versão impressa ISSN 1413-8123versão On-line ISSN 1678-4561
Ciênc. saúde coletiva vol.24 no.10 Rio de Janeiro out. 2019 Epub 26-Set-2019
http://dx.doi.org/10.1590/1413-812320182410.30772017
O Sistema Único de Saúde (SUS) no Brasil, regido pelos princípios da universalidade, equidade e integralidade, exige práticas de atenção que ultrapassem o modelo de atenção médica, resultado do paradigma flexneriano. Um dos maiores desafios para os gestores é implementar práticas que contribuam para a efetivação de seus princípios numa rede de serviços adequada às necessidades da população. Nesse sentido, políticas governamentais têm reforçado a atenção primária de saúde (APS), conhecida no Brasil como atenção básica (AB), como estratégia estruturante para mudança do modelo de atenção à saúde no SUS. Ao mesmo tempo, com investimentos na formação dos trabalhadores e gestores, busca-se promover alterações na concepção do processo saúde/doença, no paradigma sanitário e na prática sanitária1-3.
O contexto de complexidade do processo saúde-doença-cuidado exige a organização do processo de trabalho na APS, por meio de equipes multiprofissionais, com abordagem interdisciplinar e intersetorial4. Dentre o conjunto de profissões que compõem essas equipes, encontra-se o farmacêutico, seja atuando nos Centros de Saúde ou em equipes de referência do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF)5.
O profissional farmacêutico tem responsabilidade na implementação de estratégias para promoção do uso racional de medicamentos em virtude das consequências danosas do seu uso inadequado, bem como pela repercussão financeira que o medicamento representa para os serviços de saúde e para a coletividade. O trabalho do farmacêutico é componente fundamental da qualidade da Assistência Farmacêutica que, por sua vez, tem implicações diretas na eficiência dos sistemas de saúde6.
Algumas conquistas normativas nos últimos 19 anos potencializam a atuação do farmacêutico na APS: a Política Nacional de Medicamentos7; a Política Nacional de Assistência Farmacêutica (PNAF/2004); a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB/2006), atualizada em 2011; e a publicação da portaria de criação do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) em 2008, atualizada em 2014. Também contribuiu, no âmbito do Ministério da Saúde, a estruturação do Departamento de Assistência Farmacêutica (DAF) em 2003. Soma-se a isso a série sobre Cuidado Farmacêutico na Atenção Básica8, que descreve um projeto piloto sobre cuidado farmacêutico com orientações para as ações de assistência farmacêutica no SUS e por consequência para o trabalho do farmacêutico. A Organização Mundial de Saúde (OMS) também lançou publicações sobre a renovação da atenção primária nas Américas, que inclui um documento sobre os Serviços Farmacêuticos na APS9.
Esse contexto provoca a construção de uma nova identidade profissional do farmacêutico para atuar para além da tradicional gestão do medicamento, com abordagem voltada para o cuidado. A integração do farmacêutico na equipe, a formação e o uso de novas tecnologias para atuar na APS e a construção do vínculo com a comunidade e com os usuários são desafios que estão postos10-12. Esse processo “amplia as interfaces a gerir e coloca novos desafios no plano das competências”13, podendo gerar novos modos de trabalhar em relação ao tradicionalmente conhecido.
Nesse sentido este estudo analisa a inserção do trabalho do farmacêutico na atenção primária no Brasil, buscando identificar experiências, atribuições, potencialidades, dificuldades e desafios para a prática desse profissional.
Realizou-se revisão de literatura sobre o trabalho do farmacêutico na Atenção Primária a Saúde tendo como referência o estudo de Scherer e Scherer14.
A busca dos artigos foi realizada nas bases de dados BVS, SciELO, LILACS e Medline (via PubMed). As bases The Cochrane Library e Embase não puderam ser consultadas por não terem sido renovadas as licenças de uso na Biblioteca Virtual de Saúde (BVS) para o período da pesquisa. Foram incluídos artigos publicados a partir de 1998, quando publicada a Política Nacional de Medicamentos que difundiu o conceito de Assistência Farmacêutica e representou um marco para a área e para o trabalho dos profissionais, até março de 2016 quando os dados foram coletados.
Os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS) utilizados foram: (“Atenção Primária a Saúde” OR “Atenção Básica” OR “Saúde da Família”) AND (“Assistência Farmacêutica” OR “Farmacêuticos” OR “Atenção Farmacêutica”). A busca foi realizada em inglês para a base Medline e em português, espanhol e inglês para as demais. A combinação foi realizada com a utilização dos operadores booleanos AND e OR.
Nas bases de dados Lilacs e Bireme foram utilizados filtros para direcionar a pesquisa, como País/Região “Brasil”, Idioma “português, inglês e espanhol”, ano de publicação de 1998 ao dia 25 do mês março de 2016, tipo de documento “artigos”. Na SciELO, foram selecionados apenas as opções “Brasil” e “Saúde Pública” no filtro Coleções, excluindo-se a coleção “Colômbia” e “Espanha” que apresentavam artigos que não atendiam aos objetivos da pesquisa. Na base PubMed foi preciso colocar a palavra-chave “Brazil”.
A busca dos artigos foi realizada por duas pesquisadoras. Foram levantadas 30 publicações na BVS, 56 na Lilacs, 60 no SciELO e 11 na Medline (via PubMed), chegando ao total de 157 artigos. A partir desses resultados realizou-se a seleção por títulos, chegando ao total de 71 textos. Antes de iniciar a leitura dos resumos foram retiradas 32 publicações repetidas, chegando a 39 textos. A leitura dos resumos foi feita por três pesquisadoras e resultou na seleção de 14 artigos para a leitura integral, restando 14 trabalhos. A leitura dos artigos foi realizada por três pesquisadoras e foram eliminados 5 artigos, ficando 9 para análise. Os artigos foram analisados com o auxílio do software Atlas.ti®.
Foram incluídos artigos de periódicos que faziam referência ao trabalho do farmacêutico na APS no Brasil e que respondessem às seguintes perguntas norteadoras: O estudo aborda o trabalho do farmacêutico na APS? O estudo relata atribuições do profissional, experiências de trabalho, potencialidades, dificuldades e desafios para a prática do profissional farmacêutico na APS? O estudo faz recomendações, críticas ou sugestões para o trabalho do farmacêutico na APS?
Foi adotado como critério de exclusão serem teses, dissertações e revisões da literatura, sendo que nenhuma revisão foi encontrada. A Figura 1 representa as etapas da busca.
Dos 9 artigos selecionados para análise, 3 estudos foram realizados na região sul, 4 na sudeste, 1 na centro-oeste e 1 na região nordeste (Tabela 1). Das revistas onde foram publicados, uma é internacional e oito da região sudeste. Do total, sete são de abordagem qualitativa, uma quantitativa e um quantitativo/qualitativa. A maioria dos estudos fez pesquisa com trabalhadores da saúde15-19, três com usuários20-22 e um estudo de caso23. Todos os estudos trataram de pelo menos um dos elementos de análise (Tabela 1): atribuições, experiências, potencialidades, dificuldades e desafios para a prática do profissional farmacêutico na APS. Nenhum apresentou todas. Os nove artigos foram publicados entre os anos de 2007 a 2015, com distribuição proporcional (Quadro 1). Do total dos estudos, dois apresentaram atribuições do farmacêutico na APS16,19, dois relataram desafios16,19, cinco citaram dificuldades15-18,23, quatro descreveram experiências17,21-23 e seis sinalizaram potencialidades15-17,19,20,22.
Tabela 1 Estudos selecionados que abordam os elementos analisados do trabalho do farmacêutico na APS no Brasil.
Região | UF | Ano | Referência | Elementos analisadores presentes nos estudos | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
A | De | Di | E | P | ||||
Sul | PR | 2007 | 20 | X | ||||
SC | 2008 | 22 | X | X | ||||
SC | 2009 | 16 | X | X | X | X | ||
Sudeste | SP | 2007 | 21 | X | ||||
SP | 2008 | 15 | X | X | ||||
MG | 2012 | 17 | X | X | X | |||
RJ | 2015 | 19 | X | X | X | |||
Centro-oeste | GO | 2010 | 23 | X | X | |||
Nordeste | PE | 2012 | 18 | X |
UF: Unidade da Federação; PR: Paraná; SC: Santa Catarina; MG: Minas Gerais; SP: São Paulo; PE: Pernambuco; GO: Goiás; RJ: Rio de Janeiro. A: atribuições, De: desafios, Di: dificuldades, E: experiências, P: potencialidades
Quadro 1 Aspectos gerais dos estudos selecionados, características metodológicas e participantes do estudo.
Referência | Ano | Local | Revista | Tipo de estudo e metodologia | Participantes do estudo | |
---|---|---|---|---|---|---|
20 | 2007 | PR | Revista de Ciências Farmacêuticas Básica e Aplicada | Qualitativo | Estudo Prospectivo descritivo. Entrevistas. | Usuários |
21 | 2007 | SP | Therapeutics and Clinical Risk Management | Quantitativo | Estudo prospectivo | Usuários |
22 | 2008 | SC | Revista Brasileira de Ciências Farmacêuticas | Qualitativo | Estudo de caso | Usuários |
15 | 2008 | SP | Cadernos de Saúde Pública | Qualitativo | Análise de dados secundários, análise documental, entrevistas semiestruturadas. | Profissionais de saúde- F, FUS, FCAF |
16 | 2009 | SC | Brazilian Journal of Pharmacceutical Sciences | Qualitativo | Entrevista semiestruturada. | Profissionais de saúde- médicos, dentistas e enfermeiros |
23 | 2010 | GO | Saúde Sociedade São Paulo | Qualitativo | Relato de experiência | -- |
17 | 2012 | MG | Revista APS | Qualitativo | Entrevista semiestruturada | Profissionais de saúde- médico, auxiliar de enfermagem, auxiliar administrativo, gerente do centro de saúde. |
18 | 2012 | PE | Arquivos Brasileiros de Ciências da Saúde | Qualiquantitativo | Questionário Entrevista |
Profissionais de saúde- farmacêuticos |
19 | 2015 | RJ | Saúde debate | Qualitativo | Pesquisa documental Entrevistas |
Profissionais de saúde (gestores, usuários, farmacêuticos, gerentes da unidade de saúde, auxiliares de farmácia) |
Dos nove estudos analisados, dois, que foram realizados com profissionais de saúde, mencionaram atribuições para o trabalho do farmacêutico na APS, tanto na área de gestão quanto na de assistência16,19. Desses dois estudos, um foi realizado com médicos, dentistas e enfermeiros16 e outro com gestores, usuários, farmacêuticos, gerentes da unidade de saúde e auxiliares de farmácia19.
Os resultados da revisão apontaram que, na área de gestão, o farmacêutico organiza as ações de assistência farmacêutica, promove o uso racional de medicamentos, garante a disponibilidade, qualidade e conservação dos medicamentos16, adequa as farmácias, realiza controle dos medicamentos (prazo de validade, condições físico-químicas), acompanha, avalia e implanta programa de fitoterapia, desenvolve atividades secundárias de gestão no nível central do município, além de acompanhar atividades nos centros de informação toxicológicos19.
Com relação à atuação profissional na área da assistência, o farmacêutico, segundo a revisão, presta serviços assistenciais, obtém, avalia e difunde informações sobre os medicamentos e, sobre a saúde na perspectiva da educação19, dispensa medicamentos com avaliação da prescrição e realiza orientação farmacêutica, documenta os atendimentos realizados em prontuário e visita usuários hospitalizados para a supervisão da farmacoterapia.
A presente revisão evidencia, como forma de expressar a atividade do profissional ligada a assistência farmacêutica, a utilização de diferentes termos pelos autores: atenção farmacêutica16,17,21-23, serviços farmacêuticos e cuidado farmacêutico19. Além disso, o termo seguimento farmacoterapêutico surge como parte do trabalho do farmacêutico20.
Os relatos de experiência do profissional com relação à atenção farmacêutica são trazidos em quatro artigos17,21-23 que mostram a experiência do trabalho em equipe e sua importância para resolver problemas relacionados aos medicamentos (PRM), para melhoria da qualidade de vida dos usuários, para promover mudança no modelo assistencial e para a formação de uma nova visão do trabalho do farmacêutico17,21-23. A visita domiciliar foi descrita como instrumento fundamental para se conhecer o ambiente familiar do usuário22.
A experiência de implantação de um serviço de atenção farmacêutica alterou a visão dos profissionais da APS sobre o trabalho do farmacêutico. A característica de tecnicista e fiscalizador foi substituída pela visão de um profissional que se preocupa e se responsabiliza pelo usuário17. Entretanto, a baixa aceitação das intervenções do farmacêutico pelos demais profissionais de saúde é apontada como dificuldade em um estudo possivelmente pelo fato do farmacêutico, naquele contexto, não pertencer efetivamente à equipe23. Em outro estudo feito com médicos, dentistas e enfermeiros, o farmacêutico foi percebido pela equipe como um profissional que trabalha com o medicamento e sua presença regular não foi vista como necessária. Isso seria decorrente de um contexto histórico de pouca inserção em atividades de atenção básica e de falta de reconhecimento social, além de formação técnica com pouca ênfase na parte clínica e no Sistema Único de Saúde16. Nesses dois estudos16,23, o farmacêutico atuava com equipes de saúde da família.
Além das dificuldades relacionadas à aceitação e reconhecimento do trabalho do farmacêutico também foram sinalizadas a falta de apoio estrutural para o trabalho, insuficiência no número de profissionais gerando sobrecarga, o pouco treinamento para a equipe de trabalho nas unidades sobre o ciclo do medicamento18. Soma-se a isso a escassez de farmacêuticos no sistema público16 e a dificuldade de encontrá-lo, quando inserido, trabalhando com dispensação, atividade que é atribuição desse profissional15.
Demonstrar à população a necessidade do farmacêutico para a atenção integral é um grande desafio16, assim como trabalhar em equipes de atenção primária onde a realidade é multifacetada e a atuação do profissional tem se mantido restrita à gestão técnica do medicamento19.
Do total de estudos incluídos na presente revisão, seis abordam potencialidades, para o trabalho do farmacêutico na APS, que podem ser agrupadas no âmbito das ações voltadas para o usuário, as famílias e a equipe, assim como ao âmbito da formação profissional e da difusão dos resultados das ações farmacêuticas. O medicamento adquire centralidade nas ações e potencializa a inserção do farmacêutico na APS na medida em que ele é utilizado na perspectiva de promoção, proteção e recuperação da saúde, ou seja, para além da gestão do insumo15-17,19,20,22.
Destaca-se nas ações aos usuários16,19,20,22 as destinadas aos idosos para identificação, prevenção e resolução de problemas relacionados a medicamentos (PRM). Os estudos mencionam que o farmacêutico é um educador que pode esclarecer sobre o princípio ativo, a finalidade do medicamento, o tratamento, e favorecer a adesão terapêutica e contribuir para a mudança de comportamento frente ao uso do medicamento.
Quando o farmacêutico participa dos processos e se envolve nas atividades de sua unidade ele legitima e valoriza seu trabalho como membro da equipe. A divulgação das ações que esse profissional realiza pode dar visibilidade e reconhecimento ao seu trabalho, de onde decorre a relevância de estudos que enfoquem os efeitos positivos das ações farmacêuticas para gerar informação para o serviço e para a população16,19.
A formação profissional também é apontada como uma potencialidade para o trabalho do farmacêutico alinhado com as atuais atribuições da prática profissional16. Especializações voltadas para saúde da família associada com a experiência profissional foram exemplos destacados, além da educação permanente19.
A revisão da literatura evidenciou baixa quantidade de artigos em periódicos nas bases de dados consultadas que tratam do profissional farmacêutico e seu trabalho na APS, no Brasil. Os estudos foram publicados a partir de 2007, demonstrando recente interesse nessa área, o que pode estar sintonizado com a estruturação, no Ministério da Saúde, do Departamento de Assistência Farmacêutica em 2003, e com o advento da Política Nacional de Assistência Farmacêutica em 2004, que impulsionaram mudanças na forma de pensar e oferecer serviços de saúde no âmbito da assistência farmacêutica. Esse movimento foi reforçado em 2008 com a criação do NASF, que inclui o farmacêutico. Entretanto, ainda é incipiente a repercussão na literatura com foco na análise do trabalho do farmacêutico.
Estudos apontam a baixa quantidade de publicações no campo da promoção da saúde e por consequência da APS sobre o profissional farmacêutico, o que corrobora com os achados aqui apresentados. Pesquisa sobre as características da produção científica brasileira sobre atenção farmacêutica destaca que, apesar do número limitado de estudos, se espera aumento de publicações no sentido de contribuir para o reconhecimento das ações do farmacêutico nas equipes de saúde24,25. Podemos inferir que, a medida que amplia a inserção na APS e que a experiência profissional se constrói, novos estudos tendem a surgir.
O recente desenvolvimento no Brasil de uma abordagem profissional relacionada aos cuidados em saúde, vinculando o farmacêutico à atividade clínica26, bem como as orientações da Organização Mundial da Saúde9, também são elementos que podem favorecer novas experiências e, consequentemente, aumento das publicações.
A concentração das publicações em revistas da região sudeste parece estar associada ao fato dessa região concentrar periódicos com interesse na temática e sobretudo por ser onde se situam três revistas da área de ciências farmacêuticas (Quadro 1).
A ênfase em estudos com abordagem qualitativa tendo como participantes profissionais de saúde demonstra consideração pela experiência dos profissionais. Compreender o trabalho para transformá-lo passa necessariamente pela construção do ponto de vista dos trabalhadores e essa perspectiva tem guiado estudos no campo da saúde coletiva27.
O farmacêutico tradicionalmente é um profissional que trabalha com o conhecimento e técnicas ligadas ao medicamento26. Os achados revelaram que predominam na atenção primária atividades ligadas aos aspectos gerenciais e assistenciais da prática profissional, podendo ser agrupadas, conforme classificação de Araújo et al.11, em duas áreas complementares: uma relacionada à tecnologia de gestão do medicamento e outra relacionada à tecnologia do uso. Deixar claras as atribuições do farmacêutico na APS como encontrado nos artigos desta revisão é uma etapa importante para o direcionamento do fazer profissional, enfrentando a carência de objetivos claros e consensuais sobre as atividades do farmacêutico na APS28. Apesar de estarem explicitados em apenas dois artigos demonstra a ampliação do entendimento do que seja a atuação do farmacêutico na medida em que esses resultados são oriundos de pesquisas com diversas profissões, gestores e usuários.
Para descrever o trabalho do farmacêutico com os usuários dos serviços de saúde são utilizados, nos artigos analisados, os termos “atenção farmacêutica”, “cuidado farmacêutico” ou até mesmo “serviços farmacêuticos” com sentidos semelhantes. Há no Brasil uma necessidade de uniformização das nomenclaturas. A uniformização pode não só contribuir para maior difusão do trabalho do profissional farmacêutico com os usuários como também possibilitar melhor entendimento por parte daqueles que procuram se aprofundar no tema29.
Convém destacar que documentos recentes do Ministério da Saúde8 têm utilizado o termo cuidado farmacêutico, definido como um conjunto de ações que incluem educação em saúde, atividades de promoção da saúde e ações de promoção ao uso racional de medicamentos (como atividades clínico-assistenciais e técnico-pedagógicas). Essa diretiva tende a favorecer a incorporação desse termo nas pesquisas e na organização dos serviços farmacêuticos.
O trabalho em equipe foi destacado, nos artigos analisados, como fundamental para a resolução de problemas ligados a medicamentos e como consequência para a melhoria da qualidade de vida dos usuários, corroborando com estudos na APS que evidenciam a importância da equipe e da interdisciplinaridade para a efetivação do princípio da integralidade13,30-33. Para isso é necessário não só investir na articulação de ações entre as profissões e incorporação de novos saberes e práticas, mas também preservar as especificidades de cada um e superar a fragmentação no cotidiano dos serviços34. A presença do farmacêutico na equipe pode contribuir para o trabalho integrado na assistência à saúde, para o vínculo com os usuários e também para otimizar a adesão ao tratamento.
Ainda são poucos os relatos de experiências sobre o trabalho do farmacêutico, mas já apontam desafios presentes. Há consenso de que fatores como a baixa quantidade de farmacêuticos na APS, aliado a não percepção desses profissionais como parte da equipe e a pouca clareza sobre suas atribuições, contribuem para a falta de reconhecimento desse profissional nesse campo de atuação. O sucesso do trabalho cooperativo de uma equipe interdisciplinar depende da compreensão que cada profissional tem sobre o papel de outro, levando em conta que cada um tem sua competência35.
Essa problemática da inserção na equipe parece ser enfrentada por outros profissionais na APS do Brasil. Estudos sobre o trabalho do cirurgião dentista descrevem o isolamento desse profissional e as dificuldades em se integrar com a equipe, muito em função da organização do processo de trabalho centrado nele próprio36,37.
Relatos de outros países corroboram com os dados encontrados nesta pesquisa. Na Inglaterra a análise da experiência de integração do farmacêutico na APS mostrou que, apesar do surgimento de uma nova interação com o clínico geral, o farmacêutico ainda não se sente integrado nas equipes. O profissional não tem acesso aos registros dos pacientes e outras categorias profissionais resistem em tentar compreender a importância da participação do farmacêutico no serviço. No entanto os autores destacam que essas novas relações precisam ser trabalhadas e levam tempo até serem estabelecidas38.
No Canadá a baixa participação dos farmacêuticos nas equipes pode estar relacionada à falta de tempo para realizar atividades em equipe, à políticas e normas que desencorajam modelos colaborativos de atendimento, ao pouco acesso às informações dos usuários entre outros. Entretanto, modelos de atenção à saúde baseados na comunidade favorecem o trabalho dos farmacêuticos com outros profissionais39.
No Chile, o farmacêutico não é considerado um ator relevante na rede assistencial, há desconhecimento das competências profissionais, principalmente para o trabalho com atenção farmacêutica e, por isso, enfrenta obstáculos para implementar uma gestão de qualidade40.
Sobre a percepção dos farmacêuticos quanto a sua integração à equipe, estudo realizado no Canadá com sete farmacêuticos identificou que os profissionais tinham duas percepções sobre suas ações: (1) eles fornecem informações e dão suporte para os médicos agirem na tomada de decisão e não como agentes diretos das ações clínicas; (2) participam ativamente nas atividades de gerenciamento dos insumos, tendo o paciente como alvo central dessas ações35.
Em que pese o baixo número de trabalhos, os resultados da revisão indicam que, a medida que o farmacêutico se integra à equipe de saúde mostra resultados e a importância do seu trabalho vai obtendo reconhecimento. Nesse sentido, a formação merece atenção pois tem potencial de ajudar a romper com o isolamento profissional. Há necessidade de formação geral com capacitação para trabalhar em equipe41 e para o desenvolvimento de atividades de cuidado farmacêutico, possibilitando um novo olhar para o usuário na prevenção e resolução de PRM.
A intervenção do farmacêutico em atividades de educação e aconselhamento sobre a terapia medicamentosa tem proporcionado benefícios para a promoção da saúde, o que faz sentido no contexto de transição demográfica e epidemiológica que exige a atenção aos idosos24, como é destacado nos resultados desta revisão de literatura.
O reforço na gestão das unidades e a inserção no planejamento da equipe são fatores significativos para o fortalecimento dos serviços farmacêuticos na APS. A boa gestão dos recursos humanos aliada a incentivos e reconhecimento do valor do profissional para o processo de cuidado em saúde tem potencial na organização dos serviços, incluindo o do farmacêutico42. Nessa perspectiva tornar visível o trabalho do farmacêutico para usuários e demais profissões e gestores é uma estratégia para inserção desse profissional nas equipes de saúde.
A atuação do farmacêutico no NASF, que representa uma estratégia para melhoria da qualidade da APS, é uma oportunidade para reforçar a inserção na equipe multiprofissional. Nessa proposta o farmacêutico pode qualificar a atenção integral ao usuário além de potencializar as ações em conjunto com outros profissionais no apoio matricial28.
Para se adequar às novas exigências para o trabalho mudanças na formação profissional têm sido implementadas. Houve reformulação das Diretrizes Curriculares Nacionais43 e investimentos na formação pelo Ministério da Saúde e pelas universidades brasileiras. Destaca-se o curso “Farmacêuticos na Atenção Básica/Primária: trabalhando em redes”, promovido pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)44. Além disso, foram realizados cursos de especialização para farmacêuticos em Gestão da Assistência Farmacêutica45.
A necessidade de educação profissional formal ou educação permanente é desafio não apenas para os farmacêuticos, mas para o conjunto das profissões que atuam na APS31,36,46,47.
Os trabalhadores estão no centro das ações de saúde e, por isso, o investimento na melhoria das condições de trabalho, na organização e gestão democráticas, e na formação adequada às necessidades contribuem para a capacidade dos profissionais lidarem com os desafios da saúde pública. Esses desafios precisam ser enfrentados e problematizados entre as equipes de saúde e as instâncias de gestão do SUS47-49. A OMS tem incentivado a construção de planos de ação com foco no planejamento e gestão, formação e cooperação para os trabalhadores, de maneira a propiciar contextos favoráveis ao desenvolvimento de competências, para que não ocorra a culpabilização do farmacêutico pelas tarefas realizadas de acordo ou não com o contexto da APS41.
Com base nos resultados encontrados, pode-se chegar a algumas conclusões: Ainda são necessárias sistematizações da experiência do farmacêutico na APS; Estudos que possibilitem, para além da identificação das ações desenvolvidas, a compreensão das escolhas profissionais no contexto onde elas estão inseridas e deem visibilidade a esse profissional são recomendáveis para construção da assistência farmacêutica no SUS. Dos elementos analisados nos estudos, a predominância de achados no campo das potencialidades sinaliza que já existe apropriação de um conjunto de normas orientadoras da prática profissional, ou seja, do caminho a percorrer para fortalecer a integração do farmacêutico à equipe, o que tem sido impulsionado pelas recentes mudanças institucionais e normativas no cenário nacional. Para além das dificuldades e relato de experiências que retratam o presente, os pesquisadores focam nas potencialidades para a prática profissional com o olhar para o futuro em construção.