência, desânimo, esgotamento e impaciência. Esses sentimentos levam a equipe a automatizar o atendimento e a fazer um revezamento dos profissionais no cuidado prestado.

Discussão do caso

Diante do caso de Rosa não se pode, simplesmente, culpar a usuária pela dificuldade do acompanhamento, mas perguntar-se quais elementos e circunstâncias interferem no relacionamento para tornar o encontro difícil para os profissionais. Por outro lado, é preciso questionar o modo como os profissionais veem a usuária, provocando neles atitudes defensivas que podem ser a origem dos próprios comportamentos estressantes da paciente Rosa. Isso significa assumir uma perspectiva ética para analisar o caso, em que é necessário colocar o acento na relação, especialmente nos dois sujeitos dessa relação, a usuária e os profissionais. Ambos têm de dar-se conta dos fios que tecem essa relação e como esses fios incidem na qualidade do encontro. Mas a iniciativa desse caminho de conscientização tem de ser dos profissionais, pois a insatisfação de Rosa torna-se, para eles, uma responsabilização ética. Eles terão de perguntar-se, tomar consciência e reagir a essa dificuldade, melhorando quanto possível a qualidade da relação clínica. Trata-se de superar a reação defensiva para uma atitude propositiva.

Três questões merecem análise no caso de Rosa, pois parecem incidir na qualidade do encontro terapêutico: 1) O acompanhamento definiu, com a usuária, as suas reais necessidades em saúde ou apenas leva em consideração as suas demandas? 2) O atendimento dos profissionais está pautado pela relação ou foi reduzido a uma pura automatização de procedimentos clínicos? 3) O modelo de clínica, aplicado ao caso, consegue ter presente a subjetividade da usuária ou responde a puros parâmetros biomédicos? Pode-se notar que os três elementos estão intimamente implicados e imbricados em qualquer atendimento clínico de atenção primária: necessidades de saúde, relação terapêutica e atenção à subjetividade.

Necessidades de saúde da usuária

Geralmente, a procura de um profissional da saúde por assistência responde à experiência de um carecimento, sendo sua intervenção entendida como o consumo de algum insumo ou procedimento que tem custo e caracterizada como demanda. O resultado dessa intervenção e a própria intervenção são reconhecidos como necessidades, e os serviços se organizam para responderem a essas demandas. Para racionalizar essas demandas, foram organizados os três níveis de atenção: primária, secundária e terciária. Essa estratificação responde ao consumo de uma diversidade de intervenções tecnológicas que respondem a necessidades conhecidas e naturalizadas como demandas, mas pode-se perguntar se não existem outras necessidades não nominadas que estão para além dessas intervenções definidas.

No caso estudado, os profissionais procuram responder da melhor maneira possível às demandas de Rosa, entendidas como procedimentos que possam melhorar o seu estado de saúde. Mas ficam decepcionados porque ela não adere ao tratamento, mas, ao contrário, prefere as medidas tomadas pela sua vizinha manicure quanto às graves lesões nos dedos de sua mão. Essa atitude deixa os profissionais estressados, mas não chegam a se questionar se Rosa não tem outras necessidades de saúde que não são solucionadas pelos procedimentos estritamente clínicos. Não se perguntam nem incentivam narrativas de Rosa sobre os seus projetos de felicidade11. O fato de ela confiar mais na manicure não é uma alternativa ao procedimento clínico da equipe, mas sinal de uma outra necessidade de saúde, a que os profissionais não respondem, ligada à estética pessoal e à sua antiga profissão, apontando para um projeto de felicidade. Em vez de estressar-se por essa aparente rebeldia, eles poderiam perguntar-se a que necessidade aponta essa atitude que não é satisfeita por eles. Mas, para isso, é necessário deixar que essas necessidades escondidas apareçam e sejam reconhecidas.

Por isso, Schraiber e Mendes-Gonçalves12 propõem a criação de espaços de emergência de necessidades na organização dos serviços que não são dominadas pelos profissionais. Trata-se de carecimentos da vida cotidiana, relacionados com o adoecimento e a recuperação, que não são assumidos pela ciência tradicional e não incluídos nos processos de atendimento. Isso significa resgatar e instaurar outros valores que foram negados pela racionalidade científica e excluídos da organização social, por estarem identificados com a subjetividade. Esse, certamente, é o caso de Rosa, sendo necessário criar, na organização do serviço, um espaço de reconhecimento de necessidades não respondidas.

Isso significa, segundo Schraiber e Mendes-Gonçalves12:

1) Evitar a redução das necessidades de saúde a processos fisiopatológicos nas concepções dos serviços, redução esta que tem impedido de compreender a diferença que há entre complexidade científica das patologias e a complexidade tecnológica do trabalho em saúde... 2) Revalorizar a busca por assistências progressivamente totalizadoras do cuidado produzido, ao invés da somatória dos atos especializados... 3) Instituir a dimensão subjetiva das práticas em saúde como parte da inovação tecnológica, revalorizando, ..., uma prática cujas relações interpessoais também resguardem o sentido humano das profissões em saúde. (p. 34)

No relato do caso, nota-se uma forte preocupação dos profissionais pelas necessidades de saúde ligadas a processos fisiopatológicos, demonstrada pela inquietação com as lesões nas mãos, inviabilizando um cuidado mais totalizador e desconsiderando a dimensão subjetiva interpessoal no uso das tecnologias de saúde.

Cecílio13 (p. 114-5) aponta para a importância de uma taxionomia das necessidades de saúde, que engloba: desfrutar de “boas condições de vida”, sejam elas funcionais e ambientais; poder acessar e consumir tecnologias de saúde, de todos os tipos, quando necessárias para recuperar e melhorar a saúde; estabelecer vínculo com uma equipe e/ou profissional como referência e confiança para o cuidado, e, por fim, alcançar níveis gradativos de autonomia para poder lidar com a saúde e levar a vida.

Rosa busca boas condições de vida, expressas em necessidades de saúde entendidas em sentido amplo e integral, muitas vezes não respondidas por procedimentos clínicos. Por isso, toma iniciativas para alcançar o seu bem-estar dentro do seu projeto de felicidade, solicitando tecnologias que melhorem seu estado; e, para isso, por um lado, quer vínculo com a equipe, chamando-os frequentemente para ações em seu favor, e, por outro, demonstrando autonomia, quando solicita a ajuda da vizinha manicure para necessidades que os profissionais não atendem.

Encontro terapêutico entre usuária e profissionais

A dinâmica desenvolvida no encontro terapêutico depende do modo de organizar os processos de trabalho num serviço de saúde, e essa organicidade depende dos elementos que configuram a micropolítica do trabalho em saúde. Aqui é preciso introduzir duas distinções de Merhy14 entre tecnologias duras, duras/leves e leves e entre trabalho morto e trabalho vivo em ato, essenciais para analisar essa micropolítica. A imbricação das diferentes tecnologias nos processos de trabalho é fundamental para entender a qualidade do encontro terapêutico. O encontro terapêutico de Rosa com a equipe é difícil, e essa dificuldade pode estar ligada ao papel das tecnologias nos processos de trabalho, que é determinante para a organização do serviço. Esse fato aponta para o segundo elemento que incide na relação difícil: a dinâmica do trabalho

Os três tipos de tecnologias que intervêm na dinâmica do trabalho são: as duras, que se identificam com os diferentes insumos e instrumentos técnicos usados no atendimento; as duras/leves, que compreendem os saberes necessários para definir o diagnóstico e a terapêutica; e as leves, que conformam a relação, a confiança e o vínculo que se estabelece no encontro entre o profissional e o usuário14. Os três tipos de tecnologias estão presentes na relação clínica de Rosa com a equipe: instrumentos e insumos para melhorar o seu estado; saberes para entender o caso e definir medidas terapêuticas; e, por fim, a tecnologia central neste caso: relação, acolhimento, vínculo e cuidado. A questão é: se o uso de técnicas e saberes acontece num contexto relacional de cuidado.

Dependendo da presença e implicação dessas diversas tecnologias na intervenção terapêutica, pode-se falar de trabalho vivo em ato ou de trabalho morto. O primeiro tem como acento a relação de vínculo que se estabelece entre o profissional e o usuário. O uso das outras tecnologias depende desse foco relacional que serve de contexto para a sua intervenção. Nesse sentido é um trabalho vivo, porque permanece aberto, pela relação que continua. Enquanto o trabalho morto seria aquele que acentua a realização de um procedimento, porque termina, morrendo na sua execução e no seu resultado esperado. Nada permanece do encontro, do produto alcançado, ao menos formalmente, já que o procedimento foi aplicado14.

A dinâmica do trabalho terapêutico realizado pelos profissionais não alcança os resultados esperados em Rosa, tornando a relação clínica difícil e estressante, porque o cuidado termina nos procedimentos aplicados, caracterizando o trabalho como morto. Tanto é isso que os profissionais estabeleceram um revezamento na ida à casa de Rosa para fazerem os curativos, por quererem fugir do encontro, automatizando, com isso, o próprio cuidado. Mas não é possível o cuidado, neste caso, sem relação de acolhimento e de vínculo que estão dificultados por empecilhos na dinâmica relacional. Nesse sentido, os profissionais estão mais preocupados com o êxito técnico, isto é, com a dimensão instrumental da sua ação, constatável pelos resultados clínicos mensuráveis dos seus procedimentos, do que com o sucesso prático que é a dimensão valorativa, demonstrada pelas implicações simbólicas, relacionais e materiais das ações terapêuticas na vida cotidiana de Rosa15.

Modelo clínico de cuidado da usuária

A atenção às necessidades de saúde de Rosa e a presença da dinâmica relacional no encontro terapêutico com a equipe dependem do modelo de clínica presente nos processos de trabalho do serviço. Em muitos casos, esse modelo já está naturalizado e automatizado a ponto de os profissionais e a equipe não se darem conta de como ele funciona, como acontece no relato do caso. A tomada de consciência desse modelo é a base para uma responsabilização ética dos profissionais.

Para o modelo tradicional, a clínica está baseada pela racionalidade instrumental expressa num conjunto de conhecimentos, artefatos e intervenções para prevenir, diagnosticar e tratar doenças com o objetivo de reverter ou controlar lesões ao funcionamento do corpo. Essa clínica abstrai do sujeito que sofre, de como esse sofrimento tem consequências sobre a biografia da pessoa, pois o que importa é a detecção do problema, definir a ação clínica e esperar o produto previsível e quantificável. As insuficiências dessa clínica tradicional levam a propor um modelo alternativo16. O insucesso terapêutico no caso de Rosa se deve à inconsciência da equipe quanto ao modelo de atendimento que está sendo usado no acompanhamento clínico da usuária. A solução seria os profissionais se darem conta desse caminho equivocado e buscarem uma via alternativa.

Essa via seria a proposta da clínica do sujeito16 que supera fragmentações e reducionismos biológicos, afirmando o papel ativo do sujeito na relação clínica por meio do eixo do vínculo que ajuda a reconhecer as reais necessidades da pessoa sob cuidado17. Os profissionais não estão conseguindo dar um papel ativo à Rosa no reconhecimento das suas necessidades de saúde e na definição dos seus itinerários clínicos. Isso significaria transformar o encontro terapêutico numa prática de conversação que possibilita narrar a vida e o sofrimento, sentindo-se acolhido18. Isso poderia significar trazer a manicure para essa conversação, já que ela se tornou o elo de confiança para Rosa, embora seja o pomo da discórdia com os profissionais.

Essa clínica ampliada do sujeito é a base para o cuidado, entendido como: “uma atenção à saúde imediatamente interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento físico e mental e, por conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde”11 (p. 22). Será que os profissionais estão abertos ao narrar de Rosa sobre os sentidos da sua experiência existencial de adoecimento? Esse conhecimento é fundamental para a equipe como contexto terapêutico para a aplicabilidade e a adaptação das diferentes tecnologias da saúde à particularidade do caso de Rosa. Do contrário, acontecem ruídos na relação clínica, que dificultam o encontro e o cuidado, por falta de capacidade no profissional: 1) de escutar e acolher a demanda da usuária; 2) de articular conhecimentos gerais e específicos para entender o problema, e 3) de inserir as tecnologias da saúde no projeto terapêutico individualizado da usuária19. Todos esses três ruídos estão presentes no acompanhamento terapêutico de Rosa devido à falta de escuta atenta ao seu contexto existencial de adoecimento.

Mas é necessário também ter presente que esse cuidado acontece em teia e depende de uma rede de atenção que está para além dos profissionais e da equipe local20. Certamente, o caso de Rosa necessita a assessoria de outros profissionais, como psicólogos e assistentes sociais, acessados a partir da rede, o que não acontece nesse caso. Mas, para viabilizar esse acesso à rede, os próprios profissionais precisam entender-se como atores em rede. A visão macropolítica das Redes de Atenção à Saúde depende da presença das redes na micropolítica dos processos de trabalho em saúde, porque o planejamento de arranjos organizacionais não pode ficar preso a uma matriz normativa com uma preocupação puramente estrutural, mas reconhecer a presença e a formação de microrredes no interior da organização como eficazes para a condução de projetos terapêuticos, pois o bom funcionamento e comunicação da rede ao nível macro do sistema depende do diálogo e das relações em rede ao nível micro do serviço21. Os profissionais têm dificuldade de se entenderem como atores de microrrede na sua própria unidade de saúde, porque revezam o cuidado de Rosa como forma de escapar do estresse de encontrá-la, e, por isso, automatizam, sem autogestão, o atendimento, não havendo uma autoanálise em grupo para potencializar a presença da sua subjetividade, criando novos percursos terapêuticos na prática do cuidado de Rosa.

Considerações finais

O caso de Rosa é emblemático para analisar os “nós” e ruídos que dificultam e tornam difícil uma relação clínica. O problema não está na personalidade de Rosa, mas na relação que se estabelece entre ela e os profissionais. É mais fácil chamar o doente de difícil, do que se perguntar sobre quais elementos estão interferindo para que o encontro não seja benéfico para a enferma e agradável para o profissional. Esse questionamento sobre a qualidade da relação cabe ao profissional, porque ele tem a responsabilidade ética pelo cuidado do doente. Três questões foram discutidas para análise do caso, reveladoras da causa de ruídos na relação: necessidades de saúde, os processos de trabalho e o modelo de clínica.

Os resultados podem contribuir para a prática de profissionais da atenção primária que lidam com usuários crônicos de difícil acompanhamento. Antes de mais nada, é necessário que eles conversem em equipe sobre esses casos para pactuarem caminhos de superação da relação difícil, sem rotular o usuário como difícil. Para isso, não reduzir a discussão do caso aos puros aspectos clínicos, mas trazer para a conversa os aspectos que estressam a relação e perguntar se o paciente não tem outras necessidades que eles não conseguem responder, tendo presente um leque mais amplo de demandas de saúde. Para que emerjam essas necessidades específicas, é preciso que a aplicação dos procedimentos terapêuticos aconteça num contexto relacional que facilite o diálogo e a comunicação, possibilitando, ao usuário, expressar a experiência subjetiva do seu adoecimento, relatando como a doença crônica afeta o seu modo de levar a vida e seus projetos de felicidade.

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