versão On-line ISSN 2317-1782
CoDAS vol.31 no.2 São Paulo 2019 Epub 01-Abr-2019
http://dx.doi.org/10.1590/2317-1782/20182018022
Ao longo do desenvolvimento infantil, uma das habilidades mais significativas para a evolução das funções comunicativas é a de narrar histórias. Esta habilidade é utilizada para relatar experiências próprias ou descrever fatos a partir da percepção de relações de temporalidade, causalidade e intencionalidade(1-3). O desenvolvimento da narrativa envolve a compreensão da existência de personagens, do papel que desempenham em diferentes cenários e das relações que estabelecem com outros personagens, assim como a própria habilidade de explicitar estas relações verbalmente.
Devido à complexidade deste processo, é natural que haja grande variabilidade do tipo e qualidade das narrativas elaboradas pelas crianças ao longo do desenvolvimento. Esta variabilidade depende em grande parte de fatores linguísticos(4) (e.g. conhecimento semântico-lexical e morfossintático), cognitivos (e.g. compreensão de relações temporais, causais e de intencionalidade dos personagens) e sociais (escolaridade, nível socioeconômico, tipo de escola).
Os fatores linguísticos que influenciam o desenvolvimento da narrativa envolvem especialmente o domínio dos aspectos semânticos e sintáticos da linguagem. Por exemplo, é essencial que uma criança tenha um bom repertório lexical para que ela saiba narrar uma história(5).
O desenvolvimento das competências linguísticas favorece e amplia o vocabulário e enriquece a estrutura gramatical utilizada pelo sujeito(5-8). Logo, existe a possibilidade de que a narrativa dependa de fatores como vocabulário prévio e o contexto em que as narrativas são realizadas. Com o aumento da idade, escolaridade e maturação cognitiva, ocorre o desenvolvimento da sintaxe e do vocabulário da criança, e isto torna a estrutura narrativa mais complexa e elaborada. Assim, evidencia-se que as aquisições de vocabulário e de convenções da língua são necessárias e preditoras do discurso narrativo coerente(9-11).
As habilidades narrativas das crianças durante a vida escolar podem ser consideradas como um importante percursor do desempenho escolar, principalmente quando relacionado a crianças desviantes do desenvolvimento típico acadêmico e de linguagem(9).
Além das habilidades linguísticas, o desenvolvimento da narrativa requer habilidades cognitivas sofisticadas. A narrativa é estruturada e processada a partir de experiência pessoal e necessidades sociais e implica considerar o interlocutor (12). As habilidades de atribuir estados mentais e compreender suas intenções e desejos e os de outras pessoas são necessárias para narrar. Essas habilidades são chamadas de Teoria da Mente(13). Durante a produção de recontos, a Teoria da Mente pode ajudar a criança a compreender a intencionalidade dos personagens e a expressá-la verbalmente, a fim de que o ouvinte compreenda a história em sua totalidade(14,15).
Finalmente, sabe-se que a narrativa, assim como muitas outras habilidades de linguagem, sofre grande influência de aspectos sociais. O nível socioeconômico e cultural, o ambiente linguístico familiar e a qualidade da escola são fatores que influenciam o desenvolvimento do vocabulário(5,16), fonologia(7) e o desempenho acadêmico(17) A interação social e o meio cultural no qual a criança está inserida influenciam o seu desempenho linguístico. Estudos que correlacionam o estilo conversacional dos pais com o desenvolvimento da narrativa mostraram que conversações que envolvem mais comentários e perguntas feitas pelo interlocutor favorecem o desenvolvimento da narrativa(12,13). O contexto escolar em que a criança está inserida (escola pública ou privada), por exemplo, pode ter um grande impacto sobre o desenvolvimento de suas competências linguísticas e acadêmicas(5,8). Há evidências científicas de que crianças de escolas privadas apresentam um melhor desempenho do que crianças de escolas públicas em tarefas de vocabulário(9), consciência fonológica(10), compreensão(11) e prontidão escolar(9). Estas diferenças no desempenho das crianças refletem a discrepância da qualidade de ensino entre as escolas, um problema complexo e multifatorial que está relacionado à formação e remuneração dos professores, às diretrizes pedagógicas, aos recursos físicos e humanos, condições socioeconômicas e socioculturais, dentre outros(9).
Tanto os fatores linguísticos quanto sociais atuam de forma integrada para o desenvolvimento da narrativa, e se desenvolvem ao longo do tempo. Por volta dos dois anos de idade a criança começa a correlacionar fatos(17). Entre três e quatro anos de idade, os relatos apresentam maior número de sentenças encadeadas e ainda com a presença de alguns marcadores de narrativa, como conectivos(15,17). A partir dos quatro anos até os 6 anos, a aquisição da estrutura do texto narrativo está completa e as crianças passam a narrar com coerência histórias, sejam estas conhecidas, suas experiências ou inventadas (16,17).
Assim, por ser a narrativa uma habilidade linguística que se desenvolve com o tempo, é possível que em algumas etapas a criança já consiga desenvolver uma narrativa de maneira satisfatória, mas não consiga fazê-lo sozinha, espontaneamente. A leitura compartilhada de histórias por adultos e crianças pode ser um recurso promotor do desenvolvimento das narrativas, contribuindo para o desenvolvimento das competências sociocognitivas e de linguagem(18). O adulto pode assumir diversos eixos de tutela em atividades de comunicação, compreensão e produção durante um contexto comunicativo com a criança. Ele pode assumir papéis como: quem dá instruções ou dicas, quem expõe um conhecimento ou que ampara os sujeitos em suas tentativas de verbalização. Assim, é possível que contribua para a elaboração discursiva da criança(19).
Desta forma, a narrativa de crianças pequenas pode ser dependente de dicas ou perguntas (i.e., tutela), que as direcionem ao tópico discursivo, enquanto crianças mais velhas podem não precisar tanto destas pistas. Este estudo teve como objetivos avaliar o efeito da tutela no tipo de narrativa produzida por crianças típicas de 4 a 9 anos matriculadas em escolas públicas e particulares e relacioná-lo com o vocabulário, idade e desempenho escolar.
Esta é uma pesquisa observacional transversal, aprovada pelo Comitê de Ética da Instituição sob o protocolo de número 0561/2016.
A amostra foi constituída por 107 crianças de ambos os gêneros, matriculadas em escolas públicas e particulares das cidades de Ribeirão Pires e São Paulo. A faixa etária foi de 4 a 9 anos, e a escolaridade destas crianças variou do Infantil I até o 3º ano do Ensino Fundamental I. Como critério de exclusão, foi considerada a presença de diagnósticos prévios relacionados a distúrbios do desenvolvimento. Todas as crianças tiveram o Termo de Consentimento assinado pelos responsáveis e o Termo de Assentimento preenchido.
A avaliação da narrativa oral foi realizada a partir de amostras de fala eliciadas por duas histórias: uma elaborada por Baron-Cohen(20) e outra por Eva Furnari(21). Ambas as histórias são compostas por quatro cenas e não contêm nenhum conteúdo escrito.
As figuras que compõem cada história eram apresentadas pela avaliadora que fazia a seguinte solicitação à criança: “Essas imagens formam uma história, olhe todas elas e coloque na ordem que você acha que forma a história”. A criança deveria ordenar temporalmente as imagens da história para posteriormente elaborar uma narrativa a partir da observação das figuras, sem intercessão da avaliadora no primeiro instante. Caso a criança não narrasse de acordo com os tópicos previstos, a avaliadora intercedia com a tutela, composta por perguntas que direcionavam a narrativa e a atenção da criança para as cenas principais em que ocorriam inferências. A tutela foi utilizada quando a criança não narrava da forma esperada, por exemplo, quando descrevia apenas a ação das personagens ou não sinalizava o estado mental ou sentimento da personagem (os tópicos previstos em cada história e as instruções dadas para a tutela estão apresentados no Anexo 1). A narrativa foi gravada e posteriormente transcrita e analisada.
Para a análise dos resultados relacionados à produção narrativa, foram utilizados os critérios de acordo com Baron-Cohen et al. (20). Estes critérios são referentes ao tipo de discurso utilizado pelo paciente. São eles: Descritivo – Não há presença de conectivos que estabeleçam uma relação sequencial entre as cenas. Nesse critério, foram inclusas as narrativas em que as figuras são descritas separadamente; ou o uso de conectivos que estabelece apenas uma relação aditiva entre as cenas, sem relacionar os acontecimentos entre as cenas durante a narrativa; Causal – Uso de expressões que determinam relação de causalidade. Foram inclusas nesse critério as narrativas que utilizam conjunções aditivas que demonstrem que um acontecimento ocorreu apenas em virtude de outro, ou o uso de conjunções causais ou explicitação do agente causador; Intencional – Uso de interjeições ou expressões não linguísticas que expressem desejo ou sentimento da personagem, ou expressão de estados mentais das personagens, ou quando a narrativa ocorre na forma de discurso direto.
Ainda sobre a narrativa, os escores atribuídos para cada tipo foram referentes à complexidade desta, ou seja, para o tipo Descritivo foi atribuído escore 1; Causal, escore 2; e para a narrativa de tipo Intencional foi atribuído escore 3. Além dessas pontuações, foi atribuído escore 0 para as crianças que se negaram a narrar as histórias. Esta pontuação foi utilizada para cada narrativa realizada pela criança, tanto nas imagens do Bahon-Cohen et al.(20) quanto nas imagens de Eva Furnari(21). Para o resultado final de cada indivíduo, foram somados os escores obtidos nas duas histórias narradas (escore possível 0 a 6).
Para a avaliação do vocabulário, foi utilizado o Teste de Vocabulário Expressivo(22).
Na avaliação do vocabulário, a avaliadora sentava à mesa de frente para o participante, com as figuras posicionadas na frente da criança, apresentando-as uma a uma. A avaliadora realizava a pergunta “O que é isso?” para todas as figuras. Todas as respostas das crianças foram transcritas em um protocolo específico do teste e analisadas pela avaliadora.
Quando a criança nomeava de maneira correta, era atribuído 1 ponto, quando nomeava de maneira diferente do esperado, considerava-se a pontuação 0.
Para a avaliação do desempenho escolar, foi desenvolvido um questionário com perguntas referentes à participação, interesse e qualidade das tarefas desempenhadas pelo aluno, bem como às suas habilidades comunicativas e de aprendizagem.
O Questionário de Desempenho Escolar foi respondido pelos professores, e era composto por 7 questões. Cada questão apresentava três possibilidades de resposta: quando o aluno se encontrava “abaixo da média da classe” para determinada questão, era atribuído escore 0; “na média da classe”, escore 1; e “acima da média da classe”, escore 2. A pontuação geral no questionário era resultado da soma do escore obtido para cada questão.
As avaliações foram feitas de maneira individual dentro do âmbito escolar e demoraram em média 20 minutos cada. A avaliação foi dividida em três partes: primeiramente foi avaliado o inventário lexical por meio do Teste de Vocabulário Expressivo(22). Em seguida, eram apresentadas as figuras para a produção da narrativa oral. Ao final da avaliação, os professores respondiam questionários sobre o desempenho escolar referente aos alunos avaliados.
Inicialmente, para verificar o efeito da tutela no tipo de narrativa, foram comparados os desempenhos das crianças antes e após a tutela. Foi utilizada a técnica estatística do Wilcoxon Signed Ranks Test para verificar a diferença entre o tipo de narrativa antes e após a tutela.
Em seguida, foram comparados os desempenhos entre crianças de escola pública e particular a partir do teste de Mann-Whitney.
Finalmente, a fim de verificar a relação entre idade, vocabulário, desempenho acadêmico e tipo de narrativa, foram realizadas correlações simples e parciais.
O tipo de narrativa apresentado pelas crianças antes da tutela foi inferior (Mediana = 2) ao tipo de narrativa usado após a tutela (Mediana = 5), T = 0, p < .001, r = -.49, o que demonstra que a tutela teve um efeito positivo no desempenho das crianças.
Antes da tutela, a maioria das narrativas das crianças foi classificada como descritiva (59,8% para a história Baron-Cohen et al.(20) e 76,6% para a da Eva Furnari(21)), enquanto as narrativas do tipo causal e intencional representaram respectivamente 4,7% - 10,3% e 18,7% - 29,9% das respostas. Contudo, após a tutela, houve predominância de narrativas do tipo intencional, tanto para a história de Baron-Cohen et al. (20) (57,7%) quanto a da Eva Furnari(21) (58,9%). Assim os resultados indicam melhora do tipo de narrativa utilizada pelas crianças no momento após a tutela, como mostra a Tabela 1 .
Tabela 1 Tipo de narrativa antes e após a tutela
Tipo Narrativa | ||
---|---|---|
Sem Tutela | Com Tutela | |
N | 107 | 67 |
Mediana | 2 | 5 |
Mínimo | 2 | 2 |
Máximo | 6 | 6 |
As crianças de escola pública e particular apresentaram um desempenho semelhante quando comparadas quanto ao tipo de narrativa utilizada sem tutela (T = 2553.5, p = .517, r = -.06). No momento em que a avaliadora intercedeu com a tutela, as crianças mantiveram o desempenho semelhante, independentemente do tipo de escola (T = 1094.0, p = .936, r = -.01). ( Tabela 2 )
Tabela 2 Tipo de narrativa comparado com a modalidade de ensino
Tipo Narrativa | ||||
---|---|---|---|---|
Sem Tutela | Com Tutela | |||
Tipo de escola | Particular | N | 49 | 32 |
Mediana | 2 | 5 | ||
Mínimo | 2 | 2 | ||
Máximo | 6 | 6 | ||
Pública | N | 58 | 35 | |
Mediana | 2 | 5 | ||
Mínimo | 2 | 2 | ||
Máximo | 6 | 6 |
Embora quantitativamente não tenha sido observada distinção quanto ao tipo de narrativa e tipo de escola, foi possível observar um padrão ligeiramente distinto quanto à evolução da narrativa ao longo dos anos escolares na condição pós-tutoria ( Figuras 1 e 2 ). Enquanto as crianças matriculadas em escolas privadas tendem a estabelecer sua narrativa de maneira complexa entre o 1º (primeiro) e 2º (segundo) ano do Ensino Fundamental I, as crianças do ensino público passam pelo mesmo processo um ano mais tarde, entre o 2º (segundo) e 3º (terceiro) ano.
A partir de correlações simples entre as variáveis, foi possível observar a relação entre o tipo de narrativa e outras habilidades. Antes da tutela, o tipo de narrativa utilizado pelas crianças apresentou correlação positiva moderada com o vocabulário (r = .651) e com a idade (r = .666). Entretanto, quando a variável “idade” foi controlada (correlações parciais), a correlação entre tipo de narrativa e vocabulário passou a ser uma correlação fraca (r = .011, p=.246), demonstrando que a idade é a variável que tem grande correlação com o tipo de narrativa.
Após a tutela, o tipo de narrativa utilizado pelas crianças apresentou correlação significante com o vocabulário (r = .239) e com o desempenho escolar (r = .362) das crianças, mas não com a idade (r = .042, p = .250). Ou seja, a mudança no tipo de narrativa direcionado pela tutela, não depende da idade do indivíduo, porém tem influência de seu conhecimento lexical.
Este estudo teve como objetivos avaliar o efeito da tutela sobre o tipo de narrativa produzida por crianças típicas, e comparar o desempenho entre as crianças matriculadas em escolas públicas e escolas particulares. Ademais, também teve o objetivo de relacionar este desempenho com o vocabulário, faixa etária e desempenho escolar. Os resultados indicam que, antecedente à tutela, a maioria das narrativas das crianças foi classificada como descritiva. Contudo, após a tutela houve predominância de narrativas do tipo intencional. Além disso, não foram encontrados valores significantes quando a narrativa de escolares do ensino público foi comparada com o ensino privado.
Com base nos resultados, é possível inferir que a tutela é promotora do discurso narrativo, ou seja, após a interferência da avaliadora, a maioria das crianças conseguiu reproduzir uma narrativa com maior complexidade, independentemente do tipo de escola que frequentavam. Esta mudança sugere que a tutela direciona a atenção dos escolares para os eventos de maior relevância, favorecendo o entendimento da história e a elaboração da narrativa. Este achado condiz com o estudo desenvolvido por Verzolla et al.(23), cujos resultados mostraram que o efeito da tutela melhora a qualidade da narrativa, uma vez que as crianças após a tutela aumentaram o número de eventos narrados durante a reavaliação. Portanto, a tutela é uma interação sociolinguística que se mostra efetiva para melhorar as habilidades linguísticas das crianças.
Além disso, foi observado que, quanto maior a idade da criança, melhor sua habilidade narrativa, e que o desempenho escolar teve correlação moderada com a idade e com o vocabulário. Após a tutela, no entanto, a idade não foi mais uma variável relevante para a qualidade da narrativa, ao menos para as crianças desta amostra. Já o vocabulário e o desempenho escolar apresentaram correlação positiva com a produção narrativa. Em outras palavras, quanto maior o potencial linguístico da criança (em termos de vocabulário e desempenho escolar), mais elas se beneficiam da tutela, independentemente de sua idade.
Estudo produzido por Rodrigues et al.(24) analisou a atribuição de estados mentais na narrativa de pré-escolares a partir de imagens. O estudo descreve a maior facilidade das crianças em narrar comportamentos observáveis, como as ações dos personagens, do que atitudes envolvendo ações implícitas. A narrativa produzida a partir de figuras por crianças entre 4 e 5 anos mostra-se voltada para a descrição das imagens, e isto implica a não realização de inferências presentes nas cenas(23). Isto condiz com o que foi observado no presente estudo, uma vez que, o tipo de narrativa intencional requer o entendimento de inferências presentes na história, e as crianças da amostra obtiveram predominantemente o tipo de narrativa descritivo no momento antecedente à tutela, no qual narraram os fatos observáveis através das imagens.
Durante as análises, foi observado que, no momento pré-tutela, quanto mais velha a criança maior a complexidade de sua narrativa. Assim, o tipo Intencional foi utilizado por crianças mais velhas, que apresentaram em suas produções orais maior número de interjeições e atribuição de estados mentais aos personagens. Este achado é concordante com a literatura, a narrativa é possivelmente o reflexo da etapa de desenvolvimento na qual a criança está (25). A referência temporal com base em imagens que compõem uma história surge por volta dos 4 anos de idade, e esta se amplia de maneira significante aos 6 anos de idade (2). Assim, os achados deste estudo corroboram com a literatura e mostram que o desempenho das crianças mais novas é diferente das crianças com maior idade, pois estas já estão com a referência temporal mais bem estabelecida.
Após a tutela, as crianças ampliaram suas narrativas e passaram a mencionar o possível estado mental do personagem e sua intencionalidade. Esta observação condiz com os achados de autores como Verzolla et al.(23), cujos resultados indicam que no momento da segunda narrativa existe uma ampliação no número de eventos, após a tutela realizada pelo adulto. As crianças que apresentaram uma narrativa com maior complexidade após a tutela foram aquelas com o melhor vocabulário e desempenho escolar, independentemente da idade. Assim, foi possível observar que o efeito positivo da tutela não dependeu da idade da criança, mas de seu potencial linguístico, já que as crianças com bom desempenho de linguagem foram as que mais se beneficiaram da tutela.
Ademais, alguns estudos sugerem que promover a produção narrativa de crianças envolve o uso de atividades que fortaleçam conhecimento estrutural da história e de habilidades metacognitivas, expondo-as a oportunidades para compor e ampliar aspectos linguísticos de narrativas complexas e diminuir sistematicamente quantidade de apoio (i.e., tutela) dado às crianças enquanto desenvolvem sua própria narrativa (9,17-19).
De acordo com a literatura, as crianças inseridas no ensino particular se sobressaem no desempenho acadêmico e linguístico quando comparadas às crianças no ensino público. Isto ocorre porque o contexto escolar deficitário pode se tornar um fator de risco para o desempenho acadêmico(15). Hage et al.(5) afirmou que o uso de narrativa apresenta maior incidência no discurso das crianças de escolas privadas. Além disso, a autora cita que no ensino privado existe uso frequente de estratégias para estimular a narrativa das crianças. Entretanto, isto não foi observado nos resultados deste estudo. O desempenho narrativo de crianças de escolas públicas e privadas não apresentou distinções, tanto no momento pré-tutela como no momento posterior a esta, logo, isto vai contra a hipótese deste estudo. Este resultado pode ter relação com as características socioeconômicas e educacionais da escola pública em que esta pesquisa foi desenvolvida. Através do site do INEP(26) (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), foi possível observar que o IDEB desta escola é mais alto (IDEB: 6,5) do que o de outras escolas de ensino público da cidade de Ribeirão Pires (IDEB: 6,0; média da região). Além disso, o site refere que as crianças da instituição apresentam como alto o nível socioeconômico (Indicador de Nível Socioeconômico: Alto).
Apesar de os valores quantitativos não indicarem diferenças quanto à narrativa, os resultados qualitativos sugerem que a criança inserida em um contexto escolar particular tende a estabelecer sua narrativa de maneira complexa entre o 1º (primeiro) e 2º (segundo) ano do Ensino Fundamental I. Já a criança do ensino público estabiliza sua narrativa mais tardiamente, entre o 2º (segundo) e 3º (terceiro) ano.
Outro achado relevante neste estudo foi o de que ambas as variáveis que tiveram relação com o efeito da tutela (vocabulário e desempenho acadêmico) se correlacionaram entre si. Ou seja, quanto melhor o vocabulário da criança, melhor seu desempenho acadêmico. Este achado, em si, já havia sido demonstrado em outros estudos (27), mas aqui sugerimos que ambas as variáveis contribuem para a melhora da narrativa após tutela.
A habilidade da narrativa é crucial para que as crianças tenham sucesso em alcançar bom desempenho em tarefas como de compreensão oral e escrita. Infelizmente, crianças em idade escolar que apresentam déficit de linguagem são desfavorecidas durante o período escolar, por perderem grande quantidade de instrução em sala de aula, pois estas incorporam algum grau de discurso narrativo nas atividades(16). Sendo assim, torna-se necessário promover a habilidade narrativa através da tutela, tanto na clínica quanto no âmbito escolar, pois podem favorecer e ampliar o desempenho linguístico.
Diante deste estudo, pode-se afirmar que a intervenção de linguagem realizada por meio da tutela do adulto contribuiu para o aumento da complexidade das narrativas dos escolares, principalmente com aumento da compreensão de inferências. Assim, conclui-se através dos resultados obtidos a importância da continuidade de estudos relacionados ao desenvolvimento da narrativa de escolares, em vista de sua importância no desenvolvimento das habilidades linguísticas.
A tutela facilitou a produção de narrativa em crianças típicas, já que o tipo de narrativa predominante após a tutela passou de Descritivo para Intencional. A primeira produção narrativa das crianças teve correlação com a idade, demonstrando que a produção narrativa espontânea tem uma relação com o próprio desenvolvimento de linguagem. No entanto, após a tutela, a idade não foi mais relevante para a qualidade da narrativa, e as variáveis que passaram a ser relevantes foram o vocabulário e o desempenho escolar. Portanto, concluímos que, se a criança tem um bom potencial linguístico, ela se beneficia da tutela, independentemente de sua idade.