versão On-line ISSN 2317-6431
Audiol., Commun. Res. vol.20 no.4 São Paulo out./dez. 2015
http://dx.doi.org/10.1590/2317-6431-2015-1536
Encontra-se bem estabelecido na literatura que a habilidade de percepção da fala passa por uma reorganização no decorrer do primeiro ano de vida, evidenciando uma mudança de sensibilidade para discriminação dos contrastes fônicos, nesse período.
De forma geral, descreve-se que a criança perde a sensibilidade para contrastes não nativos e aumenta a sensibilidade para os contrastes de sua língua, em função do aumento de sua idade(1–4).
A percepção de fala, por sua vez, tem sido entendida como uma capacidade que envolve tanto as habilidades de discriminação, quanto de categorização(5).
A habilidade de discriminação é definida como a capacidade de perceber a diferença entre dois sons, em que o ouvinte não é obrigado a atribuir um significante ao som em questão, enquanto a categorização é vista como uma habilidade em que o ouvinte deve, não apenas discriminar padrões acústicos, mas também organizar esses padrões de forma consistente, em suas categorias fonêmicas apropriadas(6).
Vários estudos, sobretudo internacionais, têm buscado investigar as habilidades de discriminação e categorização considerando diferentes grupos etários.
Nesses estudos(7,8), encontram-se algumas evidências de que a categorização das propriedades acústicas dos exemplares de cada categoria fonética é mais bem definida de acordo com o aumento da idade da criança. Adicionalmente, outras investigações(5,6) apontam que, aos 12 anos de idade, as crianças ainda não apresentam uma categorização consistente, tal como a que é apresentada pelos adultos, uma vez que, nesta faixa etária, a fronteira fonêmica e o declínio das funções de classificação ainda estão se estabilizando. Porém, o período em que a categorização fonêmica da criança atinge o mesmo desempenho do adulto, ainda não foi estabelecido(9). O que se observa, no que se refere à habilidade de categorização, é uma crescente melhora no desempenho perceptivo-auditivo das crianças, em função do aumento da idade(1,3,4,7,8,10–12).
Pode-se, portanto, depreender da literatura consultada, que a idade parece exercer influência sobre o processo de aquisição fonológica, do ponto de vista perceptivo-auditivo, e que, embora exista uma indicação de como ocorre essa influência, ainda não é bem explorado o modo pelo qual essa habilidade se desenvolve nas crianças, no decorrer do tempo.
Observa-se, ainda, que os estudos existentes visaram, em sua maioria, investigar o desenvolvimento da habilidade perceptual-auditiva, comparando o desempenho entre grupos de faixas etárias muito distintas. Além disso, os estudos envolveram um pequeno número de sujeitos participantes, enfatizaram a influência das pistas acústicas na tarefa de identificação e investigaram a maneira pela qual a identificação perceptual dessas pistas acústicas se desenvolve com o aumento da idade.
Portanto, o objetivo do presente estudo foi investigar o efeito da idade na identificação das vogais tônicas do Português Brasileiro em crianças, comparando a acurácia perceptivo-auditiva de dois grupos de crianças, o tempo de reação e o padrão de erros, bem como correlacionar a idade com a acurácia perceptivo-auditiva.
Acredita-se que a investigação proposta poderá levar a ganhos científicos, como: contribuir para a compreensão da aquisição perceptivo-auditiva dos contrastes vocálicos; fornecer subsídios para futuras teorias sobre aquisição perceptivo-auditiva; fornecer subsídios para a prática fonoaudiológica, tanto na avaliação (proporcionando informações normativas sobre a aquisição perceptivo-auditiva), quanto na terapia.
Trata-se de um estudo transversal e prospectivo.
A amostra foi constituída por dois grupos de crianças, de diferentes faixas etárias: Grupo 1 (G1) - crianças entre 5 e 7 anos de idade; Grupo 2 (G2) – crianças entre 7 e 9 anos de idade. Após aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), sob o protocolo de número 132/2010, foram coletados dados de 155 crianças que frequentavam a Escola de Ensino Fundamental Profº Antônio Gomes de Oliveira, da cidade de Marília, distribuídas da seguinte forma:
–. G1: 76 crianças de 5 anos e 4 meses a 7 anos e 5 meses de idade (média de idade de 76 meses e 8 dias), que frequentavam o 1º e 2º ano do ensino fundamental;
–. G2: 79 crianças de 7 anos e 6 meses a 9 anos de idade (média de idade de 77 meses e 8 dias), que frequentavam o 3º e 4º ano do ensino fundamental.
Dentre os participantes do G1, 41 eram do gênero feminino e 35 do gênero masculino; dentre os participantes do G2, 39 eram do gênero feminino e 40 do gênero masculino.
Como critério de inclusão foi considerado: as crianças não deveriam apresentar quaisquer problemas otológicos e/ou auditivos, neurológicos e de linguagem. Como critério de exclusão considerou-se: todas as crianças que apresentaram mais de 80% de acerto na etapa de sondagem do experimento realizado.
Os responsáveis por todas as crianças participantes da pesquisa permitiram, por escrito, sua participação, a partir dos esclarecimentos contidos no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Foi utilizado o Instrumento de avaliação da Percepção de Fala (PERCEFAL)(13–16) e replicado o mesmo procedimento experimental de um estudo anterior(17). Em linhas gerais, o procedimento experimental consistiu em três etapas distintas: reconhecimento das palavras do experimento (sondagem), fase treino e fase teste.
O procedimento de identificação foi realizado com cada criança, individualmente, em uma sala silenciosa da escola de ensino fundamental que as crianças frequentavam na época da coleta de dados.
O tempo total do experimento não ultrapassou 15 minutos, com cada criança.
Foram utilizados os seguintes critérios para análise: (a) acurácia perceptivo-auditiva (porcentagem de erros, acertos e não respostas); (b) tempo de reação dos erros e acertos; (c) padrão de erro na identificação do contraste entre as vogais tônicas; (d) correlação entre idade e acurácia.
A análise do padrão de erro foi organizada em função dos seguintes parâmetros: (1) altura das vogais (subclassificadas em alta, média e baixa); (2) direção anterior/posterior (subclassificada em anterior, central (vogal /a/) e posterior); (3) sentido do erro no interior do espaço vocálico, ou seja, se o erro se direcionava de uma vogal central para uma vogal periférica, ou no sentido contrário.
Na análise estatística, foram utilizados os seguintes testes: teste Qui-quadrado, na comparação da acurácia em função dos grupos; teste T, na comparação entre o tempo de reação dos erros e dos acertos; coeficiente de correlação linear de Spearman, na correlação entre as variáveis “idade” e “acurácia perceptivo-auditiva”.
Destaca-se que a correlação é uma medida de relação entre duas ou mais variáveis. O seu coeficiente pode variar de −1,00 a + 1,00, sendo que 1,00 representa perfeita correlação negativa, enquanto +1.00, perfeita correlação positiva. Já o valor 0,00 indica falta de correlação. Estabeleceu-se nível de significância α<0,05 e intervalo de confiança de 95%.
Ao comparar-se a acurácia perceptivo-auditiva entre G1 e G2, verificou-se que o grupo de crianças mais velhas (G2) apresentou melhor acurácia perceptivo-auditiva (Qui-quadrado=71,15; p>0,00) do que o grupo de crianças mais novas (Figura 1).
Sequencialmente, ao considerar-se o tempo de reação (reaction time) utilizado pelas crianças, para tomada de decisão na tarefa de identificação, constatou-se que a média do tempo de reação para o G1, referente aos erros, foi de 1780,335 ms, enquanto a média do tempo de reação dos acertos foi de 1594,454 ms. Paralelamente, para o G2, a média do tempo de reação para os erros foi de 1354,596 ms, enquanto a média do tempo de reação para os acertos foi de 1350,772 ms.
Observou-se uma diferença no tempo de reação entre o G1 o G2, tanto para o tempo de reação dos acertos (t=4,54, p>0,00), quanto para o tempo de reação dos erros (t=3,51, p>0,00). As crianças do G1 apresentaram um tempo de reação sempre superior ao das crianças do G2 (Figuras 2 e 3).
O padrão dos erros realizados pelas crianças na tarefa de identificação foi organizado em função dos parâmetros propostos (Tabela 1). Observou-se que, de modo geral, os grupos não se diferenciaram em termos do padrão de erros observados, exceto para os erros envolvendo o parâmetro “altura”. Especificamente, ao analisar o sentido dos erros no interior do espaço vocálico, verificou-se prevalência dos erros no sentido menos periférico para o mais periférico, em ambos os grupos.
Padrão de erro | Grupos | Análise estatística | ||
---|---|---|---|---|
G1 | G2 | X² | Valor de p | |
Vogais altas | 24% (54/223) | 40,66% (37/90) | 8,77 | 0,0031* |
Vogais médias | 63% (140/223) | 40,66% (37/90) | 13,3 | 0,0003* |
Vogais baixas /a/ | 13% (29/223) | 18,68% (16/90) | 1,75 | 0,1862 |
Vogais anteriores | 45% (100/223) | 46% (42/90) | 0 | 0,8945 |
Vogal central /a/ | 13% (29/223) | 19% (17/90) | 1,75 | 0,1862 |
Vogais Posteriores | 42% (94/223) | 35% (31/90) | 1,18 | 0,277 |
Mais perif. - Menos perif. | 25,18% (56/223) | 23,08% (21/90) | 0,18 | 0,6736 |
Menos perif. - Mais perif. | 74,82% (167/223) | 76,92% (69/90) | 0,18 | 0,6736 |
Valores significativos (p≤0,05) – Teste Qui-quadrado
Legenda: perif. = periférica
Finalmente, ao se realizar a correlação entre idade e acurácia, verificou-se que as crianças do G1 apresentaram correlação positiva com a idade (Spearman R=0,25; p=0,02), ou seja, quanto maior a idade, maior a acurácia. No entanto, isso não ocorreu com as crianças do G2 (Spearman R=0,11; p=0,30) (Figuras 4 e 5).
Em relação à acurácia perceptivo-auditiva, observou-se melhor desempenho do G2 (97%) em comparação ao G1 (92%). Esse resultado corrobora os achados de um estudo anterior(17), que pesquisou o desempenho perceptivo-auditivo em um grupo de crianças com faixa etária menor. Essas crianças apresentaram desempenho perceptivo-auditivo inferior, em relação aos achados do presente estudo, sugerindo a melhora do desempenho em função do aumento da idade. Comparativamente ao estudo citado, o maior índice de acurácia para a classe das vogais, para o grupo de crianças mais velhas, pode ser explicado pelo fato de que a percepção das propriedades acústicas dos exemplares de cada categoria fonética torna-se mais bem definida com o aumento da idade da criança(9,10).
Em relação ao tempo de resposta obtido pelos grupos, o G1 apresentou um tempo de reação superior ao das crianças do G2, ou seja, as crianças mais jovens necessitaram de maior tempo na tomada de decisão, durante o processamento linguístico. Alguns autores(18) enfatizam que a inter-relação entre a maturação cerebral e a experiência linguística, na qual as propriedades funcionais das áreas cerebrais temporais superiores e sua conectividade com outras regiões cerebrais (como a motora e visual), auxiliam na aprendizagem de línguas e funcionam como reforço da representação linguística e construção da língua nativa. Neste sentido, podemos inferir que as crianças do G2 tiveram menor tempo de processamento neurolinguístico por apresentarem maior tempo de neuromaturação e experiência linguística no decorrer de seu desenvolvimento, em comparação com o grupo de crianças mais novas. Ou seja, a relação entre esses fatores funciona como reforçador da representação linguística, o que pode influenciar na diminuição ou no aumento do tempo necessário na tomada de decisão, por parte dos sujeitos.
Quanto ao padrão de erro realizado pelos dois grupos, pode-se fazer alguns destaques. O primeiro deles refere-se ao fato de o parâmetro “altura” apresentar maior porcentagem de erro pelo G2, enquanto o parâmetro ”anteroposterior” não apresentou diferença estatística entre os grupos. Este achado pode ser explicado a partir de um estudo(19) que propõe o modelo denominado Natural Referent Vowel (NRV) para explicar as assimetrias na percepção das vogais, isto é, a existência de diferentes graus de similaridade perceptivo-auditiva entre vogais(17).
O modelo NRV refere que as vogais com propriedades acústico-articulatórias extremas (periféricas no espaço vocálico) agem como vogais de referência natural, que atraem a atenção infantil em virtude da convergência dos formantes, ou do que os autores chamam de “focalização” e proporcionam formas de percepção da língua mais estáveis para a criança(19).
Com base no Modelo NRV, parece que as crianças mais novas estariam mais ancoradas nas vogais denominadas focalizadas (vogais da extremidade do espaço vocálico), do que as crianças mais velhas, justificando o menor número de erros envolvendo as vogais altas, como /i/ e /u/.
Outro destaque a ser discutido é que ambos os grupos apresentaram maiores dificuldades de identificação, no sentido menos periférico do triângulo vocálico para o mais periférico, ou seja, ambos os grupos de crianças pareceram se apoiar em parâmetros acústico-articulatórios das vogais periféricas /a/, /i/ e /u/. De acordo com um estudo(20), os autores também encontraram a presença de assimetrias direcionais (do sentido mais periférico para o menos periférico) em seus dados. Os autores relataram que as assimetrias direcionais parecem ser uma característica forte e previsível na percepção infantil das vogais, pelo fato de as vogais periféricas fornecerem um quadro perceptual padronizado e estável para a percepção da criança. Desse modo, pode-se inferir que, quando o estímulo alvo envolve características acústico-articulatórias menos proeminentes, as crianças apresentam maiores dificuldades de identificação, respondendo, portanto, como sendo uma vogal periférica. Tendo isso em vista, parece que as características das vogais menos periféricas - vogais médias altas e médias baixas - são mais difíceis de serem identificadas.
Por último, destaca-se, por um lado, a correlação positiva entre idade a acurácia para o G1 e, por outro lado, a não correlação entre a acurácia e a idade das crianças do G2. Este achado sugere que, embora exista uma melhora na acurácia em função da idade, até os 7 anos, há uma estabilização da aquisição da classe das vogais por parte das crianças do segundo grupo, crianças de 9 anos de idade. A partir da literatura, observamos a descrição sobre uma aquisição gradual, do ponto de vista da percepção auditiva(20,21). Segundo um desses autores(20), ao contrário do ponto de vista da produção de fala, o critério para a aquisição fonológica receptiva é a capacidade de vincular um som e uma distinção de significado. Já os outros(21), apontam para uma aquisição receptiva de caráter gradiente e concluem afirmando que a aquisição da percepção auditiva é complexa e que seu desempenho se estabiliza de maneira mais lenta.
Em resumo, nossos achados contribuem no sentido de apontar para a aquisição gradual das vogais tônicas, do ponto de vista perceptivo-auditivo e de sugerir que a sua estabilização parece ocorrer em torno dos 9 anos de idade. Assim, o fonoaudiólogo, ao trabalhar com a aquisição dos contrastes vocálicos, deve levar em consideração, não somente a idade da criança no momento de avaliar a percepção de contrastes vocálicos, como também a natureza do erro. Ou seja, há erros mais previsíveis no desenvolvimento, como aqueles que ocorrem com as vogais não periféricas.
Os resultados sugerem melhora do desempenho na tarefa de identificação de vogais tônicas em função do aumento da idade. O grupo de crianças mais velhas (G2) apresentou melhor acurácia perceptivo-auditiva, quando comparada à acurácia do grupo de crianças menores (G1).
O tempo de reação do G1 sempre se mostrou superior ao das crianças do G2, tanto para os acertos quanto para os erros.
Em relação ao padrão de erros, de um modo geral, os grupos não se diferenciaram, exceto para os erros envolvendo o parâmetro altura.
A análise da correlação entre idade e acurácia mostrou que as crianças do G1 apresentaram correlação positiva com a idade. No entanto, isso não ocorreu para as crianças do G2.
A habilidade perceptivo-auditiva, no que diz respeito à identificação de contrastes vocálicos, parece ocorrer de forma gradativa e se estabilizar aos 9 anos de idade.