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O debate sobre aborto e Zika: lições da epidemia de AIDS

O debate sobre aborto e Zika: lições da epidemia de AIDS

Autores:

Thais Medina Coeli Rochel de Camargo

ARTIGO ORIGINAL

Cadernos de Saúde Pública

versão impressa ISSN 0102-311Xversão On-line ISSN 1678-4464

Cad. Saúde Pública vol.32 no.5 Rio de Janeiro 2016 Epub 17-Maio-2016

http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00071516

A epidemia de Zika renovou as discussões sobre o direito ao aborto no Brasil. O debate atual é similar às discussões sobre rubéola que ocorreram em vários países em meados do século XX. No Brasil, contudo, esse debate nunca ocorreu. Na época, o aborto não era objeto de debate público e esse silêncio permaneceria até o fim dos anos 1970 1. Ainda assim, existe um caso nacional que é de interesse ao debate atual e ele diz respeito ao HIV.

Quando a epidemia de AIDS teve início, a maioria dos países desenvolvidos já havia legalizado o aborto. No Brasil, entretanto, o aborto era, e segue sendo, em grande medida ilegal. No início dos anos 1990, o número crescente de mulheres soropositivas, aliado à falta de tratamento efetivo para a AIDS, levou à discussão sobre se essas mulheres deveriam ter o direito à interrupção da gravidez. Essa exceção nunca foi adicionada à legislação e o posterior desenvolvimento de tratamentos que não apenas tornaram a AIDS administrável, mas também reduziram o risco de transmissão vertical, retirou o propósito da discussão. De todo modo, ao contrastar as duas discussões, podemos compreender melhor os percursos do debate sobre aborto no Brasil e melhor nos posicionar nesse debate.

A primeira diferença digna de nota entre os dois debates diz respeito aos atores que o protagonizaram no Congresso Nacional. No início dos anos 1990, todos os três projetos de lei que discutiam HIV e aborto visavam a expandir o direito ao aborto no Brasil. Dois - PL 2.023/1991 e PL 3.005/1992 - visavam exclusivamente a tornar o aborto legal para mulheres soropositivas, enquanto o terceiro - PL 1.174/1991 - visava a tornar o aborto legal em casos de "enfermidade grave e hereditária" do nascituro, entre os quais os autores incluíam a AIDS. Já em 2016, o único projeto de lei que diz respeito a aborto e Zika - PL 4.396/2016 - visa a aumentar a pena "quando o aborto for cometido em razão da microcefalia ou qualquer outra anomalia do feto".

Essa mudança reflete uma dinâmica mais ampla presente no Congresso Nacional. No momento em que o Brasil retornava à democracia, a maioria dos projetos de lei sobre aborto visavam a legalizá-lo ou expandir as exceções à lei. Nos últimos vinte anos, essa situação se reverteu 2, especialmente devido ao número cada vez maior de parlamentares evangélicos. Se os defensores do direito ao aborto nunca foram bem-sucedidos em aprovar projetos de lei, eles pelo menos foram capazes de impedir novas restrições ao acesso à interrupção da gravidez e usaram seus projetos como forma de ajudar a estabelecer os termos do debate. A legislatura atual deixa muito pouco espaço para isso. Qualquer percurso que exija a mudança da legislação vigente dependerá de uma mobilização considerável para eleger parlamentares mais progressistas para a Câmara dos Deputados e o Senado Federal.

A segunda grande diferença diz respeito ao alcance do debate público. Uma busca nos arquivos de quatro grandes jornais brasileiros - Jornal do Brasil, O Globo, O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo - entre 1989 e 1999 levou à identificação de apenas um artigo sobre direito ao aborto para mulheres soropositivas 3. Mesmo uma busca superficial em qualquer ferramenta de busca identifica artigos sobre aborto e Zika de todos os principais veículos de notícias do país, bem como de várias publicações internacionais. Fica claro que um número muito maior de pessoas está agora prestando atenção, e isso não necessariamente é positivo.

Htun 4 afirma que as reformas iniciais às leis do aborto que ocorreram na década de 1940 no Brasil foram resultado de "deliberações fundamentadas entre elites" e que o público "quase não esteve envolvido" (p. 145). Mesmo o movimento feminista não estava envolvido com o tema naquele momento 5. Mesmo quando passaram a se mobilizar pelo direito ao aborto, no fim dos anos 1970, as feministas tiveram mais sucesso atuando em contextos mais técnicos e restritos, mais especificamente, os órgãos da área de saúde nos níveis municipal e federal.

Feministas, ativistas do movimento da reforma sanitária e associações profissionais médicas aliaram-se para lutar pela criação de serviços de aborto legal, tendo sucesso primeiro na cidade de São Paulo, depois no nível nacional 6. No primeiro caso, uma portaria emitida pela então-prefeita Luiza Erundina criou os serviços. No segundo, o Ministério da Saúde editou uma Norma Técnica estabelecendo as diretrizes para o atendimento a vítimas de violência sexual, o que, por sua vez, levou à criação de serviços de aborto legal na maioria dos estados. Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pela inclusão da anencefalia entre as exceções à lei que proíbe o aborto. Nenhum desses órgãos envolve participação pública massiva, e eles tampouco podem ser considerados fóruns especialmente democráticos para a tomada de decisão.

O aborto finalmente tornou-se objeto de discussões mais amplas como resultado das ações de grupos conservadores. Parlamentares conservadores, especialmente os ligados às igrejas evangélicas e católica, têm tornado o aborto cada vez mais um foco de suas campanhas e atuação legislativa 7. O aborto foi uma questão central na eleição presidencial de 2010 e muitos acreditam que o apoio prévio da então-candidata Dilma Rousseff à legalização do aborto prejudicou sua campanha. O aborto provavelmente não teve igual importância na eleição de 2014 apenas porque todos os principais candidatos tornaram pública sua oposição à legalização mesmo antes do início da campanha eleitoral.

É mais provável que os brasileiros apoiem restrições ao acesso a abortos legais e seguros do que a legalização da prática: a maioria se opõe à legalização do aborto e uma maioria um pouco menor se opõe ao direito ao aborto em casos de microcefalia 8. Como mudar essa realidade é algo que ativistas pró-direito ao aborto vêm enfrentando por muitos anos. Ganhar o apoio público será cada vez mais importante, dado que um Congresso Nacional cada vez mais conservador arrisca fechar as portas até das áreas do governo que anteriormente se mostraram receptivas à legalização do aborto. No Brasil, afinal, presidentes precisam formar amplas coalizões para governar 9, o que pode exigir concessões aos grupos mais conservadores do Congresso Nacional.

A última grande diferença entre os dois debates é a questão da judicialização. No seu livro sobre direitos reprodutivos no Brasil 10, Miriam Ventura afirma não ter encontrado nenhuma decisão judicial relacionada à AIDS e à saúde reprodutiva. Essa ausência de decisões contrasta com o número crescente de mulheres que buscaram os tribunais para interromper legalmente gravidezes de fetos anencéfalos a partir dos anos 2000. Isso levou, em 2004, à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que pedia a inclusão da anencefalia entre as exceções à proibição do aborto. Em 2012, o STF decidiu em favor da ADPF, afirmando que, dado que fetos anencéfalos não sobrevivem após o parto, não se perde nenhuma vida como resultado de um aborto e, portanto, não há crime. Além disso, forçar mulheres a levarem a termo gravidezes apenas para que seus filhos morram meras horas ou dias depois de nascer é uma violação de seu direito a não serem torturadas 11.

Essa tendência em direção à judicialização também está presente no caso da Zika. O mesmo grupo responsável pela ADPF da anencefalia (Anis - Instituto de Bioética) está preparando uma nova ADPF, desta vez para garantir o direito ao aborto em casos de microcefalia 12. A decisão anterior não é garantia de sucesso. Existe uma diferença fundamental entre anencefalia e microcefalia, algo que a diretora da Anis, Debora Diniz, reconhece: fetos anencéfalos são incapazes de sobreviver após o parto, enquanto crianças com microcefalia sobrevivem na maioria dos casos. Essas crianças também terão deficiências graves, o que gera preocupações quanto a abortos eugênicos. Mesmo que o STF termine por decidir em favor do direito das mulheres ao aborto nessas circunstâncias, é provável que demore a chegar a uma decisão.

Neste ponto, o paralelo com o debate sobre HIV é útil não devido a diferenças, mas devido a similaridades. Também esperava-se que bebês soropositivos sobrevivessem após o parto, mesmo antes de tratamentos antirretrovirais estarem amplamente disponíveis. Havia a preocupação em relação a abortos eugênicos, mas também em relação à possibilidade de que o aborto se tornasse não uma opção, mas uma exigência para mulheres soropositivas devido ao estigma e à pressão social 10. Ainda que a Zika não carregue o mesmo estigma que a AIDS, as mulheres grávidas de fetos com microcefalia ainda assim se encontram sob pressões sociais conflitantes. Enquanto elas são legalmente obrigadas a levar as gravidezes a termo, seus parceiros em muitos casos as abandonam, e elas são forçadas a enfrentar sozinhas os desafios de criar um filho com deficiências graves. Isso precisa ser levado em consideração nas mobilizações pelo seu direito à escolha.

Em última análise, esse foco - o direito à escolha, e não o direito ao aborto - precisa ser o objetivo de qualquer mobilização. A diferença pode parecer sutil. Não é. Como Ferree 13 aponta, nos Estados Unidos, o direito ao aborto foi obtido com base num direito à privacidade que limitou fortemente a obrigação do Estado de pagar por abortos ou de fornecer apoio a mães pobres. Ao desconectar a luta pelo direito ao aborto das circunstâncias sociais em que mulheres engravidam, interrompem gravidezes e criam seus filhos, as feministas americanas num certo sentido "abandonaram" mulheres pobres e negras, que estão "desproporcionalmente entre as mulheres que não acreditam que podem escolher ter um filho e que se sentem compelidas e coagidas a realizar esterilizações, adoções ou abortos" (13 (p. 336). Esse ponto é particularmente relevante para bebês com microcefalia causada pela Zika, que necessitarão de cuidados médicos e apoio extensos e cujas mães são em sua grande maioria pobres. O direito à escolha deve então ser tanto o direito legal ao aborto, incluindo aí o acesso ao aborto legal e seguro na rede pública de saúde, quanto o direito a levar a gravidez a termo, com todo o apoio social. Ativistas pró-escolha devem se unir ao movimento de pessoas com deficiência para garantir que essas crianças e suas mães tenham acesso a todos os serviços de que necessitam. A Anis já indicou que isso será parte da ADPF da microcefalia, mas não podemos deixar essa questão para a justiça. Ainda que estejamos em meio a uma crise política mais ampla, precisamos nos comprometer a levar adiante um debate público amplo sobre o aborto, que finalmente possa levar a opinião pública e as visões dos legisladores em direção ao direito à escolha.

REFERÊNCIAS

1. Rocha MIB. A questão do aborto no Brasil: o debate no Congresso. Revista Estudos Feministas 1996; 4:381-98.
2. Rocha MIB. A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese. Rev Bras Estud Popul 2006; 23:369-74.
3. Amato Neto V. Aids e aborto. O Estado de S. Paulo 1989; 19 set.
4. Htun M. Sex and the state: abortion, divorce, and the family under Latin American dictatorships and democracies. New York: Cambridge University Press; 2003.
5. Pinto CRJ. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo; 2003.
6. Villela W, Lago T. Conquistas e desafios no atendimento das mulheres que sofreram violência sexual. Cad Saúde Pública 2007; 23:471-5.
7. Gomes EC. A religião em discurso: a retórica parlamentar sobre o aborto. In: Duarte LFD, Gomes EC, Menezes RA, Natividade M, organizadores. Valores religiosos e legislação no Brasil: a tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Garamond; 2009. p. 45-70.
8. Ferraz L. Maioria dos brasileiros desaprova aborto mesmo com microcefalia. Folha de S. Paulo 2016; 29 fev.
9. Figueiredo AC. Government coalitions in Brazilian democracy. Brazilian Political Science Review 2007; 1:182-216.
10. Ventura M. Direitos reprodutivos no Brasil. Brasília: Fundo de População das Nações Unidas; 2009.
11. Diniz D, Vélez AC. Aborto na Suprema Corte: o caso da anencefalia no Brasil. Revista Estudos Feministas 2008; 16:647-52.
12. Senra R. Grupo prepara ação no STF por aborto em casos de microcefalia. BBC Brasil 2016; 29 jan.
13. Ferree MM. Resonance and radicalism: feminist framing in the abortion debates of the United States and Germany. Am J Sociol 2003; 109:304-44.