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O desafio da produção de conhecimento sobre a reforma psiquiátrica brasileira

O desafio da produção de conhecimento sobre a reforma psiquiátrica brasileira

Autores:

Pedro Gabriel Godinho Delgado

ARTIGO ORIGINAL

Ciência & Saúde Coletiva

versão impressa ISSN 1413-8123

Ciênc. saúde coletiva vol.20 no.2 Rio de Janeiro fev. 2015

http://dx.doi.org/10.1590/1413-81232015202.17692014

Várias indagações relacionadas ao campo da atenção psicossocial estão presentes neste número, que comemora os 20 anos de decisiva contribuição da Revista Ciência & Saúde Coletiva à produção de conhecimento na saúde pública do Brasil. São temas diversificados, como: perfil de moradores de hospitais psiquiátricos em processo de desinstitucionalização e estudo etnográfico de pacientes egressos; dispensação de medicamentos nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial); construção de redes de cuidado no território; acolhimento dos familiares; clínica nas instituições de saúde mental; e, revisões sobre saúde mental na atenção primária e redes assistenciais de atenção a usuários de drogas. Na aparência tão heterogêneos, todos fazem parte do mesmo repositório de enigmas da reforma psiquiátrica.

Na conhecida fórmula de Wittgenstein,“o enigma não existe” porque sua simples enunciação já constitui o limiar do trabalho de desvelamento. A reforma psiquiátrica e sua realização prática no território e na política pública, que designamos como atenção psicossocial, têm tido imensas dificuldades para explorar e ampliar seu baú de enigmas. Existem barreiras que limitam a produção do conhecimento neste campo, seja pela fragilidade de estrutura e processo, da rede de serviços de saúde mental do SUS; seja pela pequena oferta de programas de pós-graduação stricto sensu nesta área, ou pela ausência de agenda de prioridades de pesquisa construída por convocação da política pública de saúde mental. A política de financiamento à pesquisa no Brasil privilegia áreas já consolidadas (como a biomedicina e a epidemiologia), sendo extremamente restritiva ao desenvolvimento de novos temas.

Ocorreu no Brasil uma mudança profunda na saúde mental, com a substituição do paradigma hospitalocêntrico pelo modelo de serviços comunitários fincados no território, intersetoriais, sustentados na ética da inclusão social e autonomia do usuário. Existem mais de 2.200 CAPS no país, com notável interiorização para pequenos municípios. Todas as 37.000 equipes de saúde da família defrontam-se, com maior ou menor capacitação técnica, cotidianamente, com demandas concretas de pessoas com sofrimento mental. Os transtornos mentais alcançam magnitude epidemiológica que tornam a saúde mental um dos principais pontos da agenda estratégica da Organização Mundial de Saúde. Eis aí um imenso campo empírico para a produção de conhecimento, urgente e necessário, que seja capaz de enfrentar desafios novos, interrogar sobre barreiras de acesso, formação de profissionais para a saúde mental do SUS, parâmetros de funcionamento efetivo de novos dispositivos (como consultórios de rua, programas de economia solidária, residências terapêuticas, equipes de atendimento assertivo no território), e outros temas. Uma busca na literatura científica brasileira revelará a visível rarefação dos temas da atenção psicossocial, se comparados ao vigor da produção científica da pesquisa biomédica (psiquiatria, neurociências), e da epidemiologia e saúde pública. é um desafio crucial a ser enfrentado para assegurar a qualificação e sustentabilidade da rede pública de saúde mental.

Cabe à política pública de saúde mental dialogar ativamente com as instituições de pós-graduação e pesquisa, e com a gestão e trabalhadores das redes de serviço do SUS, de modo a construir uma agenda de prioridades de pesquisa em atenção psicossocial, lançando pontes entre a universidade e os serviços. A produção e a difusão de conhecimento, em processo compartilhado com trabalhadores, usuários e familiares, devem tornar-se componente estratégico essencial da reforma psiquiátrica.